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Discursos políticos na Época Moderna: produção, circulação e recepção / Clio – Revista de Pesquisa Histórica / 2018

O homem é, por natureza, um animal político (politikón zôon) [1], conforme afirmou Aristóteles em uma célebre passagem do capítulo II, do livro I da Política. A principal razão da natureza política do homem reside em sua capacidade de se comunicar através das palavras, ainda de acordo com o filósofo grego. Enquanto outros animais, como por exemplo as abelhas, são capazes de expressar dor ou prazer, os homens, graças à sua habilidade de fazer uso das palavras, podem ir muito além desta expressão rudimentar de sensações básicas e compor discursos que servem para “tornar claro o útil e o prejudicial e, por conseguinte, o justo e o injusto” [2]. Finalmente, é a capacidade unicamente humana de discernir entre justo / injusto e bem / mal que possibilita a existência da família e da cidade, estágios prévios da existência da comunidade política. Assim, na concepção aristotélica, é a associação direta entre política e discurso que compõe um dos traços mais fundamentais da natureza humana. Através do discurso, os homens comunicam ideias, valores, ideologias, interesses, projetos, sonhos e utopias. Através do discurso, os homens geram consensos ou dissensos, ambos vias essenciais de concretização da vida política. A temática geral deste dossiê é precisamente a diversidade de abordagens e análises do discurso político na Época Moderna.

E o que os homens comunicam em seus discursos políticos? Quais são os assuntos tratados nestes discursos? A reflexão filosófica entende como temas clássicos da política as estruturas e as formas de governo, as fontes de poder, a legitimidade do governo, os direitos e os deveres dos membros de uma comunidade, o caráter das leis, a natureza e os limites da liberdade, a obrigação política e a natureza da justiça. Em suma, são temas essencialmente políticos todas as problemáticas suscitadas pela organização dos seres humanos em sociedade, especialmente, aquelas diretamente relacionadas às causas, às razões e à legitimidade do arbítrio de um grupo de homens sobre os outros. Contudo, o próprio campo da reflexão filosófica é célere em afirmar o quão tênues são os limites que separam a política de outras áreas de investigação como as questões éticas, morais, sociais, econômicas e de antropologia filosófica. Essa frágil demarcação acerca de assuntos de ordem política multiplica a existência de temas que podem ser legitimamente considerados de caráter iminentemente político [3].

A reabilitação da história política pela historiografia[4], operada na década de 1980, deu-se exatamente a partir da flexibilização do entendimento do que configuraria o terreno dos fenômenos políticos por excelência. O âmbito da história política dilatou-se em diversas direções, indo muito além dos recortes tradicionais como, por exemplo, a história dos grandes personagens e a história da diplomacia, temas clássicos da velha história política que vinha sendo rechaçada desde os momentos inicias do surgimento da Escola dos Annales na França [5]. Vários movimentos confluíram para alcançar este resultado nos anos 1980 e, sem dúvida, merece destaque o papel exercido pela reflexão foucaultiana acerca da natureza fluída e polimórfica do poder [6] que contribuiu inquestionavelmente para a expansão das fronteiras da História, bem como para a compreensão da diversidade das experiências humanas ao longo dos tempos. Convém, contudo, recordar aqui a crítica precisa, feita por Emília Viotti da Costa, de que algumas análises, oriundas de uma interpretação simplificada e parcial da obra de Foucault, falharam em esclarecer os mecanismos através dos quais o poder se institui, se perpetua e se transforma, apesar de identificarem a multiplicidade de lócus a partir dos quais o poder é exercido, pois, afinal, “Quando o poder está em toda parte, acaba por não estar em lugar nenhum” [7].

Os signos da vida política passaram a ser localizados onde antes não eram percebidos e, assim, os historiadores passaram a estar cientes da presença do elemento político a despeito do assunto investigado. Esse movimento só pôde ser efetuado porque a realidade social foi compreendida a partir de seu polimorfismo político. Entretanto, não somente a uma ampliação de temas se deve a renovação da história política, mas também ao diálogo estabelecido com outras disciplinas, sobretudo a antropologia [8], e outras vertentes historiográficas, como a microhistória, a history from bellow e a história social. Destes colóquios interdisciplinares resultaram novas técnicas e metodologias aplicadas agora a velhos e novos temas. No campo da História Moderna – seara de pesquisa a qual se dedicam os artigos que compõe esse dossiê – essas mutações da história política originaram toda uma nova concepção da vida política na época Moderna, da gênese do Estado Moderno e das revoltas e revoluções que permearam o período [9] . Estas novas concepções dos fenômenos políticos modernos ensejaram igualmente a necessidade de outras abordagens teórico-metodológicas das quais algumas possibilidades em voga são: o emprego do método prosopográfico para o estudo das elites e das redes de compadrio – em alta nos estudos coloniais –, as análises sobre a cultura política de um grupo ou de uma determinada região e, finalmente, as investigações acerca dos discursos políticos.

