Diretório dos Índios: políticas indígenas e indigenistas na América portuguesa | SÆCULUM – Revista de História | 2021

Diretorio dos Indios Diretório dos Índios

O protagonismo dos povos indígenas no Brasil demorou a entrar na agenda da historiografia acerca da América Portuguesa, especialmente como indivíduos ou coletividades capazes de práticas políticas que poderiam decidir os seus destinos nos processos pós-contatos e diante da legislação indigenista. Incontáveis páginas foram escritas sobre o regime colonial nos trópicos sem que as suas agencias fossem mencionadas e até mesmo prevaleceram negações implícitas e explícitas sobre sua capacidade de ação, em estudos que tratam da política e da administração colonial portuguesa. As razões que procuram justificar operações historiográficas desse gênero têm sido de diferentes ordens. As mais frequentes são a alegação sobre a falta de fontes para inseri-los na historiografia, seu rápido e precoce “desaparecimento” das regiões conquistadas e colonizadas e a crença na desolação e na anomia dos indígenas, supostamente “incapacitados” de protagonismo histórico-social depois que foram conquistados e colonizados.

Não obstante, pesquisas históricas e antropológicas têm revisado esses argumentos. A publicação de guias e catálogos de fontes para a história indígena, como os organizados por John Monteiro na década de 1990 ou mais recentemente o dirigido por Juciene Ricarte Cardoso (2016), demostram que não é por falta de fontes que se explicará a ausência e/ou marginalização dos povos originários na tessitura da história colonial. Afinal, existem registros históricos importantes sobre as legislações indigenistas coloniais e muito material acerca das dinâmicas, contradições, práticas e vivências interétnicas na América Portuguesa [1].

Se existe um variado universo documental sobre os povos originários em arquivos no Brasil e no exterior, a explicação para a ausência dos povos indígenas na historiografia, especialmente em estudos mais sistemáticos, deve ser buscada em outro fator. Em parte, o que os mantém na periferia dos estudos é principalmente a crença na “irrelevância” dos indígenas para a construção do Brasil. A década de 1970 é reveladora do problema aqui levantado, pois ao mesmo tempo em que trouxe à lume uma historiografia sensível à presença dos povos originários, os tomavam fundamentalmente como “vítimas” e “vencidos”. John Hemming exemplifica bem esse ponto de vista derrotista e negacionista das agências indígenas no que tange ao Brasil e à América portuguesa. Ouro vermelho foi originalmente publicado em inglês na década de 1970 e, inegavelmente, é uma destacável e bem subsidiada pesquisa sobre as violências e violações legais ao direito dos povos enfrentadas pelos indígenas nas histórias de contatos com os colonizadores, que causaram epidemias, guerras, escravizações e impuseram a política de aldeamentos. A pesquisa de Hemming termina por volta de 1750 e, para o autor, isso se justifica porque “na época de Pombal os índios tinham-se tornado irrelevantes para o progresso da nação brasileira”. Além disso, assevera:

A população nativa foi aniquilada. […] Agora não havia temor aos índios, exceto entre os pioneiros das fronteiras. Havia pouco interesse pela mão de obra indígena, em geral muito insatisfatória, exceto em regiões interioranas empobrecidas, como a Amazônia. Restaram muito poucas marcas da herança indígena ao longo de quase todo o litoral brasileiro. Tudo o que se podia notar era o sangue indígena em muitas famílias descendentes de mamelucos e dos primeiros colonos.” (2007 p. 669)

