A segunda metade do século XX foi marcada por um novo alargamento do campo da História. Ainda que os Annales, já em sua primeira geração, tenham apontado para uma verdadeira “revolução” historiográfica, apresentando novos objetos, novas possibilidades de análise, novos problemas, novas metodologias e uma forte interligação entre as diversas ciências humanas, não resta dúvida de que esse processo se ampliou e, sobretudo, foi instrumentalizado na segunda metade do século XX. Esse alargamento tornou necessário, mais do que nunca, que se estabelecesse um diálogo com o referencial teórico-metodológico de outras áreas das ciências humanas. Pesquisas interdisciplinares buscam a integração de várias disciplinas e ramos do conhecimento para analisar um objeto, a fim de garantir maior profundidade analítica. Assim, o diálogo da história com a política, sociologia, educação, psicologia, literatura, antropologia e tantos outros campos do conhecimento, pode contribuir para lançar novas “luzes” sobre pontos obscuros de um determinado objeto. Dessa forma, a Revista Projeto História promove, neste Dossiê, um diálogo da História com várias áreas das ciências humanas.
A própria capa deste volume, uma arte de Claudinei Cássio de Rezende sobre pintura de Jean-August-Dominique Ingres, François Ier reçoit les derniers soupirs de Leonardo da Vinci, 1 1818, já nos remete à ideia da interdisciplinaridade. Leonardo da Vinci (1452-1519) talvez tenha sido o mais emblemático Homem do Renascimento. Ele não é apenas uma figura histórica memorável, a menção ao florentino na capa deste volume também diz respeito ao seu conteúdo: polímata, ninguém pôde ser mais “interdisciplinar” que Leonardo da Vinci, além disso, propomos uma justa homenagem por ocasião do quinto centenário de sua morte.
Ao longo deste volume, verificamos vários artigos que propõem uma discussão interdisciplinar, a começar pelo texto de Miguel Vedda, Alegorías de la Improvisación. A Propósito de los Cuadros de Ciudades en Calles en Berlín Y en Otros Lugares, de Siegfried Kracauer. O autor, especialista em Literatura Alemã e professor da Universidad de Buenos Aires (UBA), promove uma discussão sobre a vida urbana presente na obra de Siegfried Kracauer.
Na sequência, o segundo artigo deste dossiê apresenta uma discussão sobre uma obra de Jorge Amado – Os pastores da noite, um romance escrito às vésperas do Golpe Civil-Militar de 1964 – no qual verificamos o perfeito diálogo da literatura com a História e, também, uma “[…] discussão sobre a cidade e modos culturais do viver urbano, contribuindo especificamente com a obra aqui analisada para pensarmos a construção de ditaduras na sociedade brasileira”.
O artigo Literatura de cordel: conceitos, intelectuais, arquivos, analisa a produção intelectual sobre a literatura de cordel, promovendo uma discussão com a “literatura popular” e seu papel na construção da identidade nacional, mostra também o processo de criação de arquivos e instituições de pesquisa e como ocorre uma “monumentalização dos folhetos de cordel”.
Em seguida, ainda no campo da literatura, temos o artigo Culpas e traumas no pós-Segunda Guerra em O leitor, no qual os autores analisam essa obra – do jurista e literato alemão Bernhard Schlink – acerca dos traumas, culpas e memórias da Segunda Guerra Mundial.
No artigo seguinte – Ao Ritmo de Tambores e Maracás: Tambor de Mina e Pajelança no Maranhão de Meados do Século XX – o autor nos aponta sua preocupação em mostrar que no “[…] Maranhão de meados do século XX, […] observa-se que algumas modalidades de expressão das religiões de matriz africana começam, ainda que timidamente, a serem vistas, positivamente, como elementos da cultura nacional e regional”. No entanto, indica que apesar dessas mudanças, continua imperando preconceito e discriminação aos adeptos de religiões e religiosidades populares e de matriz africana.
O dossiê segue apresentando um artigo sobre vestuário e fotografia – Vestuário e Fotografia como fontes de pesquisa: uma abordagem interdisciplinar – que discute sobre algumas fontes empregadas nas pesquisas sobre moda, indumentária e vestimenta, indicando que o próprio traje se constitui como fonte importante, carregado de informações e, nesse sentido, quando já não mais existe o traje, a fotografia poderia assumir esse papel de documento histórico.
Hannah Arendt e o Diabólico Maquiavel, o sétimo artigo do dossiê, traz uma discussão sobre a concepção da filósofa alemã Hannah Arendt sobre Maquiavel a partir do conjunto dos textos da autora ao longo de sua maturidade intelectual, expressando prioritariamente as suas concepções em dois deles: um redigido originalmente em 1963, intitulado Sobre a revolução; e outro, Entre o passado e o futuro, por sua vez revisto e ampliado numa edição de 1968.
