Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade | Joaquim Justino dos Santos, Raffael Mattoso e Teresa Guilhon

Pensar a construção da cidade a partir de seus espaços de exclusão social e marginalização das populações pobres, eis aqui o objetivo central e transversal da obra organizada em conjunto pelos pesquisadores e professores Joaquim Justino dos Santos, Rafael Mattoso e Teresa Guilhon e que conta com colaborações de diversos profissionais e estudiosos dos subúrbios cariocas, oriundos, esses últimos, dos mais variados campos de estudo e atuação profissional. Antes de começarmos a destrinchar a obra, gostaríamos de apresentar um pouco da trajetória dos idealizadores desse projeto. Joaquim Justino dos Santos é formado em História pela UFF, mestre e doutor em Urbanismo pelo PROURB/FAU-UFRJ, tendo atuado durante vários anos como gestor público; Raffael Mattoso é formado em História pela UFRJ, mestre em História Comparada pelo PPGHC-UFRJ, doutorando em História da Cidade pelo PROURB-UFRJ e professor das redes pública e privada do Rio de Janeiro; e, Teresa Gilhon é formada em Comunicação Visual pela UFRJ, mestre em Bens Culturais e Projetos sociais pela FGV e é atualmente pesquisadora associada ao Laboratório de Estudos Urbanos do Centro de Pesquisa e Documentação de História Comparada do Brasil (CPDOC). Além de artigos de alguns dos organizadores, a obra ainda traz colaborações de professores, arquitetos, geógrafos, historiadores e cientistas políticos. Com relação aos autores, destacaremos aqui apenas suas áreas de formação, a fim de clarearmos um pouco o local de fala dos respectivos colaboradores. Ressaltamos de antemão que, o caráter interdisciplinar, presente nesse empreendimento, não se dá apenas pela filiação intelectual e profissional de seus produtores, como também pela série de enfoques, conceitos e métodos que são empregadas nas construções das narrativas sobre os subúrbios cariocas.

O primeiro capítulo, intitulado Lugares de Inhaúma e Irajá na história do lugar e na formação do subúrbio carioca: Século XVI e XX, escrito pelo historiador Joaquim Justino dos Santos, investiga a ocupação dos territórios, sua organização jurídica, sua conexão com outras partes do mundo e suas dinâmicas internas ao longo do período colonial, imperial e republicano. Construções dos espaços atravessadas pela instituição escravista, pelo padroado católico e pela hegemonia política e econômica das metrópoles ibéricas, o autor mostra como a partir de duas regiões eminentemente rurais, ao longo do período colonial, surgiram os subúrbios cariocas nos anos finais do poder de D. Pedro II e no alvorecer do regime republicano. O autor argumenta que, a passagem do sistema escravista para o capitalista, impulsionado pela implantação no Distrito Federal de novas técnicas de produção e prestação serviços, além das ligações facilitadas pelos transportes de massas, especialmente os trens e bondes, fez surgir, entre os anos de 1870 e 1906, as primeiras regiões suburbanas do município do Rio de Janeiro. Por subúrbio compreende-se aqui bairros residenciais dos trabalhadores que tinha seus postos de serviços localizados nas regiões centrais e por isso dependia sobremaneira do transporte público. É nesse contexto que Inhaúma desponta como a primeira região suburbana do Rio de Janeiro, sendo seguido por Irajá. Já em 1920 essas regiões abrigariam ¼ da população total do município e ¼ da população trabalhadora da indústria carioca (SANTOS, 2019: 36).

