Diógenes, o cínico | Luis E. Navia

Diógenes é um dos mais intrigantes personagens da história social e cultural do mundo antigo. Nascido na cidade grega de Sinope – situada na costa sul do Mar Negro e que, à época do nascimento do filósofo, exercia importante papel como ponto de intercâmbio cultural e comercial entre o Ocidente (a cidade esteve sob a influência política de Atenas desde 444 a.C.) e o Oriente (tanto o Oriente grego, com a presença de homens de Mileto e de outras cidades jônicas da Ásia Menor, quanto o Oriente não grego, com a presença de persas e indianos que chegavam à cidade na esteira de rotas comerciais) – Diógenes, condenado e expulso, viveu a maior parte de sua vida em Atenas e Corinto. Não possuía casa – passava as noites em um grande jarro de cerâmica, que carregava com ele ao longo do dia como um caracol que carrega sua casa às costas – e nem qualquer propriedade, vivendo de esmolas e oferendas. Nas ruas, além de esmolar, costumava satisfazer suas necessidades fisiológicas. Uma anedota conta que “por ocasião de um banquete, algumas pessoas lançaram-lhe ossos como a um cão; ao sair, Diógenes urinou sobre eles, como um cão”; outra anedota conta que ele tinha por hábito se masturbar em plena ágora e que teria exclamado certa feita a um indivíduo que se escandalizara com seu gesto: “ah, seu eu pudesse aliviar a fome também apenas esfregando a barriga”; um outro relato diz que, durante os Jogos Ístmicos, em Corinto, Diógenes interrompeu um discurso que pronunciava para, diante de seus ouvintes, acocorar-se e defecar.

Vivendo nas ruas, sobrevivendo às custas do que lhe davam ou atiravam os homens da cidade e satisfazendo suas necessidades em público, Diógenes foi logo identificado a um cão, tratado como menos que um homem. Mas ele não rejeitou a identificação – dizem que, quando Alexandre, o Magno, se colocou diante dele, teria dito “Eu sou Alexandre, o grande rei”, ao que Diógenes teria retribuído: “Pois eu sou Diógenes, o cão”. Da palavra grega para “cão”, kyôn, deriva o adjetivo kynikós, daí cínico, que, como destaca Navia, “significa literalmente ser como um cão, comportar-se como um cão ou ter características que lembram cães” (p. 73). Para Diógenes, ser equiparado a um cão envolvia certa dose de ironia, já que seu nome indica um indivíduo de origem divina (“Dio[s]” = Deus, ou, mais especificamente, o genitivo de Zeus; “genes” ou genos = origem, descendência). Diógenes, então, seria um homem que, por sua denominação, se situaria acima da condição humana (por sua origem divina), mas que, por seu comportamento, se situaria abaixo dos homens, equivalente aos cães, aos animais.

Não obstante a identificação de Diógenes como um cão, após a sua morte, em Corinto, os habitantes desta cidade teriam lhe dedicado um túmulo ao qual foram acrescentadas uma coluna “encimada por um cão de mármore”, estátuas de bronze e uma lápide em que foram inscritos os seguintes versos: “até o bronze envelhece com o tempo, mas tua / glória, Diógenes, nem toda a eternidade destruirá; / pois só tu mostraste aos mortais a lição de / autossuficiência na vida e a maneira mais fácil de viver” (Diógenes Laércio, Vida de Diógenes de Sinope, 78)1 .

Os ensinamentos de Diógenes, louvados nos versos oferecidos pelos coríntios, foram também objeto de repulsa, tanto por seus contemporâneos – justamente aqueles que o chamavam de “cão”, com a intenção de insultá-lo e de “chamar a atenção para […] a grosseria de seu comportamento e o caráter repreensível de sua conduta” – como por pensadores das gerações posteriores, a exemplo de Cícero, para quem “a doutrina cínica deve ser rejeitada por inteiro, pois que é inimiga da pudicícia sem a qual nada pode ser correto, tampouco honesto” (Navia, 2009, p. 77; 80).

O livro de Luis Navia, Diógenes, o cínico, se propõe a abordar a vida e as idéias deste homem peculiar e o movimento filosófico a que ele deu impulso, o cinismo. Luis Navia é professor do Departamento de Ciências Sociais do New York Institute of Technology e tem diversos livros publicados sobre Diógenes, sobre os filósofos cínicos e sobre a filosofia de Sócrates e a dos pré-socráticos.

