No lançamento deste dossiê formulou-se um convite à reflexão sobre problemas, debates e formas de abordagem que de um modo ou de outro vêm caracterizando as historiografias portuguesa e brasileira desde meados do século XIX.
Os sócios fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro viveram o duplo dilema de construir uma historiografia de cariz “nacional”, tendo por base um legado que se queria sobretudo “português” e um conjunto de fontes relativamente escassas, desorganizadas ou muito distantes. Vários esforços se empreenderam para ultrapassar esses obstáculos. E as sucessivas missões brasileiras a Portugal, inauguradas por Francisco Adolpho de Varnhagen, foram certamente de uma enorme importância. Ainda assim, oitenta anos mais tarde Caspistrano de Abreu confessava por carta ao seu amigo João Lúcio de Azevedo que, tanto pela dificuldade de acesso aos documentos, como pela falta de uma genuína tradição arquivística, a história do Brasil parecia ser “uma casa edificada na areia”.
O arranque do Projeto Resgate “Barão do Rio Branco”, na segunda metade da década de 1980, e do seu equivalente português, “Reencontro”, um pouco depois, coincidiram com uma série de novos espaços de interação académica luso-brasileira. Já neste século, passaram a ser rotineiros jornadas, colóquios, seminários, congressos e exposições propostos e / ou frequentados por professores e alunos de ambos os países. Especialmente a partir do Brasil, multiplicaram-se as pós-graduações e os pós-doutoramentos nas universidades de Lisboa, do Porto, de Coimbra e até mesmo de Braga e de Évora. Sucede, no entanto, que a suposta partilha de um mesmo passado e de tudo o que envolve uma língua em comum não implica uma historiografia compartilhada. Há que reconhecer a existência de tradições “escolares”, conceitos operativos, parâmetros semânticos e, sobretudo, pontos de vista bastante diversos. Por muito que o mundo de hoje relativize as distâncias e torne mais fácil a troca de dados, “os lugares” de onde se fala continuam a ser relevantes. Não o entender historicamente, nem o aceitar com tranquilidade origina falsos problemas e mal-entendidos.
Propôs-se aqui reunir um leque de trabalhos que estimulassem abordagens comparativas e ajudassem contextualizar as mais importantes polémicas que acompanharam o desenvolvimento das historiografias portuguesa e brasileira dos dois últimos séculos. Quais os seus territórios de confluência? Quais os motivos de maior distanciamento? Que obras tiveram um impacto mais duradouro na produção historiográfica de língua portuguesa? Como avaliar o peso relativo da diplomacia e de outras entidades governativas ou oficiais na construção de um horizonte comum? De que maneira as circunstâncias políticas (prisões, degredos, exílios) e acadêmicas (peculiaridades administrativas, interesses corporativos, missões de “repatriamento” de documentação) marcaram o desenvolvimento da historiografia luso-brasileira?
Ao procurar definir a obra de Joaquim Barradas de Carvalho, num testemunho de homenagem, Fernand Braudel cogitou, com alguma ironia, que só se consegue de facto entender Portugal a partir do Brasil. Neste começo de terceiro milénio, poder-se-á sugerir formulação semelhante para explicar os novos caminhos da melhor historiografia brasileira?
Os sete artigos e a entrevista que integram o presente dossiê não oferecem respostas para todos, nem, decerto, sequer, para a maior parte dos problemas que levantámos, mas permitem tornar a abordá-los sob enfoques específicos e, em certa medida, ampliam os horizontes de reflexão. Nos dias que correm, muito se tem escrito sobre a necessidade de re-situar o legado da historiografia nacionalista, para alcançarmos visões mais abrangentes e “aterritoriais” dos processos históricos que marcaram a formação das sociedades portuguesa e brasileira. Gostaríamos de acreditar que damos aqui alguns passos nessa direção.
Iniciamos o nosso dossiê com uma versão revista e ampliada da última entrevista de Vitorino Magalhães Godinho, concedida a Alberto da Costa e Silva e Tiago C. P. dos Reis Miranda em novembro de 2010. Nela o leitor terá acesso a um itinerário de formação, docência e militância política de calibre inigualável. Paralelamente, ficará a conhecer as vicissitudes de um tempo em que algumas das melhores e mais profícuas oportunidades de diálogo entre cidades como Lisboa e São Paulo passavam por França e, em especial, por Paris.