O segundo capítulo, nomeado O patrimônio e a paisagem cultural dos subúrbios cariocas, escrito pelo arquiteto Luiz Paulo Leal de Oliveira, trata do tão antigo antagonismo socioespacial entre a zona norte e sul do Rio de Janeiro. Ao longo do tempo, a divisão entre as possessões do Sul (incluindo a atual região da zona sul e as regiões centrais) e as terras jesuítas do Norte (atuais regiões suburbanas), moldaram não apenas a paisagem urbana como a natural dessas regiões. O reconhecimento do município do Rio de Janeiro, em 2012, como primeiro sítio declarado patrimônio da humanidade, traz à tona as disputas de poder entre as localidades e evidencia a clara assimetria social existente entre as regiões cariocas. O que busca o autor do texto é não apenas evidenciar a riqueza natural e cultural existente nos espaços suburbanos, como incentivar os moradores dessas regiões para uma maior participação na vida pública, a partir da pressão popular em favor da revitalização e valorização desses espaços até então explorados e castigados pelas atividades produtivas predatórias, como a agricultura latifundiária, a mineração e a indústria pesada.

O terceiro capítulo, denominado Entre o sagrado e o profano: Matriz de Irajá e Cine Vaz Lobo, produzido pelo geógrafo Luiz Claudio Motta Lima e pela historiadora Maria Celeste Ferreira, aborda o tombamento e o reconhecimento como patrimônio cultural de duas edificações que faziam parte da vida social dos moradores das regiões suburbanas de Irajá e Vaz Lobo. A primeira foi construída ainda no contexto colonial e posta em funcionamento a partir de 1613 e o segundo foi inaugurado em 1941, já no contexto da ditadura de Getúlio Vargas. Ao longo do texto os autores mostraram como se misturam o sagrado e o profano na trajetória dessas instituições. A igreja, matriz Nossa Senhora da Apresentação de Irajá, símbolo máximo do sagrado, tinha em suas atividades as festas eclesiásticas e leigas, cheias essas últimas de expressões profanas; enquanto que o grande complexo cinematográfico, localizado no bairro de Vaz Lobo nas imediações da Igreja Cristo Rei, além de representar produções religiosas, poderia tornar-se facilmente ponto de paragem de fiéis que se dirigiam a igreja ou de lá voltavam. Dessa forma, vemos aí desenhada, mesmo que brevemente, as interações entre o sagrado e o profano na vida cultural dos moradores dessas regiões suburbanas e suas rugosidades no contexto da modernidade.

O quarto capítulo, intitulado Olhares para os subúrbios da Leopoldina a partir de Bonsucesso, Ramos e Olaria, escrito pela arquiteta Maria Paula Albernaz e que contou com a colaboração de diversos outros estudiosos, aborda as diversas especificidades ambientes, históricas e culturais experimentadas pelos moradores das regiões suburbanas que são atravessadas pela antiga linha férrea Leopoldina, atualmente conhecido como ramal Saracuruna. A autora discute aqui a linearidade e a fragmentação dos espaços, a primeira proporcionada pela instalação da linha férrea na década de 1880 e com a implantação do complexo fabril ao longo das margens na Avenida Brasil a partir de 1940. Soma-se a isso o traçado linear das ruas, quadras, lotes e avenidas e a horizontalidade de suas construções habitacionais. Com relação a fragmentação dos espaços, encontra-se também a construção da linha férrea e da avenida Brasil, além da construção do ramal Transcarioca de BRT, o que separa em três bolsos esses espaços anteriormente interligados geograficamente. Vale ressaltar que todas essas três vias cortam também de forma irregular as referidas dimensões dos próprios bairros de Bonsucesso, Olaria e Ramos, o que acaba por gerar um dinamismo assimétrico na circulação de pessoas, prestações de serviços e ofertas de empregos qualificados.

O quinto capítulo, batizado O conjunto residencial da Penha: Imaginários e representações do Estado no subúrbio carioca, de autoria da arquiteta Nilce Aravecchia-Botas e pela arquiteta e historiadora Flávia Brito do Nascimento, discute a construção do conjunto habitacional da Penha, promovido pelo fundo previdenciário do IAPI. As autoras argumentam que a entrega das 1.000 habitações populares aos trabalhadores da indústria, construídas entre os anos de 1947 e 1949, sinalizava para novos tempos nas relações entre o “povo” e seus representantes ao passo que era também era emblemática frente ao pacto trabalhista firmado pelo regime varguista e os setores trabalhistas e industriais. Auxiliar na potencialização da produção industrial e melhorar a qualidade de vida dos proletários, eis aí definidas as imagens pretendidas pelos agentes do Estado a partir dos Institutos de Previdências e Pensões. Mostra-se aqui a utilização das construções das habitações proletárias como instrumentos políticos do Estado Novo e que sedimentava a relação entre o povo (trabalhadores urbanos industriais) e a administração pública.