O livro é dividido em cinco capítulos. O primeiro, “Retrato Biográfico”, se dedica a esboçar a trajetória pessoal de Diógenes tomando por base os testemunhos antigos: Aristóteles, Cícero, Sêneca, Dion Crisóstomo, Plutarco, Diógenes Laércio, dentre outros. Em sua biografia dedicada ao homem de Sinope, escrita no século III d.C., Diógenes Laércio afirma que “atribuem-se” a Diógenes treze diálogos e sete tragédias. Mas o próprio biógrafo salienta outras fontes – como Sosícrates (de Rodes) e Sátiro (de Calátis, mas que viveu boa parte de sua vida em Oxirrinco, no Egito) – que sustentam que Diógenes de Sinope não deixou qualquer escrito e que as tragédias a ele atribuídas seriam obras de amigos ou de outros pensadores cínicos. Luis Navia não concede muito crédito a estas versões que falam de um Diógenes “escritor”, mas deixa claro que, para ele, a provável inexistência de textos escritos nada informa sobre o alcance ou relevância do pensamento de Diógenes no mundo antigo já que – como atesta a figura de Sócrates, por exemplo – durante muitos séculos as idéias filosóficas eram produzidas e transmitidas a partir de procedimentos típicos de culturas orais. Navia acrescenta que esta ausência de documentos escritos produzidos por Diógenes obriga o estudioso de suas ideias a se colocar na dependência de informações produzidas por terceiros, o que insere dificuldades adicionais no trabalho analítico moderno:

Em todo caso, quer tenha ou não escrito, resta o fato de que o que nós sabemos a propósito dele limita-se a testemunhos e relatos registrados por outras pessoas; algumas, próximas de seu próprio tempo, outras, mais tardias, chegando até o fim do período clássico. […] Debruçamonos sobre fragmentos de autenticidade duvidosa que revelam ideias e ensinamentos encontrados em abundância, e, para ser claro, em fontes secundárias.

[…]

Por esse motivo, na tentativa de construir uma narrativa biográfica de Diógenes, vimo-nos oscilar entre fato e ficção, verdade construção, e raramente fomos capazes de traçar uma distinção clara entre quem Diógenes de Sinope realmente foi e quem aqueles que escreveram sobre ele quiseram que ele fosse. (Navia, 2009, p. 22-23)

Além de secundárias, as fontes que tratam da vida de Diógenes apresentam um caráter essencialmente anedótico, relatando episódios isolados que, na maioria das vezes, são de difícil comprovação histórica. Destes relatos, Navia fixa-se, inicialmente, em algumas informações que considera verossímeis, em função de sua recorrência em várias fontes. A primeira delas diz respeito à sua cidade de origem, Sinope, que, no final do século V, era a colônia grega mais importante da costa do Mar Negro. A segunda se refere à identidade e profissão de seu pai: Navia referenda as narrativas que fazem de um certo Hicésio, banqueiro ou cambista, o pai de Diógenes. O autor se preocupa em precisar esta informação: em algumas fontes, a palavra grega utilizada para descrever a ocupação de Hicésio é trapezités, derivada de trapezion, que indica uma mesa ou uma banca. Um trapezités poderia ser entendido, então, como um “banqueiro”, alguém que podia armar sua banca “no mercado e em festivais, podendo fazer operações de câmbio monetário, empréstimos, testar a autenticidade das moedas e dirigir transações de crédito entre as cidades”. Em algumas cidades, o trapezités poderia também ser responsável pela emissão de moedas e Navia acredita ser este o caso de Sinope. Baseado, ainda, em vários exemplos históricos que apontam para uma certa tradição, no mundo clássico, de um filho dedicar-se às ocupações profissionais de seu pai, o autor julga confiáveis as fontes que apontam que “Diógenes desempenhou algum papel na emissão de moedas sinopenses e no ofício de banqueiro de seu pai”.

Estas informações ganham relevo na narrativa de Navia porque conferem significado especial a uma anedota que o autor acredita ser crucial para que se possa entender a trajetória biográfica de Diógenes de Sinope. Esta anedota, presente em diferentes fontes, que trata da ação de Diógenes em “desvirtuar” ou “falsificar” a “moeda corrente” e que explica sua expulsão ou sua fuga de Sinope, é narrada da seguinte forma por Diógenes de Laércio:

Diógenes era natural de Sinope, filho de Hicésio, um banqueiro. Diocles relata que ele foi banido porque seu pai, a quem fora confiado o dinheiro do Estado, adulterou a moeda vigente. Mas Eubúlides, no seu livro sobre Diógenes, afirma que foi ele mesmo quem agiu assim e foi forçado a deixar a pátria com seu pai. Além disso, o próprio Diógenes confessa, em seu Pordalos [suposto diálogo perdido], que ele havia adulterado a moeda. Alguns dizem que, tendo sido designado supervisor dos trabalhadores, ele se deixou persuadir por eles e dirigiu-se a Delfos, ou ao oráculo délio de sua própria cidade, para interrogar Apolo se deveria fazer aquilo que lhe pediam que fizesse. Quando o Deus lhe deu permissão para “descaracterizar os valores” da cidade, não compreendendo o que isso significava, ele adulterou a moeda e, após ter sido descoberto, segundo alguns, foi exilado, segundo outros, deixou a cidade voluntariamente, temendo as consequências. (DL, 20)

