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Direitas, história e memória / Faces de Clio / 2016

A Revolução Francesa ocorrida no século XVIII é amplamente difundida pela representatividade do evento na história do Ocidente. Entre outras coisas, ela legou ao mundo a dicotomia política que opõe os chamados grupos de direita e de esquerda. Desde então, esses conceitos foram apropriados, relidos e reinterpretados, porém tornando-se termos comuns no vocabulário político.

O século XX contribuiu para fortalecer essa oposição através, especialmente, da Guerra Fria, que opôs o bloco capitalista e o bloco socialista por cerca de 50 anos em estado de tensão permanente, mantendo vivo o forte enfrentamento entre as partes. As vivências verificadas em tal século marcaram intensamente a disputa política entre atores alinhados às ideias de cada parte, de tal forma que essas oposições ainda se fazem presentes e são recorrentemente evocadas em discursos.

Dentre as conceituações atribuídas aos termos direita e esquerda, ganharam notoriedade as reflexões do italiano Norberto Bobbio [1]. Em que pesem as muitas contestações sobre o uso de tais categorias políticas e as diferentes interpretações dos termos, suas ideias têm aparecido de modo destacado nos trabalhos acadêmicos, seja através de sua adoção ou mesmo de sua crítica. Assim, não há consenso que delimite de forma definitiva a conceituação de ambos os termos. Há, na verdade, embates bibliográficos que também são tensos, refletindo o perfil histórico da abordagem dos termos.

De toda forma, é crucial ressaltar que, durante muito tempo, houve substancial interesse de pesquisadores pelo campo da esquerda política, através do qual investigou-se, por exemplo, movimentos sociais, as resistências em contextos autoritários ou os partidos de esquerda, que mais frequentemente estiveram na oposição. Para isso, é natural se observar que o marxismo exerceu profunda influência na produção historiográfica no decorrer do século XX, pautando pesquisas pelos aspectos da luta de classes ou do materialismo histórico-dialético. Recentemente, contudo, cada vez mais pesquisadores têm se atentado para o estudo dos partidos e dos movimentos de direita, abordando suas mais diversas perspectivas teórico-analíticas possíveis. No que concerne às pesquisas brasileiras, cumpre-se destacar que tal movimento enfatizando a abordagem das manifestações da direita política é muito decorrente das pesquisas que se iniciaram acerca do integralismo. Esta manifestação de aspectos fascistas surgida na década de 1930 tornou-se alvo de importantes pesquisas na segunda metade do século XX, chamando a atenção de outros pesquisadores para a investigação de um campo ignorado e que já fora mesmo rejeitado. Hoje, as pesquisas acerca do integralismo brasileiro são múltiplas e estão espalhadas pelo território adotando diversas abordagens. Mais do que isso, no entanto, existe muito mais fundamentação investigativa disponível sobre outras manifestações alinhadas com posicionamentos da direita política, como bem demonstra esta edição da revista Faces de Clio.

Ainda discorrendo sobre as pesquisas e seus pesquisadores, o dossiê da presente edição se vincula diretamente com uma rede de pesquisa internacional homônima, “Direitas, História e Memória” ( https: / / direitashistoria.net / ). Fruto de um significativo crescimento das investigações acerca das direitas, a rede congrega pesquisadoras e pesquisadores de diversos países que se dedicam a analisar as direitas, no plural, uma vez que não se compreende tal posicionamento político como algo monolítico. A rede de investigação também existe formalmente no Brasil reconhecida como Grupo de Trabalho da Associação Nacional de História (ANPUH) desde 2015, sendo composto por suas células estaduais em Minas Gerais, no Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Desde 2014, no entanto, a rede de pesquisa se manifesta através de eventos acadêmicos e de publicações direcionadas para a temática abordada. Nesta edição da revista Faces de Clio, inclusive, estão presentes textos de vários membros da rede, com destaque para os artigos escritos pelos seus coordenadores gerais, Janaína Cordeiro e Odilon Caldeira Neto, e para um importante membro internacional, Werner Bonefeld, da Universidade de York.

A publicação desta edição acontece em momento muito oportuno para semear as reflexões sobre as direitas. Percebe-se, atualmente, a emergência de atores e grupos políticos que se vinculam com discursos e pensamentos ditos de direita não apenas no Brasil, mas em todo o mundo. Em nosso país, estamos testemunhando um processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff que, para além do mérito do crime sobre a qual é acusada, é significativamente impulsionado por grupos de direita. Em manifestações recentes nas ruas do país, tornou-se evidente, mais uma vez, a dicotomia direita e esquerda. Em caminho preocupante, agravam-se as manifestações de extremismo e de intolerância política. Mas tal condição não é uma particularidade nossa, ela se revela como uma nova onda mundial de conservadorismo. Na América do Sul, países vizinhos como Argentina e Peru já elegeram governantes provenientes das direitas que expressam tal condição de maneira mais contundente. Mais ao norte do continente, Donald Trump ganha espaço na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos com discursos agressivos que ameaçam estrangeiros e muçulmanos, por exemplo. Na Europa, a extrema direita tem se tornado mais presente no cenário político, conquistando adeptos e mesmo interesses arrojados, como é o caso da saída do Reino Unido da União Europeia.