Outro fator importante para explicar a marginalização ou a exclusão dos indígenas do campo historiográfico são os olhares e as perspectivas colonialistas que ainda informam e perpassam as operações historiográficas dominantes nos programas de pós-graduação no Brasil. Neste caso, discorre-se e problematiza-se a América portuguesa sem transversalizar a questão indígena em diferentes temas e domínios vinculados à sociedade colonial. No entanto, a mesma década de 1970 é também um marco de virada desse processo. Afinal, trata-se de um momento em que a historiografia se tornou mais sensível aos movimentos indígenas e às agendas das diferentes organizações que surgiram nesse período. Lideranças e coletivos indígenas evocavam a história como peça fundamental de suas lutas e reivindicavam novas perspectivas sobre o passado que pautassem e reconhecessem a presença imemorial dos povos originários e seus protagonismos. Dentre outros objetivos, reivindicavam uma historiografia que subsidiasse suas reivindicações para a legalização e a titulação de seus territórios, histórico e simbolicamente formados, vivenciados e reafirmados em práticas sociais e em cosmologias. Portanto, a reelaboração da história era urgente para desfazer os discursos pessimistas e colonialistas que direcionavam os homens e mulheres indígenas a eternas vítimas, sem perspectivas para o futuro e sem capacidade de dar contribuições socioculturais.

Em maior sintonia com os indígenas e suas agendas, diferentes pesquisadores e programas de pós-graduação no Brasil, nas áreas da antropologia e da história, construíram pontes e articulações acadêmicas e políticas com o movimento indígena. Desse modo, foram surgindo novas pesquisas, dando visibilidade às diferentes práticas políticas e anseios indígenas, a partir de novos e antigos documentos, e por meio de renovadas propostas teórico-metodológicas e interdisciplinares. Esse novo olhar sobre os povos originários na história do nosso país deu origem a um campo da historiografia que tem sido frequentemente denominado de nova história indígena e do indigenismo. Em 1991, por exemplo, Nádia Farage publicou As muralhas dos Sertões: povos indígenas no Rio Branco e a colonização, mas as raízes de seus estudos eram mais profundas, e estavam nos anos 70 do século XX, quando a sociedade civil e intelectuais de diferentes áreas se mobilizaram para a defesa dos direitos territoriais dos povos indígenas, seriamente ameaçados pelos projetos de desenvolvimento encabeçados e/ou protegidos pelo regime civil-militar de 1964 (FARAGE, 1991, p. 19).

O livro Farage saiu publicado na mesma época de outras obras importantes, que também delinearam a estruturação da nova história indígena, como El guaraní conquistado y reducido (MELIÀ, 1988), História dos índios no Brasil (CUNHA, 1992) e Negros da terra (MONTEIRO, 1994). Desenvolvendo-se no contexto do Tratado de Madri, quando estavam sendo discutidos e demarcados os limites das possessões das coroas ibéricas na América, o livro de Farage merece ser particularmente destacado nesse ensaio porque se tornou um marco importante da construção da história dos povos indígenas durante o Diretório dos Índios. Dentre outras conclusões importantes que podemos extrair desse pioneiro estudo, é que a história política colonial e a história indígena andavam juntas, especialmente no tocante às questões geopolíticas.

Na história indígena e do indigenismo no Brasil, o Diretório que se deve observar nas Povoações dos Índios do Pará e Maranhão enquanto Sua Majestade não mandar o contrário se tornou um instrumento legal que colocou os povos indígenas, inicialmente da Amazônia, como o principal fator para garantir os interesses territoriais portugueses nas disputas das fronteiras internacionais entre as duas coroas ibéricas no período setecentista. Como observou Mauro César Coelho, o Diretório justificava-se principalmente pela necessidade de ocupar o território e de obter controle e domínio das fronteiras nas possessões ultramarinas. Nesse quadro, atribuía-se aos indígenas funções estratégicas para fortalecer a presença lusa nos espaços amazônicos e em outras capitanias da América Lusa. Em razão disso, escreve Coelho: “Nesse sentido, questionamos as análises que remetem o Diretório dos Índios e a política indigenista que o constituiu a expressões da influência iluminista”, tal como foi defendido por Rita Heloísa de Almeida no seu livro O Diretório dos Índios: um projeto de civilização no Brasil do século XVIII, publicado pela editora da Universidade de Brasília em 1997 (COELHO, 2013, p. 105).