Quase todo o livro de Navia se desenvolve a partir desta narrativa que abre a biografia do homem-cão em Diógenes de Laércio. Como Sócrates – tal como Platão narra em sua Apologia – Diógenes também recebeu um oráculo de Apolo. Também como Sócrates, Diógenes demorara para atentar ao sentido correto da mensagem do oráculo. Sócrates recebera do oráculo a mensagem de que ninguém no mundo era mais sábio do que ele próprio; depois disso passou a inquirir alguns dos indivíduos que gozavam da reputação de sábios – líderes políticos, poetas, grandes artesãos – e descobriu que todos eles se passavam por sábios mas, na verdade, não o eram. Sócrates percebeu, então, que era superior aos demais porque ao menos não se deixava iludir por aparências de saber como faziam os homens reconhecidos como sábios pela cidade de Atenas (cf. Platão, Apologia de Sócrates, 21b-22e). Já Diógenes recebeu de Apolo a missão de “descaracterizar” tò nomisma, palavra grega que remete a dois significados: a unidade monetária, ou seja, a moeda; os costumes, as instituições, os valores socialmente aceitos e correntes. Compreendendo de forma equivocada a mensagem do deus, Diógenes, falsificou as moedas que emitia e com as quais negociava em Sinope, o que o obrigou a deixar a cidade; só mais tarde percebeu que a palavra do deus o orientava desfigurar ou confrontar não, em sentido estrito, a moeda vigente, mas os costumes, as leis e os usos correntes na vida social das cidades gregas. Portanto, assim como Sócrates se dedicou a desconstruir o saber atribuído aos líderes políticos, aos artesãos e aos poetas, Diógenes teria pautado sua vida, na percepção de Navia, na subversão dos valores e costumes que guiavam a vida pública e particular dos gregos do período clássico. Como resume o autor: “caímos no mesmo cenário: o oráculo prenuncia, sobre um filósofo, uma sentença pítica que, em última instância, determina a direção de sua vida e descreve o caráter de sua missão” (p. 33).

A partir desta missão que Navia identifica na trajetória de Diógenes, o autor guia sua leitura a respeito de várias outras anedotas que tratam da vida do filósofo cínico. Uma delas conta que Diógenes tinha por hábito entrar e sair do teatro de Atenas sempre no sentido oposto ao das pessoas e que, perguntado sobre o motivo de tal comportamento teria respondido: “é isto o que tenho procurado fazer em toda a minha vida” (DL, 64). Ou seja, Diógenes se posicionava na contracorrente dos valores dos homens de seu tempo. Tal postura implicava, em primeiro lugar, refutar um dos principais elementos da identidade grega: a noção de cidadania. Se, para Aristóteles, o homem era, por natureza, um animal destinado à vida na cidade, na polis, um zóon politikon, para Diógenes a identidade cidadã não fazia qualquer sentido. Segundo Diógenes de Laércio, “quando lhe perguntaram qual era a sua cidade, respondeu: ‘sou cidadão do mundo (kosmopolités)’”. Ao se identificar como um polités (um cidadão) não de uma polis particular, mas de todo o kosmos, de todo o universo, Diógenes despreza a identidade cidadã como uma construção supérflua dos homens que os afastava de sua verdadeira identidade humana. Diante de homens detentores de grande poder público, Diógenes igualmente manifestava desdém: quando Alexandre se posicionou diante dele, colocando-se entre ele e o sol, e lhe dito “pede-me o que quiseres”, Diógenes teria apenas respondido “devolva-me o sol, afaste tua sombra de mim” (DL, 38). Em segundo lugar, “descaracterizar a moeda corrente” entre os gregos significava, em Diógenes, manifestar desprezo por tudo aquilo que guiava a vida privada dos homens de sua época: a busca pela riqueza, pela fama, o luxo, a suntuosidade das moradias, das mesas e das vestimentas, o orgulho pelas origens familiares etc.. Por isso ele desprezava as grandes casas, contentando-se em dormir num tonel – um vaso de cerâmica grande o suficiente para que pudesse dormir em seu interior. Navia destaca duas anedotas que ilustram essa postura de Diógenes: pela primeira, conta-se que certa vez viu um menino bebendo água com as palmas das mãos e, então, jogou fora a taça que trazia em sua sacola dizendo “um menino deu-me uma lição de simplicidade”; pela segunda, narra-se que após ter visto um rato correr de um lado para o outro no mercado “sem procurar um lugar para dormir, sem medo do escuro e não almejando nada do que [os homens consideram] desejável, Diógenes descobriu os meios de se adaptar a todas as circunstâncias” (p. 237). Sem propriedades e sem recursos, Diógenes vivia de esmolas e, por isso, teria passado a pedir favores às estátuas da cidade, como forma de se acostumar com a indiferença das pessoas.

