Itamar Freitas (2015) não se furta a dar resposta à questão motivadora e espinal desta obra, mesmo que a faça com certa dose de anacronismo, como alerta durante o texto. Aliás, o que poderia representar para muitos historiadores como uma falha estrutural na urdidura da sua hipótese, levando ao esfacelamento e descrédito dos argumentos, Freitas vale-se do “bicho papão” dos historiadores, o anacronismo, para construir uma interpretação ousada e coerente para questão: “o que é pensar historicamente em…?”. O autor indaga a questão a cinco filósofos e historiadores que entre os séculos XVIII e XX, trataram de alguma forma dos usos da história na formação de pessoas em uma duração conjuntural.
O historiador nos informa que a opção por autores com vivência na Alemanha, França, Espanha, Estados Unidos e Inglaterra está justificada pelos nos nossos modos de ensinar história, que estiveram ancorados em epistemologias de fundo dominantemente empirista (nos casos de J. Lock e F. Herbart) e empirista/evolucionista (J. Dewey), panorama esse, que somente se alteraria no início do século XX, momento em que tais suportes são, em parte, substituídos por uma epistemologia histórica, ainda empirista, embora não positivista (R. Altamira e C.-V. Seignobos).
Faz-se mister dizer que, embora o recorte temporal da obra abarque uma grande fatia do espaço-tempo, a análise não é feita holisticamente, ou seja, o que Freitas (2015) faz é lançar luz à obras pontuais, em que os referidos autores abordaram a instrução de pessoas em idade escolar.
O primeiro autor analisado pelo historiador é John Locke (1667-1703)2 que se preocupou com a educação do gentleman que deveria ser virtuoso, hábil e útil em diferentes ocupações. O intelectual inglês afirma que o lugar da mente é o cérebro e sua natureza é análoga a “um papel em branco”, nesse sentido, a memória em Locke é individual e está relacionada a processos cerebrais de armazenamento de informações. Os acontecimentos são primordialmente os acontecimentos gloriosos, principalmente, porque a história privilegiada pelo inglês é a história política factual de Henrique VII e de Francis Bacon. Isso fica perceptível através das indicações de leitura que Locke faz para os cavaleiros. Tratava-se de relatos, como nos informa Freitas (2015, p. 25), cujos acontecimentos destacados são, predominantemente, os nascimentos, assassinatos, casamentos e coroações de nobres, embaixadas, tratados, batalhas, tréguas, rebeliões e execuções ocorridos entre 1485 e 1509. Ou seja, os acontecimentos eram oferecidos em sua ordem natural (do mais antigo para o mais recente).
Embora Locke não tenha se ocupado de peças históricas, é possível aludir que para o autor pensar historicamente não se efetiva a partir das estratégias do historiador (das operações processuais do ofício, em vigor no século XVII), posto que a história, ao menos em alguns dos seus escritos educacionais, já estaria dada. Para o autor, pensar historicamente é simplesmente respeitar e empregar o mecanismo natural de ideias que nos são apresentadas, sensível e mentalmente, na condição de sequência. Assim como, reconhecer que há duração entre partes desta sucessão ou entre o aparecimento de duas ideias.
Já em Johann Friedrich Herbart (1797-1841), a educação forma o homem virtuosos, capaz de perceber o que é bom e o que é mal. Para Freitas (2015, p. 40) o autor entende que mente humana funciona como um conjunto de ideias em disputa que atuam na condição de força umas contra as outras, em busca de espaço na consciência. Quando percebidas em séries e apreendidas numa determinada ordem, dão origem, por exemplo, ao que se chama de memória. Neste caso, a narrativa deve ser de ordem cronológica, onde deve envolver a formação de séries de nomes e ou acontecimentos e a apresentação destes. O autor alemão indica a leitura de curtas biografias para primeira preparação à história da idade média e à história moderna. O tempo em Herbart é progressivo e longo. Para Freitas (2015, p. 45) a ideia de tempo no autor é formada a partir de simultaneidade de percepção e da recordação de uma mesma série de ideias, portanto, o tempo é a coincidência entre percepção de séries de ideias e a rememoração de séries de ideias análogas.