Na prática cotidiana vigente na colônia, a lei do Diretório foi transgredida, adaptada às diferentes regiões e necessidades e mobilizada e/ou ignorada em razão dos interesses e dos protagonismos dos indígenas, povos e comunidades tão diversos entre si se consideramos suas diferentes etnicidades. A nova lei foi também um elemento crucial na gestão das relações interétnicas, inaugurando novas circunstâncias e territorialidades simbólicas, ao mesmo tempo que estabelecia uma relação intertextual com toda a legislação que a precedia. Desse modo, a interpretação do Diretório como expressão de uma temporalidade histórica evoca permanências, mudanças, ressignificações, processos adaptativos, acomodações e guerras ocorridos em diferentes contextos territoriais e ambientais da América Portuguesa.

O Diretório Pombalino ou simplesmente Diretório dos Índios está estruturado por um conjunto de códigos normatizadores e pragmáticos e por léxicos variados, traduzindo em seus 95 parágrafos uma complexa síntese de rupturas e continuidades da política indigenista até então praticada. Direcionava e estimulava um processo ininterrupto da colonização da região amazônica e depois foi estendido às demais capitanias da América portuguesa. Na historiografia tradicional, no entanto, foi analisado de forma muitas vezes generalista, como se a dita lei tivesse sido aplicada uniformemente no vasto território colonial (CANCELA, 2013). Em outras palavras, até bem recentemente a historiografia não levou em consideração as diferentes historicidades e as etnicidades indígenas no que se refere às recepções, traduções e práticas no interior do regime do Diretório.

Outro aspecto pouco observado nas operações historiográficas de corte tradicional são as violações dos direitos territoriais indígenas durante o regime do Diretório, como as transferências de grupos étnicos de seus biomas ancestrais para outras paisagens naturais completamente diferentes. Isso ocorreu, por exemplo, com os Kariri na capitania da Paraíba, que foram arrancados das suas aldeias/missões na mata da Caatinga para povoarem as novas vilas de índios na Mata Atlântica. O Diretório foi também um momento de reacomodação dos indígenas em novos contextos políticos e jurídicos. Diante de tais imposições, observa-se na documentação que as lideranças indígenas souberam agenciar em favor das suas pautas coletivas econômicas, políticas e étnicas e também individuais, no cotidiano das vilas e lugares (APOLINÁRIO, 2018, p 156).

Desde a publicação As muralhas do sertão muitos estudos foram feitos rompendo antigos paradigmas sobre o lugar dos povos originários na cena histórica colonial, cobrindo diferentes regiões. Sobre o período do Diretório a lista é longa, mas vale lembrar alguns: para Amazônia colonial, os de Sommer (2000), Domingues (2000), Coelho (2007) e Sampaio (2012); para as chamadas capitania do Norte os de Lopes (2015), Silva (2005), Maia (2010), Medeiros (2011), Costa (2015) e Apolinário (2018); para Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo os de Marcis (2013), Cancela (2018) e Moreira (2019), e para Goiás, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul os de Apolinário (2007), Almeida (2003) e Garcia (2007).

Neste número da Revista Saeculum está sendo publicado o dossiê Diretório dos Índios: políticas indígenas e indigenistas na América portuguesa, dando continuidade a renovação historiográfica do campo da história indígena no Brasil. Um dossiê composto por artigos que vem reafirmar que os indígenas, em suas múltiplas etnicidades e mesmo diante de inúmeras violações de seus direitos, foram atuantes em todos os níveis do processo histórico. Receberam e traduziram a lei do Diretório, juntamente com colonos e administradores locais, conforme os seus interesses, objetivos, lutas e disputas de poderes. O público leitor terá acesso a onze artigos e estes demonstram que os indígenas não estavam nem derrotados durante o regime do Diretório e muito menos desaparecidos da faixa costeira brasileira. Continuavam sua trajetória histórica como grupos étnicos ressignificados em novos processos de territorialidades físicas e simbólicas, construindo espaços de sobrevivência enquanto indivíduos e coletividades.