Ao encerrar seu relato sobre as informações biográficas de Diógenes, Navia se preocupa em destacar não o aspecto peculiar e único de sua vida mas, justamente o contrário, em salientar como sua vida se mostra coerente com a de outros filósofos antigos – particularmente com a de Sócrates, figura emblemática da filosofia antiga – e com as próprias ideias antigas a respeito da filosofia, com desdobramentos no mundo cristão e medieval:

Ao modo de Crisipo [filósofo estoico, discípulo de Zenon de Cício] e outros filósofos antigos, inclusive Sócrates, Diógenes manteve-se livre da necessidade de trabalhar e viveu razoavelmente bem às expensas alheias, atingindo uma maturidade longeva. Com efeito, para um homem que desejou e careceu de tão pouco; cuja casa foi um tonel; cuja vestimenta foi uma manto esfarrapado; cuja dieta se constituía de tremoço, lentilha, pão e água; que não teve mulher nem família […] – para tal homem, emprego não fazia sentido e dinheiro não tinha valor. Depois dele, a tradição de evitar o trabalho remunerado e esmolar o sustento ficou estabelecida entre os cínicos, muitos dos quais seguiram seu exemplo. No período clássico tardio e no medieval, isso sobreviveu entre os membros de ordens mendicantes cristãs (Navia, 2009, p. 61-62).

O capítulo 2, “A retórica do cinismo”, é dedicado ao estudo das características da argumentação empregada por Diógenes para persuadir os homens de seu tempo. Diógenes Laércio fez questão de salientar a eficácia persuasiva do homem de Sinope:

Diógenes realmente possuía o extraordinário dom da persuasão, de modo que podia vencer qualquer oponente com seus argumentos. Dizse, a esse respeito, que certo Onesícrito de Égina enviou a Atenas um de seus dois filhos, Andróstenes, o qual, após ouvir as lições de Diógenes, decidiu ficar por lá. O pai, enviou, então, o seu filho mais velho, […] à procura do primeiro; no entanto, esse também resolveu ficar por lá. Por fim, em terceiro lugar, o próprio pai foi até onde estavam e dedicou-se à filosofia com eles, tal era a espécie de fascínio que as palavras de Diógenes despertavam em seus ouvintes. (DL, 75-76)

Porém, para Navia, o que caracterizaria a retórica cínica, e a de Diógenes em particular, não seria a habilidade retórica ou o rigor argumentativo, mas sim o recurso ao que fosse chocante do ponto de vista dos sentidos e a estratégias performáticas de argumentação baseadas na ação, e não simplesmente nas palavras. Segundo o autor, o objetivo da filosofia, aos olhos de Diógenes, seria o de propiciar, aos homens, uma vida boa e virtuosa e tal objetivo poderia ser realizado desprezando- se as construções sociais construídas pelos homens e utilizando-se a razão para identificar as reais necessidades do homem enquanto ser humano – não enquanto cidadão, marido, proprietário, guerreiro, ou qualquer outra identidade construída pela sociedade clássica. Neste sentido, Diógenes não teria se sentido ofendido por ser associado aos cães, já que estes animais poderiam servir de símbolo de uma vida vivida de acordo com a natureza:

Independência, simplicidade, habilidade de adaptação a circunstâncias cambiantes, falta de inibição com relação a seus sentimentos e necessidades físicas, indiferença a propósito de onde ou como viver e do que comer, absoluta honestidade, liberdade de expressão – já que latem sempre que querem e a quem quer que lhes desagrade –, tais são a virtude e a fortaleza que caracterizam a espécie canina e tais são os traços que Diógenes e seus descendentes cínicos admiravam e julgaram dignos de imitação (Navia, 2009, p. 75).

