Dinâmicas imperiais/ circulação e trajetórias no mundo ibero-americano | Andréa Slemian, Jaime Rodrigues, José Carlos Viladaga e Marina Passos Tufolo
Andréia Slemian | Imagem: NEDAP/UFC, 2020
Organizado por Andréa Slemian, Jaime Rodrigues e José Carlos Vilardaga, professores de História da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), e por Marina Passos Tufolo, mestranda em História Social pela referida instituição, o livro Dinâmicas imperiais, circulação e trajetórias no mundo ibero-americano surgiu dos debates travados num seminário internacional de mesmo nome realizado em outubro de 2019 nas dependências do campus Guarulhos da UNIFESP, no qual se buscou reunir pesquisadores de diversas tendências e instituições nacionais e internacionais em distintos momentos de suas respectivas carreiras.
Como resultado do evento, o livro reuniu artigos de pesquisas de mestrandos e doutorandos que tratam de temas relacionados às lógicas e às formas de mobilidade, circulação e interações no mundo ibero-americano, abarcando as espacialidades da Península Ibérica e América e destas partes com outras regiões do mundo, num recorte temporal sobre a colonialidade americana.
Entendendo o mundo ibero-americano como um espaço de articulação de experiências jurídicas, religiosas, sociais, culturais, políticas e econômicas de escala global, os organizadores da referida obra consideram no livro que conexões deste espaço foram estabelecidas com o mundo africano, asiático e o restante do território europeu, bem como têm em vista a necessidade do avanço no debate sobre temáticas relativas aos impérios transatlânticos ibéricos entre os séculos XVI e XIX. Por isso, os artigos são de estilos e metodologias variados, mas que abarcam dinâmicas coloniais que são passíveis de aproximações, conexões e comparações.
As discussões presentes no livro abordam debates que se apoiam na construção dos impérios ibero-americanos, bem como na crise dos impérios ibéricos e a subsequente consolidação dos Estados nacionais, se inserindo majoritariamente no campo teórico da História Comparada e História Conectada, percebendo os processos históricos como resultados de conexões e interações tanto dentro dos espaços da América e da Península Ibérica, quanto externas a elas, de sentido global.
Por se tratar de uma coletânea extensa, com espaço-tempo e metodologia diversificados, é possível que por vezes o leitor se sinta exaurido pela quantidade de referências e características específicas de cada pesquisa, o que é compensado pela escolha dos organizadores em compilar os artigos por temas, guiando o leitor ao seu objetivo final.
O livro foi dividido em quatro blocos temáticos que abrangem diversos recortes, prevalecendo a análise das interações, mobilidades, identidades e conflitos entre impérios, jurisdições, territórios, personagens e grupos sociais nas Américas, na Península Ibérica e em espaços conectados. Essa divisão propiciou uma leitura instigante por nos apresentar, em cada parte, um mesmo tema em distintos momentos da História.
O primeiro deles, intitulado Trajetórias em foco e composto por nove artigos, analisa as trajetórias de indivíduos que transitaram entre diferentes continentes em meio às construções imperiais. São histórias de traficantes, como Francisco Portilho de Melo e Pedro de Braga, atuantes na busca de indígenas nos sertões e que estiveram a serviço do Estado no contexto das reformas pombalinas; de mulheres, como Manoela de Santa Clara e Rita de Santa Ignes, que usaram suas redes de influencias para abrir e manter uma casa de recolhimento em Sorocaba no século XIX; de conquistadores, como Pedro de Valvídia, veterano nas lutas espanholas na Itália e no Flandres, que rumou posteriormente para o Novo Mundo, se envolvendo nas lutas contra as forças de resistência inca ao lado de Francisco Pizarro; de corsários, como Piet Heyn, navegador que atuou tanto na costa da Bahia ao Rio de Janeiro, quanto no litoral da América Central e da África no período de 1624 a 1630; e, em sua maioria, de homens da elite da governança e magistratura, como Gervásio Leite Rebelo, secretário de governo do Maranhão e de São Paulo no início do século XVIII, cuja posição social, boa reputação e vínculos consistentes com sua comunidade facilitaram a atuação enquanto agente de informação e conhecimento. Tais textos evidenciam que muitas vezes essas trajetórias e experiências de mobilidade individual entre os séculos XVI e início do XIX beneficiavam os projetos estatais em curso, colocando em funcionamento os mecanismos necessários ao cumprimento dos projetos.