Em suma, as ideias das direitas estão presentes nos discursos políticos de vários locais do mundo atual. Ainda que identificadas, é preciso que mais análises se desenvolvam sobre seus conteúdos, principalmente no que se refere a revelar os excessos que extrapolam alternativas sobre modos de condução da economia ou atuação do Estado, mas as perspectivas que colocam em risco os direitos e as liberdades.

A edição que ora se apresenta da revista Faces de Clio traz em seu dossiê uma ampla abordagem sobre tais direitas na história. Nele é possível encontrar análises sobre regimes, movimentos e partidos políticos, religiosidade, gênero, trajetórias, abordagens econômicas e sistêmicas. Oferecendo, assim, uma frutífera contribuição para a compreensão do mundo atual.

Abrem a edição Lívia Magalhães e Janaína Cordeiro, Professoras substituta e efetiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal Fluminense (UFF) respectivamente. As historiadoras analisam a relação existente entre o futebol e as ditaduras militar na Argentina e no Brasil por meio dos discursos de Presidentes que se apropriaram dos êxitos de seus países nas Copas do Mundo de futebol de 1970 e 1978 para fortalecer seus projetos nacionais e seus regimes de governo.

Odilon Caldeira Neto, Professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), explora as “novas direitas” no Brasil, analisando as especificidades da Frente Nacionalista, um grupo de orientação neofascista na atual conjuntura de crise política e de polarização ideológica.

Há também uma especial participação do Professor Werner Bonefeld, da Universidade de York – Reino Unido, que, em seu artigo, apresenta algumas de suas reflexões sobre o ordoliberalismo alemão, cuja ideologia é apontada como a orientadora da zona do Euro. Em sua abordagem, o autor recupera as ideias de Carl Schmitt que estão presentes em tal ideologia para ampliar a sua compreensão sobre democracia e estrutura de decisão.

Dialogando com a literatura, Natália Guerellus, pós-doutoranda em História na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), analisa a trajetória política da escritora cearense Rachel de Queiroz, que fez parte em sua juventude do Partido Comunista e, mais tarde, apoiou o golpe de 1964. A autora explicita o pensamento político de uma das mais destacadas escritoras brasileiras do século XX, que, ao longo de sua vida, realizou um notório deslocamento em seu posicionamento no espectro político.

No campo religioso, Alexandre de Oliveira, doutorando em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC / RS), apresenta seus apontamentos sobre a atuação do cardeal Sebastião Leme e os mecanismos adotados pela Igreja Católica frente aos desafios do Estado laico. Atuando nos anos 1930, Dom Leme almejava organizar o clericato brasileiro, assim como as próprias bases da instituição religiosa.

O português George Gomes, doutorando na Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3, contribui com a atual edição abordando a relação intelectual existente entre o português António Sardinha e o brasileiro Gilberto Freyre. O autor tenta elucidar a influência do maior doutrinador da direita portuguesa, ideólogo do integralismo daquele país, em um proeminente intelectual do Brasil no século XX.

Por sua vez, Lidiane Friderichs, doutoranda em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), traz para a análise o neoliberalismo divulgado por meio de uma rede de think tanks, institutos utilizados para divulgação de determinadas ideias políticas e econômicas. A autora aborda suas existências e atuações nos contextos internacional e brasileiro.

Outra contribuição proveniente de uma instituição francesa é a de Marina Duarte, doutoranda em História pela Université Paris Diderot – Paris 7. Em seu artigo, a historiadora mapeia os discursos e os mecanismos de desigualdade que recaem sobre as pessoas trans na França. Marina revela a atuação das instituições médicas, jurídicas e legais e mesmo de certo movimento feminista mais radical que nega o direito de tais indivíduos de se engajarem em seu movimento.

Completando o dossiê, Gustavo Oliveira, mestrando em História na Universidade Federal de Ouro Preto, explora o pensamento do renomado filósofo francês Michel Foucault. Correlacionando suas ideias com a de vários outros autores anarquistas clássicos, a linha condutora da análise do autor baseia-se na questão da autonomia da educação anarquista.

Por fim, encerra a edição a resenha feita por Cecilia Ewbank, pós-graduanda em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), sobre o livro De Olinda a Holanda: o gabinete de curiosidades de Nassau, de autoria de Mariana Françozo. A obra, que foi publicada em 2014 pela Editora da UNICAMP, recebe uma crítica bem elaborada que se conduz pelo enfoque da trajetória social do gabinete desse importante personagem holandês na história brasileira.

Com isso, acreditamos que a atual edição contribui não apenas com um campo de pesquisa em recente crescimento, mas também com questões e temáticas de importantes reflexões para o mundo atual. Pela via das análises históricas, explora-se a atuação das direitas em diversos segmentos no decorrer dos séculos XX e XXI e suas reinvenções desde a Revolução Francesa, oferecendo maior embasamento para compreensão de suas manifestações contemporâneas.

Nota

1. Obra referencial para o debate acerca das categorias direita e esquerda que é amplamente abordada na historiografia é BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. São Paulo: Editora UNESP, 1995.

Julho de 2016

Antonio Gasparetto Júnior

Nittina Anna Araújo Bianchi Botaro


BOTARO, Nittina Anna Araújo Bianchi; GASPARETTO JÚNIOR, Antonio. Editorial. Faces de Clio, Juiz de Fora, v.2, n.4, jul. / dez., 2016. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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