E, na medida em que Diógenes associava sua ação filosófica com a postura dos cães ficaria óbvio, argumenta Navia, que a estratégia retórica cínica repousa na ação – e não na habilidade oratória – já que se dizer cínico significa “ser e agir como os cães”. Algumas anedotas relatadas por Diógenes Laércio podem ser lembradas para corroborar esta abordagem de Navia. Em uma delas, diz-se que “a alguém que almejava estudar filosofia com ele, Diógenes deu um atum e ordenou que o seguisse com o peixe na mão; envergonhado o homem jogou o peixe fora e foi embora” (DL, 36). Ou seja, Diógenes exigia de seus discípulos um compromisso prático de aversão aos valores e aos costumes – a moeda – correntes, de desprezo às convenções sociais, mais do que habilidade de raciocínio. Também as controvérsias filosóficas em que se envolveu Diógenes parecem apontar para um certa ênfase em uma retórica prática. Em suas disputas com Platão, Diógenes teria, certa feita, para ironizar a definição de que o homem seria um “bípede implume”, depenado completamente uma galinha e levado o animal para junto de seus seguidores afirmando: “eis o homem de Platão” (DL, 40); em outro momento, Diógenes teria se apresentado à casa de Platão, quando este oferecia uma recepção para amigos, e, com pés enlameados, pisou nos tapetes da casa enquanto dizia “estou pisando o orgulho de Platão” (DL, 26). Em outra oportunidade, refutando o pensamento de um indivíduo que sustentava não existir, na natureza, o movimento, Diógenes teria simplesmente se levantado e começado a andar (DL, 39).

Para Navia, o cinismo se assentava numa retórica eminentemente prática em função de sua própria inadequação ao que se convencionou considerar como “escola filosófica”: “o que se encontra aqui [no cinismo clássico] não é uma escola de filosofia stricto sensu. Há mais razão em falar de platonismo, aristotelismo e estoicismo como escolas de filosofia, pois que em tais casos deparamos com um conjunto de convicções e ideias transmitidas com rigor canônico de uma geração para outra por pelo menos um século” (p. 83-84; destaque do autor). A conclusão de Navia é a de que “às ideias de Diógenes, conquanto firmemente tomadas, faltava o nível necessário de desenvolvimento e densidade que lhes poderia ter permitido integrarem-se a um sistema” (p. 84; destaques nossos). Resta, então, que, para o autor, Diógenes deve ser visto antes como um praticante do que propriamente como um teórico do cinismo: “a palavra praticante é de boa escolha. Cinismo, especialmente no contexto de Diógenes, é uma prática e um modo de vida mais que um conjunto de ideias” (p. 85; destaque do autor). Em outra passagem: “prática […] e não teoria foi a esfera em que Diógenes tentou se movimentar, e apenas as preocupações práticas que afetam diretamente a vida humana foram soberanas em sua mente” (p. 90).

Esta distinção atribuída por Navia à retórica cínica, que o leva a contrapor o cinismo ao que ele chama de “escolas de filosofia” do mundo antigo (citando expressamente o platonismo, o aristotelismo e o estoicismo) poderia, talvez, ser mais aprofundada pelo autor. Em primeiro lugar, porque não apenas os cínicos associaram a experiência filosófica com aspectos práticos da vida cotidiana – basta lembrar apenas os exemplos de Pitágoras e do próprio Sócrates. Em segundo lugar, embora as fontes realcem o aspecto performático e prático da retórica de Diógenes, estas mesmas fontes também sublinham a notável habilidade oratória do filósofo cínico. Como citado, Diógenes de Laércio insistiu no “fascínio que as palavras de Diógenes despertavam em seus ouvintes” e também afirmou que ele “era extremamente habilidoso para responder perguntas” (DL, 74). Ou seja, contrapor a retórica cínica, por sua suposta ênfase na ação e não na argumentação, às estratégias retóricas empregadas por outros personagens da filosofia antiga não parece ser uma abordagem adequada para apreensão do que há de específico na figura de Diógenes. Em segundo lugar, porque a relação que Navia estabelece entre sua leitura a respeito da retórica de Diógenes e as fontes antigas a respeito deste personagem bem poderia ser lida de forma inversa ao proposto pelo autor. Navia sustenta que as fontes antigas que tratam de Diógenes apresentam a forma de um conjunto de histórias ou anedotas curtas justamente em função desta retórica performática dos cínicos; ora, bem se pode pensar que é o caráter anedótico das fontes que orienta a leitura que faz da retórica cínica um exercício de ação e não de argumentação.

