FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G. von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012. Resenha de: SANTORO, Thiago Suman. Philósophos, Goiânia, v.18, n. 1, p.233-243, jan./jun., 2013
Como terceiro volume da série intitulada J.G. Fichte – Späte wissenschaftliche Vorlesungen (Studientexte), o livro ora avaliado traz a lume importantes textos da fase berlinense do filósofo, que na sua maior parte permaneceram inéditos até metade do século XX, com o início da edição crítica de suas obras completas. O presente volume inclui uma reprodução dos manuscritos originais de três cursos ministrados entre o inverno de 1811 e o verão de 1812, que têm por título Lições sobre a Determinação do Sábio1 (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), Doutrina do Direito (Rechtslehre) e Doutrina da Ética (Sittenlehre). Enquanto objetivo geral da presente resenha, pretendo não exatamente estabelecer uma análise crítica do conteúdo filosófico das obras em questão, algo que sem dúvida necessariamente ultrapassaria em muito o escopo de uma resenha padrão, considerando-se a complexidade dos textos aqui recolhidos, e considerando sobretudo que não são textos de um novo autor senão obras de um filósofo já consagrado na história, mas almejo apenas apresentar de modo sucinto alguns dos principais temas tratados no livro, de modo a instigar a curiosidade filosófica do leitor, e principalmente chamar a atenção para algumas qualidades dessa edição primorosa em novo formato. Segue abaixo, assim, uma breve descrição geral do conteúdo dos cursos em questão.
Também denominado Doutrina Ética para o Sábio2, temos na presente edição o terceiro ciclo de preleções sobre esse tema, intitulado Lições sobre a Determinação do Sábio (Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten), e proferido em 1811 na recém fundada Universidade de Berlim, um curso que Fichte já lecionara no início de sua carreira acadêmica em Jena (1794)3, e posteriormente no seu retorno à vida universitária em Erlangen (1805).
Na primeira versão do curso, em Jena, encontramos ainda um texto que traz diversas questões teóricas não resolvidas, pois somente alguns anos mais tarde, após a elaboração da Doutrina do Direito de 1976 e da segunda versão da Doutrina-da-Ciência (nova methodo), Fichte responderá de maneira adequada, por exemplo, ao problema do papel que a intersubjetividade desempenha na definição da tarefa do sábio. Além disso, esse texto inicial consagra suas primeiras preleções à descrição de três premissas fundamentais da definição da tarefa do sábio: se na primeira lição temos uma determinação do homem em si, na lição subsequente encontramos uma determinação do homem na sociedade, seguida de uma investigação sobre as distintas posições ou classes profissionais na sociedade. Só a partir dessas etapas seria possível ao filósofo sistemático Fichte deduzir, na quarta lição, uma Determinação do Sábio. Ao final da obra, o autor faz um excurso sobre Rousseau.
Todas essas etapas preparatórias serão suprimidas já na edição de 1805, e o curso de Berlim, seguindo os moldes deste último, apresenta como desenvolvimento ulterior das teses de 1794, além da determinação do sábio, uma espécie de tipologia dos distintos modos de atuação e comunicação desse mesmo sábio. Assim, o referido curso pretende responder, nas próprias palavras de Fichte, às seguintes questões fundamentais: 1) o que é o sábio? 2) como ele se torna sábio? 3) como seu ser interior se exterioriza no fenômeno?4 Engana-se, todavia, aquele leitor que pretende encontrar aqui uma simples investigação superficial acerca do status quo da emergente classe acadêmica na Alemanha da época, ou alguma espécie de manual de etiqueta para o métier do filósofo universitário. Não por acaso decidi traduzir o termo alemão Gelehrte, utilizado no título da obra, por “sábio”, ao invés de “douto” ou “erudito”. De acordo com as primeiras lições do curso de 1811, o sábio serve como uma espécie de mediação entre os aspectos suprassensíveis e sensíveis da realidade. Em outras palavras, Fichte sugere que a essência do sábio, na esteira do modelo platônico, consiste em uma visão de ideias, isto é, em certa compreensão intuitiva do fundamento conceitual que determina a própria realidade humana. Caso o sujeito decida transmitir essas ideias a outros, ele se torna professor. Caso ele pretenda implementar essas ideias no mundo, ele se torna administrador do estado.
