Direito e autoritarismo: juristas e cultura jurídica em regimes de exceção e ditaduras | História do Direito | 2021
Esse terceiro número da RHD, História do Direito – Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito, que corresponde ao segundo número do ano de 2021, constitui o primeiro dossiê temático do periódico. A revista, de fato, tem como plano que o segundo número de cada ano aborde uma problemática específica que seja de interesse da disciplina. E a leitora e o leitor agora têm em mãos o nosso primeiro dossiê.
Muitas vezes historiadores do direito devem suportar perguntas incautas (feitas às vezes por ingenuidade, outras por ignorância) sobre a “utilidade” de sua disciplina, ou ainda irônicas, sobre a sua “atualidade”. Se não for uma pergunta maliciosa, a verdade é que se trata, claro, de uma pergunta complexa e que poderia abrir toda uma sessão pertinente de discussões sobre a teoria da história. Muitos colegas qualificados poderiam trazer questões pertinentes sobre a relação entre a teoria e a prática no âmbito de nossas discussões acadêmicas; poderiam fazer um debate sobre como o excessivo pragmatismo acadêmico (filho dileto dos tempos contemporâneos) pode ser nocivo para a compreensão adequada daquilo que somos e fazemos; poderiam também demonstrar como sem adequados níveis de compreensão da experiência jurídica passada, o jurista contemporâneo sempre será um tanto deficitário. Ou, como também já vi acontecer, um colega mais indulgente poderia simplesmente sorrir, achando que o interlocutor não vale o debate, talvez juntando a isso um lamento silencioso sobre o empobrecimento da nossa cultura.
Mas este dossiê agora publicado – que tem como tema “Direito e autoritarismo: juristas e cultura jurídica em regimes de exceção e ditaduras” – também pode servir como resposta a essa provocação imaginária. Afinal, parece ser consenso, aqui ou fora daqui, que um dos temas mais candentes e relevantes de nosso tempo é justamente o do autoritarismo, dos regimes de exceção e, claro, o da forma como eles se relacionam com os respectivos regimes jurídico-políticos. O modo como se dá essa relação é cada vez mais complexo na contemporaneidade: afinal, percebe-se com clareza que as atuais estratégias autoritárias de corrosão da democracia estão se valendo cada vez mais dos mecanismos da própria democracia para, num imenso paradoxo, atingi-la; bem como tem-se visto que os ataques às liberdades se valem cada vez mais de uma retórica supostamente libertária para erodir os seus próprios fundamentos. Na contemporaneidade, parece que o uso da democracia e da liberdade (ainda que um uso estratégico e deturpado) sejam os caminhos usados mais frequentemente para acabar com a própria democracia e com as liberdades. Ou seja: parece que hoje é menos frequente um ditador que decrete a suspensão da Constituição, das Cortes Constitucionais e dos parlamentos do que um autocrata que os mantenha, mas ao mesmo tempo os aparelhe, os ressignifique e os amesquinhe, sem renunciar, porém, a fazer tudo isso em nome das “verdadeiras” liberdade e democracia.
Tudo isso mostra uma coisa: que essas transformações e esses movimentos são essencialmente históricos e demandam urgentemente a nossa compreensão.
Isto não significa, claro que as diferenças entre passado e presente não sejam espessas e nem significa que se faça uma ligação plana, simples e automática entre as experiências passadas e a sua “atualidade”. Hoje estamos longe, do ponto de vista epistêmico na nossa disciplina, da ciceroniana convicção de que historia vitae magistra. No entanto tudo isso significa, sim, que as relações entre política, direito e autoridade têm uma densidade e uma complexidade que demandam escavação, reflexão e pesquisa. Demandam, enfim, uma atenção à teoria, sem a qual a interpretação da prática contemporânea vira mero opinionismo voluntarista, com a mesma duração explicativa de um fio do twitter. E é aqui que a história do direito entra como uma instância de enorme importância: não para conectar de modo ligeiro conclusões do presente hauridas deste ou daquele passado, mas para, nas palavras de Walter Benjamin, “apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo”, reconhecendo o momento em que o presente se sente visado pelo passado.
