Este livro sobre as políticas africanas dos dois Estados alemães entre 1949 e 1990 pode ser considerado, por duas razões, uma agradável conseqüência da reunificação da Alemanha. Em primeiro lugar, só a abertura dos arquivos da ex-RDA permitiu, pela primeira vez, pesquisar e entender profundamente a política exterior deste Estado. Os dois autores tiraram bastante proveito desta extraordinária oportunidade. Em segundo lugar, a cooperação entre os dois autores simboliza a ruptura política na Alemanha. Ulf Engel, cientista político de Hamburgo, cuja área principal de trabalho são as relações internacionais na África Austral, atuou neste projeto com Hans-Georg Schleicher, historiador, ex-diplomata de carreira da RDA e ex-embaixador deste Estado no Zimbábue que, juntamente com a grande maioria dos seus colegas, foi demitido no processo da reunificação. A pesquisa ganhou significativamente com esta cooperação “desigual”, e com a formação acadêmica e política e as biografias e experiências profissionais tão variadas e distintas dos dois colaboradores.
O livro não traz nenhuma dramática reinterpretação das políticas africanas das duas Alemanhas, nem revelou nenhuma novidade sensacionalista que, em outras ocasiões, acompanharam tanto o processo de abertura dos arquivos da ex-RDA. Em vez disso, representa um trabalho sério e muito bem fundado em fontes primárias e entrevistas sobre os aspectos centrais destas políticas, identificando os paradigmas, os interesses, os atores, os processos de decisão, os determinantes e o impacto. Entretanto, o que surpreende mesmo os especialistas da área, e o que aparece como um dos resultados centrais da obra, é como a concorrência entre os dois Estados influenciou suas políticas africanas. De 1959 até 1973, o fator quase unicamente determinante nas políticas africanas das duas Alemanhas tinha pouco a ver com o continente africano. O continente e os novos Estados foram instrumentalizados pela política da RFA que inibia o reconhecimento internacional da RDA como Estado soberano, e da Alemanha Oriental que, por sua vez, escolheu a África como palco preferido para minar este ostracismo internacional. Com a formulação da Doutrina de Hallstein, uma espécie de orientação básica nesta variante alemã da Guerra Fria, a RFA condicionou boas relações diplomáticas e, mais importante, a concessão de apoio financeiro e de cooperação técnica ao não-reconhecimento da RDA. Esta política não somente às vezes causou profundos conflitos com os jovens Estados africanos, mas fez também com que as duas políticas africanas dependessem uma da outra e não existissem independentemente. Os autores chamam isso de “interação negativa” entre as duas políticas e argumentam que, nesta fase, a política africana dos dois Estado representa nada menos do que uma extensão da política alemã (Deutschlandpolitik) no continente negro.
Depois de 1973, ano quando a détente, a nova Ostpolitik e a admissão dos dois Estados alemães na ONU chegaram a relaxar as relações bilaterais, uma nova fase nas políticas africanas se iniciou, mas a instrumentalização do continente por objetivos de política global permaneceu importante. Até o início dos anos 80, foram os conflitos na África Austral e sua inserção no cenário da Guerra Fria que influenciaram bastante a atuação dos dois Estados no continente. Finalmente, a partir de 1982, até o fim da RDA em 1989/90, segundo os autores, já é visível uma tendência de marginalização da África na política exterior, especialmente por parte da RDA, com o continente sendo, cada vez mais, identificado com crises políticas, econômicas e ecológicas. Na RDA, esta mudança se deu acompanhada por um espaço maior do Ministério de Cooperação Econômica na formulação da política africana. Como conseqüência, a política africana se torna crescentemente uma política de cooperação técnica e financeira e de ajuda emergencial. Entretanto, a política junto à República Sul-Africana representa uma exceção: naquela região ainda domina a primazia da política e da economia.
Os autores abordam a política africana dos dois Estados alemães por três perspetivas. Na primeira parte do livro, é analisado o processo histórico da evolução das políticas dos dois Estados, com as suas principais etapas, rupturas e continuidades. Depois é exemplificado o caráter das políticas africanas com estudos de caso: a Doutrina de Hallstein e a política exterior junto a Tanzânia e Gana, a questão da autonomia das políticas africanas frente às exigências dos respectivos blocos, a política acerca da questão da descolonização da Namíbia e com a Konrad-Adenauer-Stiftung e o Ministerium für Staatssicherheit, dois instrumentos da política exterior na África. Na terceira parte, aspectos mais fundamentais e sistemáticos são abordados, mostrando as semelhanças e diferenças nas políticas dos dois Estados. Inicialmente, é argumentado, os interesses na África eram quase idênticos e tinham como referencial absoluto a competição internacional entre os dois Estados. Além deste interesse prioritário, a RFA seguiu vários interesses secundários (como o interesse econômico junto a África do Sul e Nigéria) e, crescentemente, interesses de caráter de valor, que não têm vínculo direto com questões econômicas, estratégicas ou de poder. Para a RDA, a África tinha importância, além da dimensão do combate à Doutrina de Hallstein, em fornecer legitimidade interna para o regime através da projeção internacional dos valores representados pelas elites deste Estado, e, parcialmente, durante os anos 70, como parceiro econômico. Os atores e os instrumentos da política africana na RFA eram mais diversificados e pluralistas que na RDA, um resultado que não surpreende ninguém. O espaço político dos dois Estados na formulação e execução das suas política africanas no contexto dos blocos políticos era, segundo os autores, maior do que se tem geralmente pensado.
Finalmente, tiveram sucesso os dois Estados na realização dos seus objetivos na África? Os autores atestam resultados ambivalentes. Na realização dos seus interesses políticos, a RFA teve um certo sucesso inicial: conseguiu atrasar o reconhecimento diplomático da RDA. No plano da política de cooperação e da realização de interesses de valor, a política da RFA mostrou, segundo os autores, haver atingido êxito maior. Entretanto, a política africana da RFA sofreu em parte, especialmente acerca da questão do colonialismo na África Austral e do sistema do apartheid, de falta de credibilidade e de uma brecha entre declarações e prática. A política da RDA, que sempre tinha que agir com recursos muito limitados, celebrou os seus maiores sucessos e seu impacto mais profundo junto aos movimentos de libertação da África Austral e na área de segurança em alguns Estados com sistema político monopartidário.
Além da abrangência dos temas tratados e da profundidade da pesquisa, o livro deixa ainda algumas lacunas que, em parte, os autores reconhecem. Sentiu-se a ausência de uma maior conceituação teórica da obra e, ao nosso ver, o processo de formulação da política africana da RFA, especialmente o papel da opinião pública e dos grupos extraparlamentares (como as igrejas e os movimentos de solidariedade), merece uma investigação mais detalhada.
Resenhista
Wolfgang Döpcke
Referências desta Resenha
ENGEL, Ulf; SCHLEICHER, Hans-Georg. Die beiden deutschen Staaten in Afrika: Zwischen Konkurrenz und Koexistenz 1949-1990. Hamburgo: Institut für Afrika-Kunde, 1988. Resenha de: DÖPCKE, Wolfgang. Revista Brasileira de Política Internacional, v.42, n.1, 1999. Acessar publicação original [DR]
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