Ao responder à segunda questão inicial, Fichte observa que o processo de tornar-se sábio não pode se realizar desde fora, desde um procedimento mecânico, mesmo que através do domínio da razão ou da linguagem, pois o objetivo final dessa formação só é atingido quando o indivíduo acessa sua intuição interna e desenvolve, conforme indica em tom um tanto místico o próprio texto de Fichte, um “olho para o suprassensível” 5 . Somente através desse esforço interno próprio, para além da mera erudição, é que o sujeito alcança o estatuto de sábio.
Nesse sentido, o teor da tese anterior parece delimitar o percurso ulterior da obra, na medida em que Fichte utiliza a distinção entre sábios e não sábios para estabelecer uma controversa estrutura hierárquica de funções sociais (mais uma vez ressoa aqui a politiké platônica). E a partir disso chegamos à tentativa fichtiana de responder à terceira questão fundamental da obra. Contudo, infelizmente a natureza inacabada do texto original (pois não dispomos mais do restante das lições que continuaram o curso de Berlim), ao invés de explicitar a forma de manifestação ou exteriorização do ser interior do sábio, conforme o plano inicial da obra, traz na sua quinta e última lição apenas uma descrição de critérios para a escolha dos distintos tipos de alunos nessa formação.
A presente edição das conferências de Fichte no período tardio de sua filosofia contém ainda duas importantes obras dos ciclos de lições sobre subdisciplinas filosóficas iniciados já no período de Jena, a saber, a Doutrina do Direito e Doutrina da Ética. No que diz respeito ao primeiro, o texto final dessa edição estudantil enfrentou certo desafio editorial. Na edição crítica GA, temos uma reprodução exata do manuscrito resumido e muitas vezes críptico redigido pelo próprio autor. Além disso, há uma versão desse curso editada pelo filho de Fichte6, que no entanto acrescenta, sem indicar precisamente em que situação, passagens do texto fichtiano de 1796 sobre o mesmo tópico, ao considerar que o curso de Berlim faz remissões às preleções desse primeiro ciclo. A presente edição optou por um sensato meio termo, na medida em que adotou o texto original como base, acrescentando quando estritamente necessário à compreensão os trechos de 1796 entre colchetes.
Ainda que através de dois manuscritos de estudantes da época possamos afirmar que Fichte de fato fez referências à sua obra do período jenense sobre direito no curso de Berlim, não se trata aqui no presente texto de uma simples reformulação das teses anteriores. As lições tardias estão estruturadas em duas grandes partes, sendo a primeira uma introdução ao próprio conceito de direito que supera em clareza e facilidade de compreensão a exposição de Jena, e tendo como segunda parte principal uma análise dos contratos de propriedade. Além disso há um anexo relativo ao direito internacional (Völkerrecht), e desaparece o conteúdo, frágil em sentido argumentativo, a respeito do direito familiar que constava na primeira versão da doutrina do direito.
Outra diferença marcante dessa versão tardia da doutrina do direito com relação à anterior consiste na exposição mais direta daquilo que poderíamos denominar por fundamentação do direito. Ao contrário do texto de 1796, redigido ainda na época em que Fichte iniciava o desenvolvimento de seu sistema filosófico, a presente obra pôde já tomar como pressupostas as deduções da intersubjetividade estabelecidas, por exemplo, na Doutrina-da-Ciência nova methodo. Não se pode ler, contudo, nessa diferença de método uma espécie de transformação no próprio projeto fichtiano.
A doutrina do direito de 1796 simplesmente apresenta um prenúncio dessas deduções necessárias ao sistema do filósofo, e agora Fichte pode considerar isso como realizado e explicar a origem do conceito de direito a partir de seu fato fundamental, a saber, a existência de uma comunidade de seres livres.
Uma das teses fundamentais apresentadas na teoria do direito fichtiana envolve a distinção radical entre a esfera jurídica e aquela relativa à moral, ainda que Fichte jamais considere aceitável uma separação absoluta entre ambos os termos. A esfera jurídica, que concerne a totalidade ou conjunto dos indivíduos em sociedade ao invés do indivíduo particular, funciona como um mecanismo de coação, no sentido de que garante ao corpo social a manutenção dos direitos individuais ao exigir de cada cidadão o cumprimento dos seus deveres, através da obediência às normas vigentes em sua legislação. Mas isso não impede a qualquer indivíduo que sua atuação no meio social se paute por princípios éticos, desde que em acordo com tais leis. Nesse sentido, o direito se mostra como condição necessária porém não suficiente para a realização da ética.