E as reflexões da disciplina histórico-jurídica sobre as experiências autoritárias do passado compõem já há muito tempo um patrimônio reflexivo valioso, há muito cultivado e que agora “relampejam” (como diria o mesmo Benjamin) com força no nosso tempo.
Bem o demonstra a seção teórica deste dossiê (“Ferramentas”), que já inicia com a reflexão proposta por Paolo Grossi acerca do relevante papel desempenhado pela História do Direito na formação do jurista contemporâneo: em A História do Direito em uma Faculdade de Direito, hoje, o autor demonstra a sua importância como disciplina formativa, em vista da necessidade de superação da estrita estatalidade do direito moderno por uma visão mais atual, complexa e socialmente dinâmica do ordenamento jurídico. Logo em seguida passamos à abordagem teórica das relações entre direito e autoritarismo, com o estudo de Pietro Costa sobre as contribuições de Fraenkel, Neumann e Arendt à compreensão da teoria jurídica do totalitarismo, demonstrando, em Il momento giuridico nella costruzione del ‘modello’ totalitario: Ernst Fraenkel, Franz Neumann, Hannah Arendt, como as radicais transformações promovidas pela Alemanha nazista e pela Rússia bolchevique nas concepções de Estado e Lei são um marcador decisivo do caráter “totalitário” desses regimes. Em La Costituzione Invisibile – costituzione e democracia alla prova dell’emergenza: riflessioni di um melanconico Paolo Cappellini pondera os riscos do autoritarismo no tempo presente, sugerindo que a gestão constitucional e legal da emergência COVID-19 promove uma distorção biopolítica da noção de vida que pode levar ao eclipse da relação entre liberdades e democracia. A seção é encerrada com o estudo teórico-histórico de Christian Edward Cyril Lynch acerca das relações entre judiciarismo e autoritarismo; no texto intitulado Entre o judiciarismo e o autoritarismo: o espectro do poder moderador no debate político republicano (1890-1945) o autor investiga os diferentes sentidos atribuídos ao conceito de poder moderador durante a República brasileira, argumentando que cada corrente política se agarrou a uma interpretação distinta do conceito para interpretá-lo e justificar diferentes reformas – a autoritária, que fortaleceria o Presidente da República, a judiciarista, que fortaleceria o Supremo Tribunal Federal e a moderada, que recriaria um quarto poder na forma de um conselho de Estado.
A seção empírica do dossiê (Experiências) inicia com o artigo de Tatiana de Souza Castro e Gabriel Faustino dos Santos sobre A Revisão Constitucional de 1926 e a tutela dos direitos individuais: um ensaio sobre os efeitos da limitação do habeas corpus na prática jurisprudencial do STF; os autores examinam o processo legislativo que precedeu a revisão de 1926 e alguns processos de habeas corpus posteriores à reforma para buscarem compreender como ela foi debatida sob estado de sítio e quais foram os seus efeitos sobre a tutela jurídica de direitos fundamentais, concluindo que o contexto autoritário contribuiu para a limitação do uso do habeas corpus e que a adequação jurisprudencial a esse novo sentido legislativo não ocorreu de forma automática. Em “Un país de Constitución abierta”. Las “leyes fundamentales” y la modernización del franquismo, Alfons Aragoneses e Jordi Cerdà Serrano analisam as diversas “leis fundamentais” do regime de Franco e o processo de ressignificação ao qual foram submetidas no final da era franquista.