Por sua vez, John Dewey (1897-1916) ao discutir as tarefas atribuídas à educação escolar faz alusão à história, em tom denunciativo, ao dizer que não deveria se exigir do aluno a análise e a retenção de fatos isolados, a recitação controlada minuto a minuto e a memorização dos fatos históricos. Ao entender que a história é “um relato das formas da vida social”, Dewey ia de encontro à vulgata do seu tempo que entendia o ensino de história como o conhecimento das causas e consequências dos acontecimentos trágicos ou exitosos. Para Freitas (2015, p. 55) em Dewey cronologia é importante, mas a “correlação” não se estabelece entre a ontogênese e a filogênese e, sim, entre os interesses atuais da sociedade e as capacidades cognitivas das crianças. Ou seja, as crianças deveriam lidar e aprender com que está perto e não nos tempos remotos. O autor se diferencia profundamente de Harbert que professava a cronologia progressiva clássica do historiador, assim como distanciava do alemão quando este sugeria que era fundamental iniciar com narrativas de ficção, pois para Dewey era essencial narrar sobre a “realidade” da criança – o mundo social circundante Ou seja, o tempo presente. Essa mudança cronológica para uma mudança psicológica significa, também, a mudança de conteúdos substantivos e de estratégias de ensino.
A ênfase do ensinar história em Dewey está na premissa de fornecer ao aluno base e perspectiva intelectual para entender e atuar no presente. Isso explica a opção por conteúdos de história moderna como: história industrial, econômica, do trabalho em lugar da história política. Segundo, o intelectual, essa opção faria com que a história se tornasse mais humana, democrática e, portanto, mais liberalizante que a história política. O autor ainda lança sérias críticas a uma história que deixa de incluir aspectos da história do trabalho, segundo ele, essa ausência faria da história meramente literária, “um romance sistematizado de uma humanidade mítica, vivendo sobre si mesma, quando na verdade vive sobre a terra”.
Nesse sentido, para Freitas (2015, p. 60), pensar historicamente em Dewey é refletir sobre a experiência humana como o transcurso de etapas (cujo ápice seria a emergente sociedade industrial) para visitar o passado, justifica-la e mantê-la. Sobretudo, a inovação que o autor traz ao ensino de história deve ser reconhecido, como ainda nos sugere Itamar Freitas (2015, p. 59), principalmente, pela defesa em favor da história social e a introdução do método experimental como estratégia de ensino e aprendizagem.
Já no quarto autor, Rafael Altamira (1866-1951), humanista, historiador, pedagogo e crítico literário espanhol, o qual escreveu, entre outras obras, o manual de teoria e didática da história La enseñanza de la história (1891/1895)3, Freitas identifica os primeiros indícios acerca do “pensar historicamente” e da “alfabetização histórica”. É nesse sentido que o “novo paradigma”, como é chamado por Carolyn Boyd (2000), ou, “código escolar”, como será classificado por Francisco Cuesto Fernantes (1997) marca a singularidade da escrita do historiador espanhol, considerado pelos historiadores que procuraram tecer uma síntese sobre a produção e usos da história espanhola, como o “regenerador” da historiografia nacional, pois redefiniu as formas e funções do conhecimento histórico (respectivamente, político-educativa e civilizacional). Todavia, é necessário ressaltar que a categoria “civilização” não se aproxima da crítica social darwinista, na verdade, o termo faz alusão ao seu uso cristão, em que civilizado é o povo que preserva os valores de “humanidade, tolerância, piedade, justiça e correta conduta na vida” (2015, p. 72).
Portanto, esse sentido “regenerador” da história nacional, justifica-se, pois a época, a vida dos espanhóis era marcada por uma espécie de caráter “decadente” segundo os critérios civilizacionais impostos por alemães, ingleses e, principalmente franceses.
Construindo uma síntese entre psicologia educacional e a história, Altamira desenvolve uma “espécie de alfabetização histórica” que “pode ser colhida nos seguintes termos: o aluno aprende história partindo do conhecimento temporal e espacialmente, para dois ou três anos depois, apreender a experiência sensível, inteligível e volitiva dos povos ao longo do tempo” (FREITAS, 2015, p. 74-75). Neste caso, pensar historicamente em Altamira é uma série de ações mentais que desperta e desenvolve no aluno a “faculdade crítica”, melhorando o julgamento e ensinando- a conduzir os interesses dos estados e das comunidades.
