Dictadura, represión y sociedade en Rosario, 1976/1983: Un estudio sobre la represión y los comportamientos y actitudes sociales en ditadura | Gabriela Aguila
O livro é resultado da tese de doutoramento da autora, Historia social, memoria e dictadura. El GranRosario entre 1976 y 1983, apresentada e defendida em 2006 na Universidad Nacional de Rosario. Já no prefácio Gabriela alerta que a proximidade do período estudado, a influência que aqueles anos tiveram em sua trajetória e, principalmente, as demandas ainda existentes por justiça e pela busca da verdade interferem sim no trabalho científico e intelectual e obrigam uma reelaboração permanente de posições, suposições e praticas no ofício do historiador. Para ela, embora a repressão nas diversas províncias da Argentina fizesse parte de um amplo plano nacional, ela assumiu características peculiares nas diferentes regiões do país. Descobrir quais foram estas especificidades em Santa Fé e na sua capital é um dos objetivos de seu trabalho.
Além de mostrar como se operou a violência do Estado em Rosário, quais foram seus agentes e principais vítimas, Gabriela procura analisar aquelas pessoas que atravessaram este período num espaço intermediário, em outras palavras, que não estiveram ao lado da repressão – pelo menos diretamente – nem foram atingidos por ela. Ou seja, como a sociedade de Rosário comportou-se e de que maneira esse comportamento coletivo se articulava com a brutalidade do regime. Assim como na ditadura civil-militar brasileira de 1964, na Argentina, segundo a autora, esse consentimento se deu em termos de silêncio e passividade, mas à medida que mais pessoas foram sendo atingidas não apenas pela violência física, mas também pela crise econômica, isso foi diminuindo e vozes de oposição, não necessariamente de grupos de esquerda, começaram a se ouvir. Atitudes e práticas sociais, tanto de resistência como de conivência, foram se alterando com o decorrer do regime.
A obra se insere na Historia Social, abrangendo análises de gênero, de redes, de história oral e refletindo sobre a problemática memória e história. Quanto às fontes Gabriela admite uma dificuldade. Por ter como objeto de estudo acontecimentos recentes, e num período de intensa repressão, muito dos arquivos foram destruídos por parte do Estado e o que resta está disperso ou com acesso ainda vedado, especialmente documentos policiais e militares. Ela recorre então à história oral, à imprensa da época, discursos e declarações oficiais e expedientes judicias, lamentando o fato de Rosário ainda não possuir, assim como Buenos Aires, um arquivo da repressão.
Os depoimentos daqueles que foram vítimas da ditadura foram colhidos pela autora através de entrevistas pessoais, denúncias feitas a organismos de direitos humanos e também das citadas fontes judiciais. Quanto a estas últimas, destaca a sua peculiaridade em relação às outras formas de testemunhos, uma vez que por sua própria natureza, tendem a eliminar a subjetividade e possuir detalhes e informações bastante pontuais que às vezes são omitidas, deliberadamente ou não, em um depoimento oral de uma entrevista. Além disso, estas fontes também possuem a voz dos acusados. Na imprensa, embora tenha consultado também periódicos de Buenos Aires, predominam os jornais locais, principalmente La Capital.
No capítulo dedicado a traçar o perfil das vítimas do aparelho repressivo, Gabriela ressalta as expressões “delinquente subversivo” e “delinquente terrorista”, ambas cunhadas pelo Estado para justificar o encarceramento e posterior aniquilamento de seus inimigos. Para a autora, esta designação tinha por objetivo esvaziar o conteúdo político de tais grupos e deslocá-los para o âmbito policial, associando-os à desordem e à tentativa de implantação do caos na sociedade argentina. Entre estes alvos estavam organizações armadas de expressão peronista e marxista, nascidas no início da década de 70 e com trabalhos de conscientização política junto a sindicatos, organizações de massas e associações de estudantes. Mas o aparato repressivo incluía também nesta categoria grupos sem nenhuma vinculação com a luta armada, como ativistas sindicais, estudantis ou militantes sociais. Como em toda ditadura, qualquer descontentamento com o regime era interpretado como subversão e punido com o uso da força. Eram motivos para a detenção a queima de ônibus, distribuição de panfletos, pichações, lançamento de coquetéis molotov, dar guarida a outros “terroristas”, formação de barricadas, etc. Mas também aconteciam prisões sem que nenhumarazão fosse declarada.
O estudo sobre os arquivos da repressão revela o conhecimento, por parte das autoridades, das atividades dos grupos da esquerda armada desde 1968, o que revela um serviço de inteligência bem dotado de dados sobre suas futuras vítimas. É claro que muitas destas informações eram obtidas diretamente dos militantes, sob tortura. Esta seria a principal razão para o desmantelamento em poucos meses, em Rosário, de todas as células destas organizações. Aliás, Gabriela chama a atenção para o fato de que em 1975, ano anterior ao golpe, já haviam grupos cujas atividades foram encerradas brutalmente pelas forças repressivas do exército, mostrando uma estrutura oculta de repressão já em plena atividade antes mesmo da tomada do poder. Até por isso, a autora defende a tese de que as regras de tortura e funcionamento dos centros de detenção clandestinos já estavam pré-definidas e visavam não apenas a obtenção das informações sobre a resistência, mas também a “quebra” moral e física dos oponentes do regime.
