Dinâmica institucional nas Américas: questões historiográficas (1640-1840) / Revista de História / 2013
Longe de apresentar-se homogêneo e uniforme, este conjunto de artigos sobre a dinâmica institucional nas Américas entre os séculos XVII e XIX incorpora contribuições caracterizadas pela diversidade de temas e de problemas teórico-metodológicos e historiográficos. Nele se representam diferentes modos de pensar a história, a historiografia e a caracterização do período multissecular recoberto pelas balizas temporais deste dossiê. Assim, este conjunto de artigos não revela qualquer coesão ou uniformidade relativamente a escolas, tendências ou grupos de pesquisa instalados ou hegemônicos no Brasil ou fora dele. Dentre os artigos aqui reunidos, alguns, por um lado, acenam para filiações a problemas e modelos de análise instituídos em centros de pesquisa e em programas de pós-graduação reconhecidos, os quais ainda projetam grande potencial de inovação na elaboração de referenciais teórico-metodológicos e na interpretação do material empírico e historiográfico. Por outro lado, outros apontam para nítidas rupturas com modelos estabelecidos e formulam problemas distintos daqueles repetidos a exaustão em teses e dissertações, bem como em livros e artigos de historiadores e epígonos identificados com grupos de pesquisa e programas de pós-graduação específicos. Não queremos aqui valorar um ou outro tipo de orientação teórico-metodológica, nem sugerir que uma seja mais ou menos adequada que outra. Antes, o importante é reunir tais contribuições, fazê-las dialogar entre si e permitir ao leitor um debate livre de amarras e o mais distanciado possível de projetos acadêmicos de poder. Em suma, se há, por um lado, diversidade considerável entre os textos em decorrência das distintas formas de abordagem que adotam, há, por outro lado, condições iguais à partida para sua apreciação, comparação e discussão conjunta, condição indispensável ao debate científico.
O período compreendido pelos artigos que conformam este dossiê constitui tradicionalmente objeto de intensas discussões teórico-metodológicas. Uma vez que examinam temas ligados ao escravismo, à religião católica, às instituições militares, às condições de nobreza, ao direito e à justiça, bem como à administração, os artigos aqui reunidos são igualmente atravessados por estas discussões, embora não se limitem a elas. Para além do tratamento historiográfico e das discussões teórico-metodológicas que ensejam, todos se acercam, em maior ou menor grau, de bases empíricas que conferem às suas análises densidade e grande potencial de formulação de novos problemas científicos. Como propõe Pierre Bourdieu, faz-se sempre necessário desconfiar da “teoria teórica”, isto é, do “discurso profético ou programático que tem em si mesmo o seu próprio fim e que nasce e vive da defrontação com outras teorias”.1
Ao mesmo tempo, três características se destacam na maior parte dos artigos aqui apresentados. Em primeiro lugar, referimo-nos à opção pela abordagem comparativa ou, no limite, conectada dos fenômenos investigados. No mínimo, consideram-se os processos examinados em impérios coloniais distintos – o português e o espanhol – e, também, no limite, é o mundo atlântico, ou a economia-mundo, a escala ou configuração mais abrangente de sua análise ou de suas abordagens historiográficas. Muitos desses processos e abordagens ficariam na penumbra ou jamais seriam considerados caso fossem confinados a perspectivas estritamente nacionais ou regionais de historiografia. Constitui desafio considerável examinar o escravismo, as instituições militares, a administração, o direito, a justiça e o constitucionalismo, bem como a religião católica e suas instâncias efetivas, como o bispado, a paróquia e a irmandade, à luz de dados empíricos e problemas de interpretação presentes em diferentes tradições historiográficas. Tal procedimento nos permite propor, através de modelos próprios de análise, distintos de todos os demais, novos problemas teóricos e formas inovadoras e criativas de interpretação do material empírico a partir de tal alargamento de perspectiva. Enfim, a tendência da maioria dos artigos aqui presentes é a de romper com a construção de objetos confinados a capitanias ou impérios coloniais específicos, bem como com a mera comparação de processos observáveis no interior destes níveis de análise. Intenta-se, indo-se além, conectar tais processos mediante a elaboração de modelos de análise que rompam, igualmente, com supostas e aparentes singularidades dos fenômenos históricos.