O capítulo 3 do livro, “A metamorfose de Diógenes”, trata dos processos pelos quais Diógenes, um “banqueiro” – ou, ao menos, um filho de “banqueiro” – tornou-se um filósofo cínico dedicado a “desvirtuar a moeda corrente”. Neste capítulo Navia propõe abordagens psicológicas, sociais e histórico-filosóficas. As primeiras partem da ideia de que a postura cínica pressupõe uma certa disposição psicológica voltada para a rebeldia e a contestação dos valores sociais instituídos. Neste sentido, o cinismo não seria uma mera opção intelectual, mas sim o resultado intelectual de um caráter inconformista. Para reforçar tal hipótese, Navia recorre à uma avaliação feita por Diderot:

pode bem ser verdade, como insistia Diderot, que a aceitação e a prática do cinismo suponha uma predisposição psicológica cuja ausência resulta na incapacidade de compreensão do que sequer possa ser o cinismo. Cínico se nasce – disse Diderot –, e os que não nasceram assim estão fadados a permanecer alheios ao que quer que o cinismo ensine ou manifeste (Navia, 2009, p. 112).

Quanto às abordagens sociais, Navia salienta o fato de Diógenes, embora nascido “banqueiro”, ter-se tornado um homem desprovido de cidadania, algo que, aos olhos da sociedade grega clássica, transformava um indivíduo em algo menos que um homem, uma espécie de pária. Navia lembra as condições de vida de outros filósofos antigos reconhecidos como cínicos: Antístenes, filho bastardo de um cidadão com uma escrava; Mônimo e Menipo, escravos libertos; Dion Crisóstomo e Demétrio, exilados de suas cidades de origem. Neste sentido, a postura cínica, de negação dos valores políticos e sociais, teria sido desenvolvida por indivíduos privados de elementos de distinção social:

Os cínicos parecem ter sido o tipo de gente que começou a vida do lado errado e cujas vidas foram especialmente acometidas pela desgraça. Isso explica, em parte, a insatisfação deles com os homens a sua volta, seu desdém por convenções sociais ou conchavos políticos e seu projeto de solapar a estrutura do mundo dos homens que era responsável pela falência deles (Navia, 2009, p. 115).

Navia, porém, concede pouca atenção a estas abordagens, preferindo concentrar sua atenção numa mais promissora abordagem histórica e filosófica e enfatizar as influências intelectuais às quais Diógenes esteve exposto. O autor identifica duas grandes correntes intelectuais que poderiam ser identificadas como inspiradoras das ideias de Diógenes. Em primeiro lugar, apoiado em fontes diversas, que remontam a Heródoto, ele destaca a relevância de certas tradições de saber em várias regiões do Oriente antigo que, de variadas formas, pregavam o “equilíbrio e o ascetismo […] como o caminho mais curto para se alcançar esclarecimento e felicidade” (p. 120). Segundo Navia, em várias regiões da Índia e da China,

ensinava-se mais por meio do exemplo do que por meio do discurso e divulgavam-se os ensinamentos por meio de ações aparentemente irracionais e frequentemente violentas, as quais foram especificamente designadas para forçar os outros a refletir sobre suas próprias vidas e corrigir seu comportamento. Igualmente, depara-se aqui com uma ênfase na disciplina, na indiferença e na simplicidade, inclusive com uma atitude acolhedora para com insultos e vitupérios (Navia, 2009, p. 121).

Navia lembra também de fontes que trataram das campanhas de Alexandre no Oriente, citando especificamente Plutarco, e narraram o contato com indivíduos que encontravam a virtude ao admitir uma existência na condição de “desprovidos e desnudos, vivendo na selvageria”, compondo um contraponto à figura do macedônio, “rodeado de luxo e ricamente trajado” e, ao mesmo tempo, em total perturbação. Plutarco também falou de um certo sábio Dândamis que julgava os homens de sua terra superiores em sabedoria aos filósofos gregos já que estes últimos “foram, em última instância, infelizes em sua busca de sabedoria, uma vez que demonstravam demasiado respeito pelas leis de sua terra” (p. 122). Para Navia, então, a postura cínica estava, de alguma maneira, amparada por tradições seculares que associavam a sabedoria e a tranquilidade da alma com uma postura prática de renúncia ao mundo público e de desprezo aos elementos de distinção na vida privada.

Em segundo lugar, Navia procura destacar que a postura de Diógenes amparava-se não apenas em tradições exógenas ao mundo grego, mas se ancorava, também, em concepções solidamente estabelecidas na história cultural das cidades helenas. De Pitágoras a Sócrates e a Antístenes, Navia identifica uma postura filosófica que vincula a busca da virtude à negação, em maior ou menor grau, dos modos e valores correntes na vida social. O autor lembra que o reconhecimento das leis e dos costumes como construções artificiais, ou seja, como construtos especificamente humanos – e não divinos – é uma das marcas essenciais do pensamento filosófico grego desde antes de Sócrates. E, para ele, esta é a pedra angular no pensamento de diferentes personagens que postularam o caráter fragmentário e imperfeito destas convenções e, de diferentes formas, defenderam a rejeição dos valores sociais e políticos de seu tempo ou a retirada do mundo social e político (p. 128-129).