Quanto aos locais de confinamento, ela os define como “microcosmos sociais”, ambientes onde “regras e pautas se localizavam nas antípodas das que regem outros âmbitos sociais e por este mesmo caráter, seu estudo comporta a necessidade de analisá-los como situações extremas, anormais (no sentido que contrastavam com a ‘normalidade’ da vida social) ou excepcionais”. Apoia-se teoricamente em Giorgio Agamben que, ao estudar o funcionamento dos campos de concentração nazistas, chamou a atenção para o fato de que, por serem espaços de exceção, fora de qualquer ordem jurídica, tudo neles era possível, e sem esta consciência não se pode verdadeiramente apreender o que neles se passava.
Local do inusitado, do surreal e do terror indescritível, o centro de detenção possuía também um ambiente que proporcionava oportunidades quase inimagináveis num cotidiano de tamanha rotina de terror: o sótão, onde era possível assistir televisão e até mesmo “enxergar por uma pequena janela os pés dos transeuntes”. Uma das depoentes declarou conseguir até identificar a rua onde estavam através desta pequena visão do mundo exterior. Nesta “normalização da vida cotidiana” alguns cozinhavam, outros eram responsáveis pela limpeza, e na aparente tranquilidade em meio à tormenta da reclusão alguns serviam de informantes para os carcereiros, denunciando as conversações dos companheiros de cárcere e botando mais um ingrediente de complexidade nas relações que ali se travavam.
Um capítulo trata da passagem de mulheres e crianças pelos centros de detenção. Ainda que os homens tenham sido maioria entre os presos, houve particularidades no que se refere à presença feminina, como a prática sistemática de violações sexuais. No entanto, Gabriela descreve alguns testemunhos que dizem haver sido esta uma prática essencialmente de subalternos e que não contava com a aprovação das autoridades militares. Mas os que a realizavam não respeitavam, segundo estes relatos, nem mesmo limites de idade. Muitas destas mulheres não tinham participação direta nos grupos de resistência e foram detidas por serem familiares ou mesmo vizinhas dos verdadeiros alvos da repressão. Em consequência das torturas muitas prisioneiras grávidas sofreram aborto e outras se suicidaram. Embora reconhecendo que algumas crianças recém-nascidas foram separadas de seus pais e tiveram paradeiros desconhecido, a autora conta que a maior parte das que nasceram nas prisões de Rosário foram devolvidas às mães, logo após o parto ou meses depois, ainda que as gestantes não contassem com assistência médica adequada para o período pós-gravidez.
A preocupação do regime em destruir as redes sociais dos militantes se revela pela prisão de vizinhos, colegas de trabalho e outras pessoas arbitrariamente conduzidas às prisões por pretensamente esconderem em suas casas os verdadeiros procurados. E, apesar do verdadeiro genocídio praticado pelas forças do Estado, havia uma preocupação em manter as aparências, mostrar que o que estava acontecendo era uma guerra entre dois lados, e não um extermínio sistemático. Como exemplo, Gabriela chama a atenção para o fato de que em todos os casos onde constam nos documentos oficiais as fotos dos mortos, aparecem armas junto a eles, como a justificar para a opinião pública que foram abatidos em combate e que representavam realmente perigo para a sociedade.
Citando um outro estudioso dos crimes nazistas, Cristopher Browning, a autora acredita ser uma errônea simplificação classificar os perpetradores de tamanha violência de monstros. Longe de justificar seus atos, ela define seus comportamentos e argumentos – como a clássica desculpa, tão utilizada pelos alemães, de terem apenas cumprido ordens superiores – como essencialmente humanos, com todos os horrores que o homem é capaz de cometer. Evitando assim a apaixonada condenação e generalização, destaca que entre estes agentes do aparelho repressor era possível encontrar a alma mais brutal e sádica, mas também o conciliador, aquele capaz de secar uma lágrima ou alcançar um copo de água, ainda que não tivesse permissão para fazê-lo. Manipulação ideológica, campanhas com vistas a legitimar atrocidades, testemunhos dolorosos e feridas abertas desfilam pelo livro, revelando as ações de um complexo sistema de morte e opressão que se mostrou muito bem sucedido em esmagar toda a oposição e trazer para junto de si setores da sociedade que, ainda que apenas consentindo em silêncio, contribuíram também para a sua manutenção durante oitolongos anos.
Resenhista
Marcelo Xavier Parker – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Bolsista Capes-Prosup. E-mail: marceloparker@yahoo.com.br
Referências desta Resenha
AGUILA, Gabriela. Dictadura, represión y sociedade en Rosario, 1976/1983: Un estudio sobre la represión y los comportamientos y actitudes sociales en ditadura. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008. Resenha de: PARKER, Marcelo Xavier. Ditadura e repressão em Rosário. Revista Latino-Americana de História. São Leopoldo, v.1, n.1, p. 123-126, 2012. Acessar publicação original [DR]