No artigo Miséria e pobreza” nas vilas de índios sob o Diretório Pombalino: condições econômicas, produção de subsistência e resistências indígenas, Fátima Martins Lopes trata da situação econômica complexa vivenciada pelos indígenas vilados, normalmente afetada pela periodicidade das estiagens; pelas demandas dos colonos e autoridades luso-brasileiros oriundas dos mercados regional e internacional; pela estrutura da divisão das terras em pequenos lotes, que acelerava o processo de empobrecimento da terra; e pela imposição aos índios da prestação de serviços aos colonos. Todavia, a autora reafirma que não se pode deixar de considerar a insistente resistência indígena em assumir as regras econômicas que o Diretório queria impor.

Em Registros de Fundações, Ereções e Posses de Vilas: um olhar sobre as vilas de índios do Maranhão, Soraia Dornelles discute a formação das vilas a partir de documentação primária inédita, propondo uma abordagem inovadora acerca do conjunto de informações contidas no Livro de Registros de Fundações, Ereções e Posses de Vilas (1757-1767). A partir disso, problematiza a eficiência do projeto de integração dos indígenas à colonização, frente à inquestionável permanência das identidades indígenas no Maranhão pós-pombalino.

Em Freguesias de índios na antiga capitania de Porto Seguro: administração religiosa, atuação dos párocos e protagonismo dos paroquianos indígenas no tempo do Diretório, Francisco Cancela examina as freguesias de índios na antiga capitania de Porto Seguro entre a segunda metade do século XVIII e início do século XIX. Nesse período, tanto a igreja secular quanto a política indigenista viviam o auge das medidas reformistas, que impactaram diretamente no cotidiano e na organização social das populações indígenas. O principal argumento apresentado pelo autor sublinha que a instalação e a administração das freguesias de índios reforçaram o processo de territorialização vivenciado pelos povos indígenas da região.

No artigo De aldeias a vilas de índios: a atuação do Conselho Ultramarino na Bahia e os agentes de letramento indígena, Pedro Daniel dos Santos Souza promove uma discussão sobre a atuação do tribunal especial do Conselho Ultramarino instalado na Bahia, em 1758, que tinha como um dos objetivos proceder à execução do alvará de 8 de maio de 1758 e, consequentemente, à nova política indigenista do governo de D. José I. Dá-se especial atenção às deliberações que tiveram impactos sobre o processo de escolarização e letramento indígenas, na medida em que apontam indícios para uma maior compreensão da história social linguística da Bahia, na segunda metade do século XVIII e limiares do século XIX.

Em Rupturas e permanências nas povoações indígenas da Bahia: o Diretório pombalino (1758-1798), Fabricio Lyrio Santos discuti a recepção e a implantação do Diretório dos Índios na antiga capitania da Bahia, buscando evidenciar as adaptações promovidas pelas autoridades locais, tendo em conta as dinâmicas políticas envolvidas e os diferentes interesses em jogo. O autor evidencia que apesar de seu caráter de política oficial, o Diretório terminou por não ser integralmente aplicado na Bahia, o que não impediu que provocasse importantes rupturas no funcionamento e na dinâmica interna das povoações indígenas, divididas em vilas, missões e aldeias, assim como no protagonismo de seus moradores.

Quanto ao texto Políticas indígenas e indigenistas no Continente de São Pedro na segunda metade do século XVIII, Karina Moreira Ribeiro da Silva e Melo analisa as maneiras através das quais as políticas indigenistas foram vistas e praticadas por sujeitos históricos relacionados à formação e à manutenção de dois aldeamentos indígenas na segunda metade do século XVIII. A autora discorre que os indígenas, as autoridades coloniais e a sociedade envolvente estabeleceram conflitos e alianças em torno das diretrizes assimilacionistas oriundas do Diretório dos Índios e do contexto do estabelecimento de fronteiras na região platina.

Em “Com amor às terras que habitam”: conflito pela posse de terra na ribeira do Ceará-Mirim e concepções de propriedade, Rio Grande do Norte, 1725-1761, Ana Lunara da Silva Morais analisou a imposição de uma mentalidade proprietária familiar aos indígenas, operada por meio das obrigações do Diretório dos Índios (1758). Informa que a citada lei determinou que as terras comunais indígenas, as quais foram frequentemente usurpadas por colonizadores, fossem divididas em lotes, isto é, como residências familiares individuais. Constatou-se que os índios de Guajiru apenas receberam terras de qualidade inferior, vizinhas ao antigo aldeamento, para, segundo as autoridades responsáveis, fomentar o projeto colonial do Diretório.