A segunda parte do livro é composta por seis artigos que tratam das Circulações culturais, ou seja, das práticas, formas de saber-fazer, crenças e informações em rotas de mão dupla que circularam pelo mundo ibero-americano. Os autores consideram como expressões culturais distintos objetos de estudo, que vão desde a mestiçagem e escritos jesuítas, aos conhecimentos da natureza e viagens de agentes religiosos junto de suas obras, enfatizando as conexões entre territórios através do trânsito de pessoas, das relações comerciais, e dos fluxos desses documentos históricos ao redor do mundo. São textos que fornecem formas e novos exemplos de como fazer pesquisa de análise global, que permite conexões espaciais de forma integrada e impedem dinâmicas contextuais de visão eurocêntrica.
Apenas para ilustrar o caráter dos artigos desta parte do livro, destaco aqui dois que chamaram atenção pela ênfase nessa forma de fazer análise. Um deles é o de autoria de Jean Silva, que analisa a circulação e produção do Tratado de Hechicerías y Sortilégios, obra escrita pelo frei franciscano Martin de Castañega, em 1529, e traduzida e adaptada por Andrés de Olmos, em 1553. É uma obra sobre as ações do diabo, seus poderes e artimanhas, numa tentativa de teorizar sobre a agência satânica, que se destinava à leitura de missionários e à respectiva escuta dos povos nativos. O autor do artigo demonstra que a tradução e adaptação feitas na obra foram um esforço ocidental para tentar procurar símbolos em comum ao do universo ameríndio, para facilitar a comunicação com os nativos e, por conseguinte, seu domínio. Outro artigo é o de autoria de Ranay de Lima, que utiliza a fonte documental Nican Mopohua, atribuída ao indígena Antonio Valeriano (1520?-1605), em que é narrada a aparição da Virgem de Guadalupe no México ao índio Juan Diego e seu tio, Juan Bernardino. O autor analisa o processo de legitimação católico e indígena dessa narrativa, que é “traduzida” para a língua nahua dos astecas. Ambos os artigos utilizam uma fonte de conteúdo cristão que se apoia no sistema de comunicação indígena para ser transmitido, formando uma adaptação do cristianismo para uma cosmogonia nativa.
A terceira parte do livro apresenta o tema Territórios e Dinâmicas sociais, em que os aspectos administrativos, econômico-comerciais e formas de sociabilidade se integram aos caminhos percorridos formando uma dinâmica dentro da lógica colonial. Com textos que abrangem questões relacionadas às delimitações de fronteiras e disputas entre indivíduos por posse de terras, essa seção reflete a importância de se pensar as mobilidades geográficas e o recorte espaço-temporal dos objetos estudados, destacando aspectos que se tornam fundamentais ao entendimento das dinâmicas do mundo ibero-americano. O texto de autoria de Yan de Morais, por exemplo, coloca o gado como elemento marcante no processo de colonização e reordenamento do espaço oeste da capitania da Paraíba do Norte setecentista, além de definidor das mudanças sociais, políticas e econômicas. Já o de André Pompeu parte de um esforço por identificar a promoção da economia das drogas do sertão na Amazônia colonial (século XVIII) através da associação do contexto global, que conectava a Ásia, Europa e América, com o prévio conhecimento do comércio de especiarias, trazendo outros sujeitos como nativos, negros africanos e mestiços, que atuaram como cabos de canoas expedicionárias no sertão, demonstrando uma maior dinamização dessa função.