Luis Rosenfield, Victor Hugo Criscuolo Boson, Francisco Rogério Madeira Pinto e Mário André Machado Cabral se debruçam, em seus artigos, sobre a experiência jurídica do autoritarismo estadonovista. Em Karl Loewenstein no Brasil de Vargas: o olhar de um jurista judeu-alemão sobre o Estado Novo, Rosenfield promove uma reconstrução dos elementos centrais da viagem de Loewenstein à Amércia Latina, com especial atenção à sua experiência no Brasil. Boson analisa, em Formulações autoritárias e realismos em Oliveira Vianna: variações na política e no direito corporativo, duas proposições de Oliveira Vianna para a agenda institucional brasileira na primeira metade do século XX: o idealismo orgânico para as reformas políticas e o poder normativo para os juízes do trabalho, ambas como parte do seu “autoritarismo instrumental”. Madeira Pinto também se dedica ao pensamento de Oliveira Vianna em A Administrativização do direito constitucional: Oliveira Vianna e a absorção dos poderes legislativos e judiciário pelas corporações administrativas, analisando as propostas do autor para a construção de uma nova forma de organização do Estado a partir de um modelo administrativista inspirado em órgãos técnico-burocráticos com o objetivo de legitimar a institucionalidade autoritária de um Poder Executivo hipertrofiado. Cabral, por fim, analisa o papel desempenhado pelo pensamento autoritário de Francisco Campos na criação da legislação concorrencial brasileira em Autoritarismo e Gênese Antitruste: Francisco Campos e a imaginação concorrencial no Estado Novo.
A juridicidade dos regimes militares que assolaram a América Latina na segunda metade do século XX é examinada por Eric Palma González e Francisco Zuñiga Urbina, Heloísa Fernandes Câmara, Cristiano Paixão e Claudia Paiva Carvalho e André Del Negri. González e Urbina analisam os fundamentos jurídicos dos decretos-lei editados pela ditadura chilena em La doctrina del gobierno de facto y las Actas Constitucionales de 1976: Juristas chilenos avalando decretos leyes. No artigo intitulado Genealogia e usos do Ato Institucional – inclusão da excepcionalidade na ordem constitucional, Câmara realiza uma genealogia do ato institucional para compreender as ambiguidades constitutivas do constitucionalismo brasileiro, que envolvem a convivência entre normalidade e exceção. Paixão e Carvalho demonstram, ao analisarem a Emenda Constitucional nº 22/1982, como a proposta do governo reiterou a prática da ditadura de alterar as regras do processo legislativo e as normas eleitorais com a finalidade de conservação do poder, concluindo que as ações do regime não eram destinadas a promover a transição para a democracia, mas visavam manter controle sobre o processo de abertura – em Mudança constitucional, luta política e o caminho para a democracia: uma análise do “emendão” de 1982. E Del Negri avalia, em Os juristas, o regime militar de 1964 e personalidades autoritárias que cruzaram o marco da Constituição de 1988, o que falhou na transição democrática depois da Constituição de 1988 a fim de compreender o autoritarismo do governo brasileiro entre 2018 e 2021.
Por fim, o dossiê se encerra com duas resenhas: em O Fascismo em Ação: as dinâmicas institucionais na história de uma ditadura, Massimo Meccarelli analisa o livro de Guido Melis (La macchina imperfetta. Immagine e realtà dello Stato fascista, il Mulino, 2018) dedicado aos fenômenos jurídico-políticos do Estado fascista. E em O Direito Administrativo do Estado Interventor Walter Guandalini Junior e Lívia Solana Pfuetzenreiter de Lima Teixeira examinam a obra de Mauricio Mesurini da Costa (O Estado Interventor no Brasil e seus reflexos no direito administrativo e constitucional (1930-1964): Themistocles Cavalcanti e sua contribuição doutrinária, Dialética, 2021), que se debruça sobre o pensamento (e o autoritarismo) de um dos mais importantes cultores do direito administrativo brasileiro.
Que o leitor aproveite e usufrua este novo número da Revista História do direito: Revista do Instituto Brasileiro de História do Direito (RHD).
Organizadores
Ricardo Marcelo Fonseca – Editor-chefe.
Walter Guandalini Junior – Editor Executivo.
Referências desta apresentação
FONSECA, Ricardo Marcelo; GUANDALINI JUNIOR, Walter. Apresentação. História do Direito. Curitiba, v. 2, n. 3, p.8-11, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]