Em segundo lugar, na vasta maioria dos artigos aqui apresentados, optou-se por deslocar exames de períodos curtos, próprios às abordagens monográficas, em favor de perspectivas estruturais e de longo prazo. São estas que permitem análises processuais, contemplar padrões de conexão, observar transformações e mudanças na longa duração. Compreender as metamorfoses da nobreza e da riqueza ao longo do Antigo Regime, as transformações e as modalidades da administração das fronteiras, a gênese e a institucionalização de corpos militares, o peso e o impacto das reformas do século XVIII sobre a gestão de instâncias de efetivação da religião católica – paróquias, irmandades e confrarias –, bem como entender a criação e o desenvolvimento de um campo de tensões envolvendo a justiça e o direito no período compreendido entre a era de formação dos impérios coloniais e a era das revoluções atlânticas e dos constitucionalismos, apenas se tornam tarefas viáveis mediante análises processuais de longo prazo.
Em terceiro lugar, uma diversidade considerável de indivíduos, grupos e classes sociais foi contemplada nas análises propostas através dos artigos. Ademais, suas relações no interior de configurações sociais menores ou mais abrangentes, interdependentes e conectadas, são, ao mesmo tempo, examinadas mediante a análise dos campos de tensões específicos que formavam. Análises de indivíduos, grupos e classes sociais identificados como nobreza peninsular, camadas abastadas da América portuguesa ou do Império espanhol, indígenas, escravos africanos e seus descendentes livres ou cativos nascidos na América, burocratas, juristas e militares envolvidos na administração das capitanias, das câmaras e das instâncias ao mesmo tempo judiciárias e executivas e, finalmente, padres, bispos e prelados produzem um olhar de conjunto sobre as configurações sociais de tipo antigo aqui privilegiadas, bem como sobre suas relações sociais e de poder. Jamais tomados isoladamente, mas sempre sob uma perspectiva relacional, indivíduos, grupos e classes sociais são examinados vis a vis às estruturas e configurações que formam com outros indivíduos, grupos e classes sociais. Finalmente, destaque-se que nós mesmos, historiadores sociais, somos observados como grupo social em artigos aqui presentes. Reflexivamente, porque estamos, todos, situados numa quinta dimensão, a dos símbolos linguísticos, encarnamos aqui sujeitos e objetos de nossa própria análise, 2 vinculados, através de nosso ofício, ao exame da sociedade de tipo antigo.
Muitos dos artigos aqui reunidos retomam antigos problemas de historiografia e também de sociologia. Outros dialogam com tradições científicas soterradas nos últimos anos, as quais ressurgem renovadas graças às necessidades de restabelecermos enfoques baseados em visões de longo prazo e em configurações abrangentes, como os impérios coloniais, o mundo atlântico ou a economia-mundo. Também se faz necessário recorrer a teorias sociológicas de modo a construirmos modelos teóricos que nos permitam, por um lado, examinar configurações sociais a partir dos modos de ligação efetivos entre indivíduos, grupos e classes sociais, com seus distintos potenciais de retenção de poder, e, por outro lado, sublinhar planos de conexões entre diferentes sociedades, em geral apartadas por ranços nacionalistas ou, ainda pior, por perspectivas de cunho regional. Ademais, precisamos romper com o singularismo que levou a disciplina histórica a um beco sem saída. Entendemos que este dossiê colabora para uma visão mais integrada e mais conectada de processos sociais, e vai daí retomarmos antigas abordagens – que muitas vezes são mais adequadas ao exame de novos problemas estruturais que a mera novidade disponível no mercado.
Notas
1. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989, p. 59.
2, ELIAS, Norbert. Teoria simbólica. Oeiras: Celta, 1994, p. 47.
Luiz Geraldo Silva – Professor associado do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa – CNPq. E-mail: gerter@terra.com.br
Marco Antônio Silveira – Professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, doutor pela Universidade de São Paulo e bolsista de Produtividade em Pesquisa – CNPq. E-mail: mantoniosilveira@yahoo.com.br
SILVA, Luiz Geraldo; SILVEIRA, Marco Antônio. Apresentação. Revista de História, São Paulo, n. 169, 2013. Acessar publicação original [DR]