Finalmente, a quarta e última parte do livro traz o tema do Governo das terras e das gentes, em que aborda a circulação de notícias, embaixadas e correios como forma de comunicação política dentro das estruturas coloniais. Portanto, abrange também o ofício desses agentes da comunicação: almotacés, juízes de fora e ouvidores, governadores, administradores e seus agentes, “correios volantes” e missionários. O exercício da almotaçaria em São Paulo de 1755 a 1828, por exemplo, é o objeto de estudo da autora Cláudia Rezende, cuja função possuía atribuições identificadas com um sentido tradicional da palavra “polícia”, sendo associado com o “bom governo” da cidade e de seus habitantes. A prática governativa de circular informações e notícias poderia aparecer em forma de escrita epistolar, como no caso na capitania do Mato Grosso e Estado do Grão-Pará em meados do XVIII, estudado pelo autor Otávio Vitor Ribeiro.
Tal prática também se expressa na forma de ideais jurídico-políticos restauracionistas baseados nos fundamentos do Direito e nas Escrituras Sagradas, como no caso da legitimação de João Fernandes Vieira como governador da Guerra da Liberdade Divina em 1645, tema analisado no quarto artigo desta parte. O “correio volante”, que foi uma rede de comunicação diplomática durante o século XVI entre d. João III e seus embaixadores na Europa, é tema do quinto artigo desta parte. São analisadas as rotas geográficas por onde passavam essas correspondências, por mar ou por terra, considerando-as como uma forma de comunicação imprescindível à manutenção do reinado. Um mecanismo de comunicação do Antigo Regime poderia também ser a via peticionária no Conselho Ultramarino na comarca do Rio de Janeiro do XVIII, que foi estudada pela autora Mariana Passos Tufolo e considerada como uma forma de se fazer denúncias que gerava resultados.
A circulação, o acesso e o uso das informações entre esses agentes do Conselho Ultramarino na América portuguesa também são estudados no artigo de Leonardo Paiva Oliveira, no qual se pondera que a circulação de indivíduos entre os séculos XVII e XVIII em determinadas áreas auxiliava a prática governativa e possibilitava a criação de uma memória administrativa. A forma como as argumentações são construídas é tema do sexto artigo, em que é considerado o jogo de poder sobre terras através do uso da linguagem do embaixador d. Luís junto à Santa Sé, no final do século XVII. Por fim, o último artigo nos traz uma reflexão sobre a interação entre o poder local (Estado do Brasil e do Maranhão) e o poder central (Madrid, Lisboa) no período em que o Estado do Brasil pertencia à Monarquia Hispânica, considerando que ela aconteceria com o objetivo de otimizar a cobrança colonial, de proteger território dos corsários e de se fortalecer institucionalmente.
Um ponto de confluência entre os artigos do livro é a valorização da perspectiva geográfica e seus deslocamentos ao longo dos tempos, evidenciando o espaço-tempo como fatores indissociáveis e enriquecendo as pesquisas históricas. Este é um livro que, sobretudo, nos fornece visões e metodologias distintas, capazes de nos instigar a escrever e a refletir sobre o funcionamento do mundo ibero-americano durante os longos séculos abordados. É uma contribuição valiosa aos estudantes atentos às formas de se fazer História.
Resenhista
Ilana de Macedo Vaz – Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, bolsista FAPEMIG. E-mail: ilanamvaz@gmail.com
Referências desta Resenha
SLEMIAN, Andréa; RODRIGUES, Jaime; VILARDAGA, José Carlos; TUFOLO, Marina Passos (Orgs.). Dinâmicas imperiais, circulação e trajetórias no mundo ibero-americano. Guarulhos: Departamento de História/EFLCH/UNIFESP, 2020. Resenha de: VAZ, Ilana de Macedo. Perspectivas dos impérios transatlânticos ibéricos entre os séculos XVI E XIX. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 22, p. 187-191, jul./dez. 2021. Acessar publicação original [DR]