O artigo “Que fique a dita vila na mesma tranquila posse”: sobre a viabilidade política e financeira das câmaras municipais de vilas de índios no Ceará oitocentista, João Paulo Peixoto Costa abre um espaço para discutir as atuações das câmaras municipais das vilas de índios no Ceará, enquanto instituições financeiramente insustentáveis. Responsáveis por gerir territórios municipais diminutos, uma população paupérrima e ainda sob a vigência da lei setecentista do Diretório dos Índios que limitava suas atividades comerciais, os conselhos eram ocupados por indígenas e outros não-índios, frequentemente acusados de incapazes. Ainda assim, diante de tantas adversidades, seus componentes atuavam como podiam para mantê-las de pé e ainda enfrentavam eventuais abusos de representantes da justiça metropolitana.

Em A transformação dos índios aldeados em índios vilados: o Diretório dos Índios no Ceará, circulação e reelaboração identitária, Ticiana de Oliveira Antunes informa que, no período entre a reforma pombalina e a segunda década do século XIX, os povos indígenas se deparam com uma política de controle social no Ceará, inaugurando um momento de mudanças no modus vivendi dos antigos aldeamentos transformados em vilas pombalinas. A autora assevera que os povos indígenas responderam a essa nova realidade intensificando seus movimentos de circulação pelo território cearense, acionando redes de apoio e reelaborando suas identidades em prol de defender seus interesses.

Em “O Diretório Pombalino”: legislação e liberdades indígenas na capitania do Siará Grande, Reinaldo Forte Carvalho procura refletir sobre as políticas indigenistas implantadas na capitania do Siará Grande durante o século XVIII. O objetivo central é analisar como as populações indígenas se apropriaram de suas liberdades e autonomias, frente a implantação da legislação dos regulamentos do Diretório Pombalino em meio ao processo colonizador português. Especificamente, analisa-se as políticas indigenistas que foram implantadas no contexto colonial português no final dos séculos XVII ao XVIII; investiga-se, como foi posta em prática a legislação indigenista nos aldeamentos da capitania do Siará Grande pelo Império português, desde o funcionamento dos regulamentos até a implantação da política pombalina a partir de 1757.

No artigo de Robeilton de Souza Gomes e Márcia Eliane Alves de Souza e Mello, intitulado “‘Sua Majestade é servida?’ O processo de construção da Lei de Liberdade dos índios do Grão-Pará e Maranhão (1751-1759)”, os autores discutem o projeto de liberdade dos índios do Estado Grão-Pará e Maranhão, desde o decreto régio de 1751, passando pela minuta da lei em 1753, até a assinatura do alvará com força de lei de junho de 1755, na Corte, e sua publicação na colônia apenas em maio de 1757. A legislação coloca em evidência as injunções que o projeto colonialista sofreu. A pesquisa é subsidiada pela correspondência trocada pelo governador Mendonça Furtado e demais autoridades régias, no sentido de evidenciar o quanto a sua experiência na administração ultramarina ajudou a formular e pôr em prática a nova política pensada para os territórios do norte da América Portuguesa na segunda metade do século XVIII.