O sexto capítulo, chamado A casa e a rua: Moradia, trabalho e convívio comunitário no subúrbio carioca, escrito pela arquiteta Ana Slade, investiga a segregação sócioespacial e a formação das redes de sociabilidade a partir do advento da separação entre casa (moradia) e trabalho (comércio, fábricas e indústrias). A proposta da autora é repensar modelos alternativos para a casa e a cidade, a fim de atender não apenas as necessidades de moradia, como também de trabalho e lazer, contribuindo assim para uma melhoria significativa na qualidade de vida, sobretudo, dos moradores dos subúrbios. Em foco, o estudo debruça-se sobre três “vizinhanças residenciais” localizadas em Irajá e Encantado, partindo para uma análise do tecido social urbano carioca mais amplo. Dessa forma, a casa, usada na contemporaneidade como espaço de moradia, produção e comércio, passa a não pertencer exclusivamente ao hábito da família, sendo também um espaço de interação com a rua. Assim sendo a casa está diretamente ligada a economia da rua.

O sétimo capítulo, intitulado por Histórias e vivências suburbanas: Valorização das experiências cotidianas na resistência cultural dos subúrbios cariocas, de autoria do historiador Rafael Mattoso, vê-se desenhada as cores alegres do subúrbio a partir das pipas, dos sapatos nas instalações elétricas e das fachadas das casas, estas últimas marcadas por distinções e filiações nacionalistas, familiares, religiosas etc.. O autor busca afastar-se da magra ideia dos subúrbios enquanto espaços unicamente sem história, sempre expressão cultural, perigosos e degradados, trazendo a partir si não apenas enquanto pesquisador como também morador, as vozes, os ecos, os risos, os gemidos e as risadas dos subúrbios cariocas. De forma quase que biográfica, porém, melhor seria etnográfica, apresenta-se a pluralidade e a diversidade de sociabilidades ao mesmo tempo que evidencia os conflitos, as disputas e as acomodações de vários interesses dos habitantes dessas regiões. Com relação à relevância desse empreendimento colaborativo em compor a obra aqui resenhada, o autor, também ele um dos organizadores afirma que “[…] não nos restam dúvidas de que devemos saudar a importância do cotidiano, da beleza contida na luta e na vida das pessoas comuns” (MATTOSO, 2019: 188). Consoante ao autor, não apenas saudamos o valor que esse trabalho contribui para compreendermos mais sobre a história dos subúrbios cariocas, como reconhecemos também no próprio empreendimento o empenho em sanar o déficit existente na própria historiografia sobre a cidade do Rio de Janeiro, que em muito privilegiou seus enfoques de estudos nas regiões da zona sul e nas regiões centrais e portuárias.

No oitavo capítulo, denominado Imprensa e subúrbios: Entre suplementos, noticiários e instrumento de militância, escrito pelo historiador Leandro Clímaco Mendonça, analisa a circulação dos periódicos no e sobre o subúrbio e a produção no subúrbio da imprensa. De entrada, duas questões norteadoras se apresentam, a primeira questiona se é possível que na primeira década do século XX tenha existido uma rede social constituída por diversos segmentos da sociedade suburbana articulada por meio da imprensa periódica; e a segunda questão diz respeito aos objetivos e interesses que estavam em jogos e quais eram as lutas nas quais os intelectuais suburbanos encontravam-se envolvidos. Analisando a trajetória de alguns dos jornais produzidos nos subúrbios, tais como O subúrbio: Jornal Independente, Noticioso, Literário e Consagrado aos interesses locais, Gazeta Suburbana: Semanário crítico, noticioso, dedicado aos interesses da zona suburbana, Echo suburbano e tantos outros, além da participação dos moradores dos subúrbios no jornalismo como colaboradores, redatores e financistas, o autor demonstra como vai sendo construída uma identidade suburbana entre seus moradores que tinha acesso à leitura de forma ativa e passiva. Nesse mesmo processo, mostrou como a imprensa suburbana foi utilizada no âmbito político para atender interesses, sobretudo, de seus financiadores.