Outro aspecto interessante da teoria fichtiana concerne o limite inerente ao papel do estado na definição das atividades individuais. Longe de defender um estado completamente controlador, como algumas de suas críticas mais radicais ao liberalismo econômico feitas em outro texto anterior poderia sugerir7, Fichte admite que a determinação das obrigações políticas do cidadão por parte do governo não pode interferir no uso que cada indivíduo faz de seu tempo de ócio.
Por fim, uma mudança notável que surge nessa nova versão da doutrina do direito diz respeito ao que Fichte denominou Ephorat. Essa instituição, que deveria se contrapor ao abuso de poder por parte do estado, e que em última instância teria o direito de convocar a população à uma espécie de revolta ou revolução coletiva em defesa de sua liberdade, tem agora na teoria fichtiana um papel menor, e acaba se transformando naquilo que Fichte já naquela época definiu como “eforato natural”. Sem dúvida surge aqui uma mudança significativa no pensamento político de Fichte, em grande parte influenciada pela experiência negativa do filósofo após a invasão napoleônica na Prússia, e em consequência disso por sua crescente decepção com os efeitos contraditórios da Revolução Francesa.
Tomando agora em consideração o terceiro texto do livro ora resenhado, vemos na Doutrina da Ética (Sittenlehre) de 1812 uma obra completamente repensada, se a comparamos com a Ética escrita no período de Jena, sem a proximidade teórica antes encontrada entre as duas Doutrinas do Direito. Isso se deve em grande parte ao fato de que Fichte, alguns anos após sua saída de Jena, elaborou uma teoria sobre cinco modos distintos de compreensão ou visão de mundo (Weltansicht). Essa tese, cujo desenvolvimento detalhado aparece em dois textos da fase intermediária, intitulados Anweisung zum seligen Leben e Die Grundzüge des gegenwärtigen Zeitalters, ambos publicados em 1806, apresenta uma escala hierárquica de visões de mundo, e dentre essas cinco etapas encontram-se dois pontos de vista da moralidade, denominados por moralidade inferior e superior.
Fichte indica nesse período que seu texto sobre ética de 1798 se refere ainda àquilo que o autor entende por moralidade inferior, isto é, trata-se neste caso de uma teoria moral que permanece atrelada à lei ordenadora, uma moralidade fundamentada em princípios restritos aos interesses da sociabilidade humana.
Podemos afirmar que o texto reformulado de 1812 representa a tentativa fichtiana de postular uma teoria da moralidade superior, que não mais se restringe à lei simplesmente ordenadora, mas aponta para uma lei ao mesmo tempo criadora. Para compreendermos melhor essa distinção, será necessário indicar qual o papel preciso que a doutrina ética representa na determinação dessa classificação.
Fichte postula na sua teoria dos pontos de vista sobre o mundo uma subdivisão importante. Por um lado, os dois primeiros graus da escala, referentes respectivamente aos pontos de vista da Filosofia da Natureza e da Filosofia do Direito ou da Ética inferior, constituem isso que o autor denomina por Scheinlehre, isto é, uma doutrina da aparência ou da ilusão, na medida em que tais posições não compreendem o estatuto primordial do conceito na fundamentação do mundo manifesto. Do outro lado do espectro encontra-se as posições relativas àquilo que Fichte denomina Wahrheitslehre, ou doutrina da verdade. Temos neste caso dois pontos de vista, a saber, a Doutrina da Religião e a Doutrina da Ciência, que permitem, a partir de vias distintas, a compreensão do fundamento último da realidade, o próprio Absoluto, em sua natureza incompreensível, ou melhor, em sua incompreensibilidade. Nesse sentido, a doutrina da ética tem como função principal servir como mediação desses dois extremos, e isso se realiza através do desenvolvimento de uma Erscheinungslehre, de uma doutrina da manifestação ou do fenômeno.
Justamente por essa razão o texto da Ética de 1812 se divide em duas partes principais. A parte inicial apresenta uma dedução do sujeito, da causalidade real, da vontade e do dever, a partir do próprio conceito, enquanto fundamento provisório da moralidade. Na segunda parte encontramos propriamente a Erscheinungslehre, uma fenomenologia que desvenda a natureza provisória daquele conceito, na medida em que revela o caráter fenomênico de toda figuração ou imagem do Absoluto. Não por acaso o texto da presente obra encerra com uma longa discussão a respeito da relação entre as doutrinas da religião e da ciência.