Aqui situa-se talvez um dos grandes méritos do livro de Navia, que é o de associar a figura de Diógenes com o mundo cultural e social em que ele viveu, evitando a tentação de encará-lo apenas como uma figura exótica e extravagante em meio a um panorama que seria dominado pela lógica racional típica do discurso filosófico da Grécia clássica. Diógenes, nesta perspectiva, tanto como Sócrates, é um filósofo perfeitamente inserido no panorama cultural da Grécia clássica.

O quarto capítulo do livro, “Filosofia do cinismo”, trata das proposições e conceitos que nortearam a postura dos filósofos cínicos, de Antístenes e Diógenes até o mundo romano, passando pelo período helenístico. Neste capítulo, ao contrário do anterior, Navia se preocupa não em realçar os laços que vinculam a figura de Diógenes ao mundo em que viveu, mas em destacar justamente os aspectos “estranhos” de sua vida e de sua trajetória. O capítulo parte de uma interrogação: “havia uma base intelectual para o que ele dizia e fazia e para a estranha vida que viveu?” (p. 148. Destaque nosso). Afinal, Diógenes é um filósofo típico ou uma figura estranha? Navia não responde diretamente esta questão – embora, possamos facilmente pensar que, para muitos dos homens que viveram nos séculos V e IV a.C., um filósofo típico seria uma figura estranha (lembremos do retrato traçado por Aristófanes da figura de Sócrates na peça Nuvens, de 421 a.C.).

Navia se filia, declaradamente, a uma corrente de autores que têm se dedicado a reavaliar, positivamente, a originalidade e a importância histórica dos cínicos – e em especial de Diógenes, que, para o autor, se encontra solidamente ligado ao passado (por sua ligação a Antístenes e, assim, a Sócrates) e ao futuro (por sua influência sobre o estoicismo) da filosofia antiga:

A ligação ideológica entre cinismo e estoicismo foi reavaliada, e isso levou à conclusão de que as ideias e o modo de vida dos primeiros cínicos, em especial de Diógenes, têm de ser reexaminadas com muito cuidado, porque é neles que encontramos não apenas elementos socráticos genuínos, mas também as sementes que germinariam a filosofia estoica. Pode-se a propósito, concordar prontamente com a asserção de um acadêmico importante, que observou que, “de todas as rotas pelas quais a filosofia de Sócrates foi transmitida ao mundo helenístico, a que os cínicos seguiram foi a mais espantosa e, de certa forma, a mais influente” (Navia, 2009, p. 152).

Navia, portanto, identifica grande relevância à figura de Diógenes para a filosofia antiga, embora continue a atribuir limitações ao alcance “teórico” que possa estar subjacente às suas performances, na linha do que o autor propõe em capítulos anteriores – em especial no capítulo 2, “A retórica do cinismo” –, enfatizando o “caráter truncado e incompleto da filosofia de Diógenes”: “Ele [Diógenes] desafiou, rejeitou, ridicularizou […] e, literalmente, desfigurou a ‘moeda’ de sua época, fixando o exemplo de como nós também devemos estar preparados para agir igualmente conforme o verdadeiro espírito cínico. Muito mais, não fez” (p. 159).

O quinto e último capítulo – “A influência de Diógenes” – trata do impacto que a retórica e a filosofia de Diógenes exerceram no desenvolvimento das ideias filosóficas. Para Navia, a recepção e o impacto da postura cínica oscilou entre dois extremos: um, negativo, no qual se perfilam figuras como Cícero e Hegel, que enxergaram em Diógenes o animalismo e o “retrocesso da civilização”, uma postura irracional de desprezo às instituições sociais e políticas, uma exaltação grotesca da extravagância, da histrionice, da grosseria e da soberba e uma bufonoria alicerçada simplesmente na incapacidade de compreender e apreciar conceitos universais. No outro extremo o autor posiciona figuras como Sêneca, Juliano, Diderot, Voltaire, Goethe, Nietsche e Foucault, para os quais Diógenes foi um “venerável modelo de correção moral”, “um sábio e espirituoso observador dos homens e costumes” e o “exemplo máximo do que a filosofia pode ensinar e de como deve ser uma filósofo genuíno: […]  um homem unicamente voltado à prática da parrhesia, o comprometimento de falar a verdade […], de dizê-la por inteiro, consistentemente, em qualquer circunstância”.