As injunções e conexões entre a historiografia do império português e a política acadêmica no Estado Novo são aqui objeto da análise meticulosa de Diogo Ramada Curto, que nos convida a refletir sobre os vieses ideológicos subjacentes à edição de diversas coleções de fontes manuscritas relativas à experiência ultramarina. A historiografia portuguesa e o seu esforço de afirmação no exterior são o assunto do denso trabalho de Mafalda Soares da Cunha e Pedro Cardim. Vários problemas por eles apontados constituem também desafios que se levantam à historiografia do Brasil, onde, apesar de todos os incentivos oficiais, bastante mais antigos, numerosos e consistentes que os portugueses, ainda se nota uma grande dificuldade de efetiva inserção na bibliografia internacional.
Três artigos presentes neste dossiê propõem abordagens afeitas à uma “história da cultura intelectual” luso-brasileira. Entre eles, o texto de José Adilçon Campigoto e Élio Cantalício Serpa, sobre a repercussão do pensamento de Oliveira Martins na obra de Afonso Arinos de Mello e Franco. Igualmente, Alberto Luiz Schneider identificou pontos de contacto entre o luso-tropicalismo de Gilberto Freyre e as obras de Miguel de Unamuno, Ángel Ganivet e José Ortega y Gasset, na esteira de outros ensaios recentes, como, por exemplo, os de Maria Helena Rolim Capelato, Ana Lúcia Lana Nemi e Kátia Gerab Baggio. A heroicidade da narrativa de Arthur César Ferreira Reis, referência incontornável da historiografia amazonense, foi objeto de atento escrutínio no trabalho de Alexandre Pacheco.
Um dos mais importantes propósitos deste dossiê consistiu em estimular o exercício de uma história não apenas comparada, mas plenamente coetânea dos processos históricos em Portugal e no Brasil, tendo em vista a desconstrução de perspectivas que se edificaram sobretudo a partir de meados do século XIX. Neste sentido, as contribuições de Andréa Lisly Gonçalves e Francisco Carlos Palomanes Martinho / Américo Oscar Guichard Freire revelam-se verdadeiramente auspiciosas e apontam a viabilidade de uma nova atitude na formulação de problemas e na escrita de uma história luso-brasileira, desvestida de trajes e cores apenas nacionais. Trata-se já de escrever uma história compartilhada.
Diversas outras propostas não chegaram ao fim do caminho, pelas mais variadas razões. Esperamos, no entanto, sinceramente, que os seus autores persistam no estudo dos problemas que enunciámos. Porque, se queremos ser melhor conhecidos e mais reconhecidos à escala mundial, temos de saber explorar o que temos em comum. E, nessa tarefa, ainda há lugar para muitos voluntários.
O fato de terem caído em desuso os estudos académicos sobre “o caráter” das populações nacionais não nos deve fazer ignorar a duradoura vigência de estratégias de afirmação identitária bastante diversas, mas, a seu modo, igualmente importantes e consequentes. Como nos lembra Eduardo Lourenço, em Portugal há uma clara tendência para a valorização excessiva de densos traços “nacionais” que se teriam forjado mais ou menos no mesmo sentido, ao longo de séculos, sob a pulsão da aventura transoceânica. No Brasil moderno, pós-‘22, o ser “nacional” surge associado a juventude, complexidade, robustez e miscigenação. Roberto DaMatta gosta de ilustrar a ideia com a célebre frase de Tom Jobim: “O Brasil não é para principiantes”.
De ambos os lados existem, portanto, robustos fatores de resistência à compreensão do “estrangeiro”. Mesmo se esse estrangeiro se sente “de casa” e, praticamente, da própria família. Ou, sobretudo, e principalmente, quando assim é. Como há tempos bem escreveu o embaixador Alberto da Costa e Silva, ao sublinhar os afetos que ligam brasileiros e portugueses, “no espaço e no tempo, tendemos a buscar-nos como nos imaginamos e não como realmente somos. Num e noutro caso, ficamos […] com o gosto do insuficiente e do incompleto”.
Se esse for também o sentimento de quem se aventure até ao final deste dossiê, talvez não seja apenas por falta de engenho dos seus organizadores.
Iris Kantor – Professora adjunta Universidade de São Paulo. E-mail: ikantor@usp.br
Tiago C. P. dos Reis Miranda – Investigador integrado Centro de História de Além-Mar da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa e da Universidade dos Açores. E-mail: trmiranda@fcsh.unl.pt
KANTOR, Iris; MIRANDA, Tiago C. P. dos Reis. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.5, n.10, dez., 2012. Acessar publicação original [DR]
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