Finalmente, gostaria de tecer um comentário a respeito de certa importância pragmática dessa série. Até meados do século passado considerado por grande parte da comunidade acadêmica filosófica como um dos mais obscuros membros do idealismo alemão pós-kantiano, Johann G. Fichte finalmente recuperou, após o elogiável esforço realizado pelo comitê da edição crítica de sua obra, seu verdadeiro estatuto como um dos pilares da história da filosofia. Com a recente finalização da referida edição das obras completas do filósofo (conhecida como Johann G. Fichte Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften ou, abreviadamente, GA), podemos agora avaliar corretamente a importância e atualidade deste que, em sua época, sem dúvida foi um dos mais admirados pensadores germânicos.
Não há como negar que o trabalho da edição crítica seguiu um padrão de rigor e minúcia exemplar, algo que se percebe imediatamente no imenso aparato de notas explicativas, nos índices remissivos separados por autores ou personagens mencionados, locais, e assuntos, tudo isso acompanhado, em cada volume, de uma introdução geral bastante detalhada bem como de prefácios para cada um dos textos principais. Somando-se a qualidade gráfica da impressão e o zelo pela impecável escolha do material de encadernação, compreende-se porque a GA de Fichte tornou- se de fato um modelo de edição crítica em meio à comunidade acadêmica da área.
No entanto, o alto custo dos 42 volumes da obra completa faz com que poucas sejam as bibliotecas universitárias a adquirir e disponibilizar a coleção, ao menos em nosso país, e não se faz necessário observar que o mesmo vale ainda mais para aquisições individuais. Nesse sentido, a edição da versão estudantil do mesmo texto da GA, infelizmente por enquanto restrita aos manuscritos, tanto do próprio Fichte como de seus alunos, referentes aos cursos realizados na Universidade de Berlim (série IV da edição crítica) – bem como ao segundo volume da série I, edição em separata dos importantes textos inaugurais Ueber den Begriff der Wissenschaftslehre e Grundlage der gesammten Wissenschaftslehre 1794/95, preenche uma lacuna na medida em que disponibiliza, em formato completo e ao mesmo tempo economicamente acessível à maior parte dos estudantes e pesquisadores, fontes imprescindíveis para a correta compreensão do pensamento do filósofo tanto em seu período inicial quanto em sua fase tardia, como bem representa o recém publicado terceiro volume da série aqui em foco.
Notas
1 Sigo aqui a sugestão da tradução portuguesa (cf. nota seguinte), com a diferença de que traduzo “Bestimmung” por “determinação”, ainda que a primeira tenha adotado “vocação” para traduzir mais livremente o termo.
2 Cf. Fichte, J. G. Die späten wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814), p.xvi da introdução do editor.
3 Existe uma tradução portuguesa para essas conferências de Jena em: FICHTE, J. G. Lições sobre a Vocação do sábio. Trad. Artur Morão. Edições 70: Lisboa, 1999.
4 Isso já aparece no primeiro parágrafo da obra em questão. Cf. GA II 12, p.313. Como de praxe, GA refere- se à edição crítica da obra de Fichte (Gesamtausgabe), seguido do número da série e do volume correspondente.
5 Cf. GA II 12, p.343.
6 Cf. Fichte, J. G. Sämmtliche Werke, vol. X.
7 Refiro-me aqui ao texto do autor intitulado Der geschlossene Handelsstaat (O Estado Comercial Fechado), publicado em 1800. Cf. GA I 7.
Referências
FICHTE, J. G. Die Späten Wissenschaftlichen Vorlesungen (1809-1814). Editado por H. G . von Manz, E. Fuchs, R. Lauth, e Radrizzani, I. 3º volume. Stuttgart-Bad Cannstatt: Frommann-Holzboog, 2012.
_________. Gesamtausgabe der Bayerischen Akademie der Wissenschaften. Reihe II: Nachgelassene Schriften, v. 12 (1810-1812). Editado por R. Lauth, E. Fuchs, H. Gliwitzky, e P. K. Schneider, Stuttgart-Bad Cannstatt : Frommann- Holzboog Verlag 1962-2012.
_________. Sämmtliche Werke. Editado por Fichte, I. H.
Berlin: de Gruyter, 1962.
_________. Lições sobre a Vocação do Sábio. Tradução de Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1999.
Thiago Suman Santoro – Professor Adjunto na Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. E-mail: thsantoro@gmail.com
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