Por sua vez, pensar historicamente em Charles Seignobos (1854-1942), expoente da escola metódica, é pensar politicamente e com precisão, articulando; vocabulário político, valores fundantes da cidadania e as regras de erudição histórica. Segundo Freitas (2015, p. 79), todo o esforço em consolidar a história enquanto ciência se assenta no próprio contexto histórico em que a França estava submersa. Eventos como a instalação da III República e a Guerra contra a Alemanha vão marcar decisivamente o corpo geopolítico da episteme construída por esses historiadores. Ao passo, que para Seignobos, a história representava o “verdadeiro ensino cívico”, cabendo ao professor a “missão de fazer a instrução política dos futuros cidadãos franceses” que a viveriam “em uma democracia representativa e laica”, podendo, assim, gozar dos direitos políticos.
Essa discussão será posta e condensada em vários textos produzidos, sendo o mais conhecido o, Introdução aos estudos históricos (1898), mas, embora seja o documento marco da institucionalização universitária da história na França, e, a obra que outorga o status científico a disciplina, não é ela que figura o horizonte de análise de Itamar Freitas, na realidade, o historiador prioriza sua atenção a uma conferência proferida nove anos após a publicação do manual, cujo o título já revela sua posição – O ensino de história como instrumento de educação política (1907).
Contudo, o autor não esquiva-se em fazer alguns apontamentos dos princípios lançados na Introdução, que segundo Freitas (2015, p.80), confere um sentido operacional, no que pese que a história é delineada como uma ciência (autônoma), fundamentada em um método de observação indireta dos atos humanos, cujas etapas maiores são: heurística, a análise e a síntese
Seignobos, como sugere Freitas, é bastante claro e didático em sua conferência. O historiador francês anuncia três questões básicas que nortearam seu texto: “a história pode servir a educação política?; por qual mecanismo a história pode educar para a política? e como a história deve ser ensinada de modo a contribuir com a educação política?”. A síntese dessas questões são apresentadas na compreensão da função da história, a qual deveria servir de instrumento capaz de desenvolver noções gerais que permitissem a criança a familiarizar-se com as noções fundamentais da vida política para que assim, pudesse viver em sociedade. Nesse sentido, a razão da existência da história estaria fundamentada no seu caráter instrumental de emancipação crítica – ou esclarecimento, no sentido kantiano.
Freitas encerra seu livro estabelecendo um paralelo entre a teoria e didática da história proposta por Seignobos (a metódica francesa) e Jörn Rüsen (historicismo renovado alemão), segundo o historiador tanto a episteme da metódica, quanto a episteme do renovado historicismo alemão compreendem a ciência da história como auxiliar fundamental a formação cidadão, a diferença residirá nas propostas e nos resultados que assumiram caminhos divergentes.
Itamar encerra enfatizando duas certezas. Primeira: não é possível discutir honestamente questões que envolvem ensino de história desconhecendo o universo das teorias da história. Em segundo lugar, somente é possível pensar na permanência do ensino de história na esfera pública lançando mão de uma noção de homem e mantendo os vínculos, ainda que bastante críticos, com as apostas iluministas.
Desse modo, seja pela ousadia, pelo folego ou pela erudição, “Didáticas da história: entre filósofos e historiadores (1690-1907)”, deve ser lido por todos àqueles que desejam palmilhar outras perspectivas que fuja da monofocal leitura teórica profetizada por um “certo imperialismo” sulista.
Notas
2 A data alocada ao lado do nome do autor diz respeito ao ano da publicação da primeira e da última obra analisada pelo historiador.
3 As datas se referem as duas edições analisadas por Freitas (2015).
Referência
FREITAS, Itamar. Didáticas da História – entre filósofos e historiadores (1690-1907). 1. Ed. Natal: Ed. UFRN, 2015.
Resenhista
Amauri Júnior da Silva Santos – Licenciado em História e Mestrando em História pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Bolsista Capes. E-mail: amauri@live.at
Referências desta Resenha
FREITAS, Itamar. Didáticas da História – entre filósofos e historiadores (1690-1907). Natal: Editora UFRN, 2015. Resenha de: SANTOS, Amauri Júnior da Silva. “O que é pensar historicamente em…?” Fronteiras: Revista de História. Dourados, v.18, n.31, p.482-487, jan./jun. 2016. Acessar publicação original [DR]
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