No nono capítulo, chamado Subúrbio e periferia: Onde a cidade é hibrida, produzido pelo arquiteto Antônio José Pedral Sampaio Lins, discute-se os conceitos de cidade hibrida e urbanismo híbrido, a fim de compreender as diversas expressões culturais resultante dos encontros processados nas regiões suburbanas e periféricas do Rio de Janeiro. Entretanto, como alertado pelo autor, para realizarmos uma análise satisfatória da cidade tendo como base o conceito de hibridização, torna-se necessário atentarmos para a ocorrência de três estágios essenciais: as memórias, as referências e os conflitos existentes no tecido urbano; a morfologia dos espaços; e, a globalização. Esses fatores, mesmo que sozinhos já são responsáveis por gerar novas formas de sociabilidade, e quando combinados os efeitos são ainda mais significativos.

Por fim, o último capítulo, mas não menos importante estudo, definido como Subúrbios Cariocas, uma deriva contemporânea sobre o nosso chão, de autoria do arquiteto Rodrigo Cunha Bertamé Ribeiro e do geógrafo Flavio Lima, busca a partir dos ensinamentos da teoria da complexidade uma revitalização, ou melhor dizendo, uma potencialização da ideia de subúrbios cariocas, a fim de afastarem-se dos estereótipos e das ideias pré-concebidas de identidade e equivalência. Os autores tentam responder a partir da teoria da complexidade, questões tão complexas, como: “Qual seria o novo lugar dos subúrbios cariocas?”. Nesse estudo, vemos também discutida a participação dos moradores dos subúrbios na produção cultural, não apenas caracterizados com a esfera do trabalho; expressiva também é a ocupação dos espaços urbanos pelos moradores dos subúrbios, como as praias destinadas ao turismo e aos moradores locais, os cinemas, os shopping centers, entre outros espaços.

Vista em seu conjunto, essa obra representa certamente um marco no campo da História das Cidades, em especial, da História dos Subúrbios. Em geral a obra é bem escrita e de extrema relevância para a área de estudo na qual se insere. Além dos ricos dez capítulos, encontra-se repleta de mapas, imagens e gráficos que auxiliam seus leitores na compreensão visual do está sendo discutido. Afora sua estrutura, a obra é um excelente empreendimento interdisciplinar, composto por temas variados, estando todos relacionados com a formação das identidades culturais e com a conformação dos espaços urbanos, especialmente os subúrbios cariocas.

Ainda com relação as impressões deixadas pela leitura desse trabalho, as construções das narrativas, associadas as impressões biográficas registrada ao longo delas, confere à obra não apenas um caráter científico por parte de quem a produziu, como também afetivo, ao aproximar autor e leitor à cotidianidade dos subúrbios.

Referência

SANTOS, Joaquim Justino dos; MATTOSO, Rafael; GUILHON, Teresa. Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.


Resenhista

Raick de Jesus Souza – Mestre em História das Ciências e da Saúde Casa de Oswaldo Cruz/FIOCRUZ. E-mail: raickdjs@hotmail.com


Referências desta resenha

SANTOS, J. J. dos; MATTOSO, R.; GUILHON, T. Diálogos suburbanos: Identidades e lugares na construção da cidade. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. Resenha de: SOUZA, Raick de Jesus. Subúrbios cariocas: Ontem e hoje. Temporalidades. Belo Horizonte, v.12, n.1, p.924-929, jan./abr. 2020. Acessar publicação original [DR]

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