A proposta teórico-metodológica mais corriqueira acerca da análise dos discursos políticos é aquela identificada com os pressupostos formulados pela chamada Escola de Cambridge, rebatizada por Quentin Skinner de enfoque collingwoodiano [10]. O enfoque collingwoodiano, do qual são autores emblemáticos Quentin Skinner e John Pocock, beneficiouse de um profícuo intercâmbio com a filosofia da linguagem de Wittgenstein e com a teoria dos atos de fala de Austin. A partir de então, os autores definiram o contexto em sua especificidade linguística, na qual importa interpretar as proposições da teoria social e política produzidas ao longo da história. Todavia, é claro que as propostas de análise do discurso político não foram e não são fomentadas apenas em língua inglesa, tampouco esgotam suas possibilidades de concretização em torno do enfoque collingwoodiano, como bem o comprovam os artigos presentes nesse dossiê, que adotam variados modelos de percepção, análise e interpretação dos discursos políticos.

Os trabalhos aqui reunidos podem ser agrupados em cinco eixos temáticos distintos: 1) as controvérsias teológico-jurídicas, 2) a publicística e a disputa pela opinião pública, 3) a circulação de textos e a cultura impressa, 4) o vocabulário político e suas transformações semânticas e, finalmente, 5) a dimensão política da escrita da história. Em relação ao recorte espaço-temporal, os textos se organizam em três grupos: o conturbado contexto britânico e de sua colônia americana no século XVII, assunto ainda pouco desbravado pela historiografia brasileira; a América portuguesa nos séculos XVII, XVIII e XIX; e o agitado Portugal do século XVII. Salta aos olhos o fato de que, em um total de oito artigos, seis sejam circunscritos ao século XVII, o século que suscitou, e ainda suscita, um acalorado debate sobre a crise na Europa [11], o século da convulsionada cultura do Barroco tão magistralmente descrita por José António Maravall [12], igualmente alvo de polêmicas. Querelas historiográficas à parte, o século XVII de fato vivenciou uma série de alterações que modificaram os arranjos político-institucionais, os estilos de comunicação política, o vocabulário e a semântica política e as formas de participação na vida política. Todas estas facetas foram diligentemente contempladas nos artigos aqui reunidos.

Assim, Carlos Ziller Camenietzki, em um belo exercício de história intelectual, aborda as transformações nos arranjos político-institucionais ao longo dos seiscentos, ao examinar as tensões inerentes à formação do Estado Moderno em Portugal, através da análise de uma controvérsia teológico-jurídica. Os diversos estilos de comunicação política – que apontam para relevantes matérias como a publicística moderna e a fulcral questão da existência de uma esfera pública para além dos moldes habermasianos – são contemplados nos artigos de Eduardo Henrique Sabioni Ribeiro e Daniel Saraiva. Este último também efetiva uma importante reflexão sobre a participação das camadas populares na vida política de Portugal. Já Verônica Calsoni Lima, ainda dentro do universo dos estilos de comunicação política, explora o universo da cultura escrita seiscentista ao analisar o trânsito de correspondências, a publicação e a circulação de livros dos dois lados do Atlântico, entre a Velha e a Nova Inglaterra. Coube a Jaime Fernando dos Santos Junior esquadrinhar, no âmbito britânico seiscentista, as mudanças no vocabulário e na semântica política, ao investigar a historicidade e as disputas em torno do conceito de Commonwealth que mais do que uma mera disputa semântica, representavam a defesa de distintos projetos políticos, como esclarece Santos Júnior. Concluindo as reflexões sobre os aspectos políticos do século XVII, temos o artigo de Bruno Boto Martins Leite, o qual examina a reflexão teórica sobre a escrita da história do fidalgo português Francisco Manuel de Melo. Sublinhando o panorama ilustrado por Melo acerca das diversas possibilidades cabíveis à escrita da história de seu tempo, Leite afirma que para o erudito português o discurso histórico apenas ganharia pleno sentido em sua acepção como instrumento de uso político.