Os onze artigos apresentados para o presente dossiê vieram trazer outras historicidades sobre a lei do Diretório dos Índios, confirmando a dinamicidade e complexidade nos processos de tentativas de implantação e reorientação das vivências e relações interétnicas dos diferentes povos originários e seus diversos processos de territorialidade. Ocorreram travessias de fronteiras e imposições, como o do uso obrigatório da Língua Portuguesa, para que se impedisse que as línguas indígenas fossem perpetuadas e retomadas. Contrariando alguns discursos historiográficos que narraram de forma derrotista as ressignificações indígenas, malgrado as readaptações do Diretório nos interiores da América Portuguesa, verifica-se nos artigos mencionados que, de uma forma geral, com a supressão do Regimento das Missões e a subsequente instalação do Diretório dos Índios – transferindo povos inteiros de aldeias às novas vilas e lugares indígenas, passando a administração dos antigos aldeamentos das mãos dos religiosos para a dos agentes coloniais laicos – os indivíduos originários não desapareceram ou ficaram invisibilizados. Ao contrário, circularam e se apropriaram das práticas culturais ocidentalizadas, como mal menor diante da possibilidade de perda das suas vidas e enquanto alteridades. Souberam criar agências adaptativas em prol da sobrevivência e lidaram com as pressões da sociedade envolvente não-indígena no sentido de destruí-los ou assimilá-los. Um processo, aliás, que continua nos dias atuais.

Em nosso tempo presente, os povos indígenas novamente lutam e agenciam ações políticas orquestradas contra a aprovação de mais um Projeto de Lei que altera a legislação da demarcação de suas terras. O ponto mais polêmico do PL 490/2007 trata do marco temporal e prevê que só poderão ser consideradas terras indígenas aquelas que já estavam em posse desses povos na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, passando a exigir, dessa forma, uma comprovação de posse, o que hoje não é necessário. O texto ainda flexibiliza o contato com povos isolados, proíbe a ampliação de terras que já foram demarcadas e permite a exploração de terras indígenas por garimpeiros. É um retrocesso histórico inaceitável, que a Organização dos Povos Indígenas no Brasil e o Parlamento Indígena no Brasil estão em plena luta, junto com às instituições e organizações parceiras, em mobilização permanente para tentar impedir que os interesses da elite do atraso sejam vitoriosos e os direitos indígenas nacionais e internacionais em nosso país violados. Como se vê, a história dos povos indígenas continua e é um ledo engano buscar compreendê-los sem acessar suas experiências históricas e sem fazer uso da historiografia.

Nota

1. Monteiro, 1994; Cardoso, 2016. Ver também, Silva, 2017.

Referências

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Organizadores

Juciene Ricarte Apolinário – Professora da Universidade Federal de Campina Grande, pesquisadora da história indígena e vem publicando sobre memória e documentos indígenas, legislação e direitos indígenas, educação escolar Indígena, gênero e mulheres indígenas, conhecimentos ancestrais e plantas. Pesquisadora colaboradora do CHAM, Universidade Nova de Lisboa, no Grupo de Pesquisa Mundos Indígenas, pesquisadora Associada ao CREPAL, Universidade Sorbonne Paris III. Pesquisadora do grupo ProjetAH – História das Mulheres, Gênero, Imagens, Sertões, UFPB/CNPq. Pesquisadora da Red de Investigaciones sobre Estudios desde/sobre/con Pueblos Indígenas, Argentina. Membro do GT da ANPUH Nacional Índios na História. E-mail: apolinarioju18@gmail.com  https://orcid.org/0000-0003-1142-7133

Vânia Maria Losada Moreira – Possui graduação em História pela Universidade de Brasília (1986), doutorado em História pela Universidade de São Paulo (1995) e pós-doutorado pela Stanford University (Estados Unidos, 1999/2000) e pelo Consejo Superior de Investigación Científica (Espanha, 2016). É Professora Titular da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), do Programa de Pós-Graduação em História da UFRRJ e Pesquisadora 2 do CNPq. Atualmente, dedica-se à pesquisa em História Social e Política, com ênfase na História dos Indígenas (Brasil – séculos XVIII e XIX). Participa de redes de discussão sobre a questão indígena no período colonial e no processo de formação dos Estados nacionais na América Latina, envolvendo investigadores de diferentes instituições e países. E-mail: vania.vlosada@gmail.com  https://orcid.org/0000-0002-0661-499X


Referências desta apresentação

APOLINÁRIO, Juciene Ricarte; MOREIRA, Vânia Maria Losada. Diretório dos Índios entre recepções, traduções e novas operações historiográficas. SÆCULUM – Revista de História. João Pessoa v. 26, n. 44, p. 281-289, jan./jun. 2021. Acessar publicação original [DR]

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