Navia valoriza especialmente este segundo grupo de autores, embora o faça sob argumentos nem sempre convincentes. Em certa passagem, o autor sintetiza da seguinte maneira a relevância que ele atribui à figura de Diógenes:

O que distingue Diógenes de outros filósofos e das pessoas em geral, passadas e presentes, é, a bem dizer, isto: que ele reconheceu a pobreza espiritual e a depravação moral de seu mundo e sentiu-se capaz e disposto a denunciá-las por meio da palavra e da ação, sem ao menos uma ligeira reflexão a propósito das consequências para ele mesmo. […] A essência da doidice de Diógenes é a singularidade de sua reação ao mundo, uma reação relevante não apenas para seu próprio tempo e cultura, mas também para o nosso. Os elementos da natureza humana que ele denunciou permaneceram inalterados, e a confusão intelectual, assim como a depravação moral de seus contemporâneos, não mingou com o passar do tempo (Navia, 2009, p. 153-154. Destaques nossos).

Falar de “pobreza espiritual”, “depravação moral” e “confusão intelectual” é uma maneira um tanto “pobre” ou “confusa” de tratar o mundo social – quer este mundo se situe no passado ou no presente. Da mesma forma, pressupor uma natureza humana inalterável – que teria sido brilhantemente descoberta por Diógenes – é também uma abordagem que não contribui para o estudo das relações entre a filosofia e a sociedade. Em outra passagem, Navia parece atribuir a Diógenes a sua própria visão do mundo contemporâneo, pela qual as relações humanas são permeadas por relações de ilusão e engano maquinadas pelos homens do poder:

Foi isso que Diógenes descobriu em toda parte: fumo [nuvens que iludem] na política, onde o engano e a ganância reinam supremos, quer nas democracias, quer nas tiranias, e onde a única preocupação dos políticos e de quem determina o destino das nações é tirar vantagem das massas; fumo nas relações entre cidades e nações, nas quais tudo quanto se depara é a avidez descontrolada do poderoso avançando sobre o fraco; fumo na vida social, onde tradições e costumes arraigados e atávicos, tais como a escravidão, foram mantidos sob o peso da vacuidade intelectual, da inércia espiritual das massas e da arrogância das elites (p. 104. Destaques nossos).

Apesar destes deslizes, o livro de Navia, pelo panorama que fornece das fontes antigas que tratam da figura de Diógenes e pelas reflexões que suscita, merece a atenção do estudioso da Antiguidade. Além do mais, o autor tem razão ao sustentar que Diógenes é uma figura que nos obriga a pensar o mundo contemporâneo – não no sentido de que ele nos ensina a entender que as “normas e valores sociais […] eram apenas invenções oportunas fabricadas pela classe governante para manter o povo subjugado”, mas porque nos lembra que, em todo momento histórico, as construções sociais que podem parecer como as mais brilhantes e elevadas criações humanas podem ser percebidas como meros artifícios incapazes de satisfazer todas as expectativas e demandas nutridas pelos homens. É bem possível, a se crer, por exemplo, em Ésquilo, em Aristóteles ou no Péricles de Tucídides, que os gregos, em sua maioria, fossem orgulhosos por suas invenções políticas – a polis, a liberdade, a justiça – mas a figura de um Diógenes nos mostra que nem todos os gregos, fosse em Atenas, em Corinto, ou em qualquer polis, ansiavam por se inserir e se destacar nas arenas da política.

D’Alembert, numa frase que é citada por Navia, disse que “todo século precisa da figura de um Diógenes”. A frase pode ser interpretada de diferentes maneiras – e a que é adotada por Navia não parece ser a mais promissora (cf. p. 154) – mas uma alternativa parece ser a de que, para que a filosofia bem possa cumprir sua tarefa de pensar e criticar o mundo criado pelos homens, é necessário que ela se posicione um tanto à margem deste mundo, que o encare não como construção perfeita a exigir a imediata adesão de todos os homens, mas sim como uma construção que traz as marcas da condição humana: a falibilidade, a transitoriedade e a arbitrariedade

Nota

1A obra de Diógenes Laércio, Vida de Diógenes de Sinope, será doravante identificada nesta resenha como “DL”.


Resenhista

Luiz Otávio de Magalhães – Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb). Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: lotavio.magalhaes@gmail.com


Referências desta Resenha

NAVIA, Luis E. Diógenes, o cínico. Trad. João Miguel Moreira Auto. São Paulo: Odysseus, 2009. Resenha de: MAGALHÃES, Luiz Otávio de. Politeia: História e Sociedade. Vitória da Conquista, v. 12, n. 1, p. 251-265, 2012. Acessar publicação original [DR]

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