As diversas facetas políticas da escrita da história na América Portuguesa reúnem os dois derradeiros artigos deste dossiê. Kleber Clementino examina as múltiplas temporalidades presentes na obra historiográfica de Varnhagen, com ênfase no contraste de diferentes modelos historiográficos em vigência nos séculos XVI e XVII, especificamente: a história perfeita renascentista e a história política associada às teorias da razão de Estado. O exame da obra de Varnhagen é utilizado como pretexto, por Clementino, para compor sua tese sobre a história da histografia na Época Moderna, sustentando que Varnhagen não representaria o início da moderna historiografia crítica no Brasil e, tampouco, a origem da história da historiografia no Ocidente poderia ser situada no oitocentos. Marcone Zimmerle Lins Aroucha, ao investigar duas licenças presentes na História da América Portuguesa, de Sebastião da Rocha Pitta, indica a fisionomia composta da escrita da história no mundo português do século XVIII, sugerindo que esta fisionomia deve-se ao embate entre paradigmas narrativos e teóricos distintos. Aroucha, incorporando a dimensão política da escrita da História na época moderna, avalia conteúdo e forma da obra de Rocha Pitta a fim de averiguar a instrumentalização política da mesma. Ambos os artigos – bem como o trabalho de Verônica Calsoni Lima – transitam com fluidez entre os universos intelectuais que se constituem dos dois lados do Atlântico. Este livre trânsito sinaliza um aspecto caro à historiografia contemporânea que, no ímpeto de libertar-se das amarras de uma narrativa nacionalista, coloca ênfase na circulação não apenas de bens e pessoas, mas também de ideias, comportamentos e valores. Circulação esta que se daria em constante processo de retroalimentação, estando apta a alterar tanto os contextos europeus quanto os contextos americanos, como afirma Carlos Zeron [13].

Desejamos que a leitura deste dossiê forneça informações sobre os contextos e conteúdos analisados, da mesma maneira que suscite questionamentos sobre as temáticas apresentadas, conduzindo assim ao fomento de novas investigações. Na cena política contemporânea, em que assistimos à progressiva banalização e ao esvaziamento intelectual dos discursos políticos, esperamos que as análises aqui reunidas sirvam de contraste e recordem a afirmação basilar de Aristóteles sobre um dos aspectos cruciais da natureza humana ser precisamente a capacidade de comunicação política. Aproveitamos também para agradecer a todos e todas envolvidos na elaboração deste dossiê, especialmente aos autores e aos pareceristas. Boa leitura!

Notas

1. A tradução bilíngue que utilizamos emprega a palavra “político”, ao invés de “social”. A justificativa é que a palavra político representa melhor a inserção de todo ser humano na polis, a mais abrangente e superior forma de vida comunitária. Conforme, nota do tradutor: “O termo político (politikon) deve ser tomado na estrita acepção de “cívico”, isto é “participante da vida da cidade”, e não no sentido demasiado lato e fluído de “social”. In: ARISTÓTELES. Política; edição bilíngue. Tradução: António Campelo Amaral e Carlos Gomes. Lisboa: Vega, 1998. p. 595.

2. Ibidem, p. 55.

3. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo III. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

4. É certo que não devemos ser ingênuos e acreditar que apesar de um boom da história social e econômica, especialmente na França e na Inglaterra, a história política tenha sido completamente alijada da atenção historiográfica.

5. A coletânea organizada por René Rémond é um forte indício desse movimento. Ver: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.

6. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização, introdução e revisão Roberto Machado, 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.

7. COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida: 1960-1990. In: COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida e outros ensaios. São Paulo: Editora da Unesp, 2014. p. 15.

8. O diálogo com a antropologia propiciou um entendimento diferenciado acerca do que pode ser compreendido como cultura. Esta compreensão foi fundamental para o campo de investigação da cultura política.

9. Cf. GIL PUJOL, Xavier. Tiempo de Política; Perspectivas historiográficas sobre la Europa Moderna. Barcelona: Publicacions i Edicions, Universitat de Barcelona, 2006.

10. JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João. História dos conceitos: dois momentos de um encontro intelectual. In: JASMIN, Marcelo Gantus; FERES JÚNIOR, João (orgs). História dos Conceitos: Debates e perspectivas. Rio de janeiro: Editora PUC- Rio, Edições Loyola, IUPERJ, 2006, pp. 09-38, p. 11.

11. ASTON, Trevor (ed.). Crisis in Europe; 1560 – 1660. New York: Routledge, 2011.

12. MARAVALL, José Antonio. La Cultura del Barroco. Barcelona: Ariel, 1990.

13. Cf. ZERON, Carlos. Prefácio. In: GALERA, B.; SOALHEIRO, B.; SALGUEIRO, F.; VELLOSO, G.; SAENS, L.; LARA, L.; TORIGOE, L.; BERNABÉ, R. Exercícios de metodologia da pesquisa histórica. São Paulo: Casa & Palavras, 2015.

Camila Corrêa e Silva de Freitas

Rachel Saint Williams

Camila Corrêa e Silva de Freitas – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Atualmente, Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: camilacorreaesilva@gmail.com

Rachel Saint Williams – Organizadora do dossiê. Doutora em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Realizou Pós-doutoramento pelo programa de Pós-graduação em História da Universidade de São Paulo. E-mail: lwllsrachel@yahoo.com.br


FREITAS, Camila Corrêa e Silva de; WILLIAMS, Rachel Saint. Apresentação. CLIO – Revista de pesquisa histórica, Recife, v.36, n.2, jul / dez, 2018. Acessar publicação original [DR]

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Itamar Freitas

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