O artigo seguinte, intitulado A Composição do Ms. 10121 da Biblioteca Nacional de España (C. 1516-1543): O Livro dos Feitos entre a Epigrafia e a Paleografia, analisa um manuscrito sobre a vida do rei Jaime I de Aragão (1208-1276), um dos reis mais conhecidos do contexto territorial da coroa aragonesa. A partir de informações epigráficas e paleográficas do manuscrito e de propostas metodológicas voltadas para a ciência epigráfica e paleográfica, o autor do artigo, “[…] busca determinar o contexto de composição do manuscrito, principalmente considerando as características simbólicas de tais informações presentes no mesmo”. Concluindo que “[…] os aspectos simbólicos presentes neste documento devem ser considerados como principais para compreender o motivo de sua composição, ou seja, a partir de uma perspectiva interdisciplinar”.
Temporalidades de norte a sul: história de municípios narrada nos seus sites oficiais, o artigo que fecha a primeira parte do dossiê, analisa as narrativas históricas, existentes nos sites das prefeituras de duas cidades – Altamira no Pará e Foz do Iguaçu no Paraná – produzidas e divulgadas entre os anos 2012-2017. As narrativas foram problematizadas e os autores indicam que “[…] foi possível perceber a permanência de interpretações históricas hegemônicas no Regime de Historicidade futurista em nosso tempo presente”.
Entre os artigos livres, também podemos verificar uma discussão se aproximando da interdisciplinaridade, em especial, no artigo intitulado A “caixa-preta” da eucaliptocultura: controvérsias científicas, disputas políticas e projetos de sociedade, que discute os embates e disputas sobre o plantio de eucaliptos no Brasil.
Outros dois artigos completam essa seção, Da lógica de O Capital à “lógica” do capital: notas críticas a Helmut Reichelt, no qual o autor discute o pensamento de Helmut Reichelt e o artigo Charles Boxer e a Igreja Militante: Raça, Missionação e Império na Expansão Ibérica dos Séculos XVI e XVII, que apresenta um balanço da obra do historiador inglês Charles Boxer. Nesse artigo, o autor busca explorar o modo como Boxer compreendeu as políticas ibéricas de conversão dos nativos e seus entrelaçamentos com as próprias políticas de colonização.
O dossiê traz também duas resenhas – Entre a memória e a história: a influência estadunidense no Brasil em 1964 – sobre a obra 1964: O golpe, de Flávio Tavares, lançada em 2014 e As Marcas do Tempo no Espaço: Diálogos entre História e Geografia, que apresenta o livro de José D’Assunção de Barros – História, Espaço, Geografia: diálogos interdisciplinares – lançado em 2017.
Dentro da proposta da Revista Projeto História, de valorizar as pesquisas de seus pós-graduandos, temos duas Notícias de Pesquisas, textos de alunos da pós-graduação do programa de História da PUCSP, que apresentam as pesquisas em andamento. A primeira Notícia de Pesquisa é do mestrando Daniel Francisco da Silva, intitulada A atuação da imprensa na reorganização política em Pernambuco em 1954. Essa pesquisa, em andamento, tem como eixo temático a análise da imprensa pernambucana, atentando para sua atuação na reorganização política do estado após o suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954. A outra Notícia de Pesquisa, Formação política, organização e movimentos sociais: Encontros de Entidades Comunitárias (ENECOMs), foi produzida pela doutoranda Vera Lúcia Silva e trata das experiências de agricultores, pescadores, agentes de saúde, dentre outros trabalhadores, ligados a diferentes associações e instituições do campo e da cidade dos municípios cearenses de Camocim, de Barroquinha e Granja.
Finalizando o volume, gostaríamos de destacar a ótima entrevista, realizada por Glauber Biazo, com o professor Francisco de Oliveira, um dos grandes intelectuais brasileiros, que faleceu em 10 / 07 / 2019. Francisco de Oliveira trabalhou na SUDENE (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) ao lado de Celso Furtado, e com o Golpe Civil Militar de 1964 foi afastado e sofreu prisões e perseguições. Em 1970 – e até 1995 – integrou o CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Também participou da fundação do PT (Partido dos Trabalhadores) e, posteriormente, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Durante a década de 1980, foi professor do Departamento de Economia da PUCSP, saindo em 1988 para integrar-se ao corpo docente do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP. O professor Francisco de Oliveira nos deixa um legado de obras, lutas e militância e recebe, neste volume da Revista Projeto História, uma justa homenagem.
Nota
1 Segundo Claudinei Cássio de Rezende, autor da capa desse volume, “Em 1818, Pierre-Louis Jean Casimir (1771-1839), embaixador francês em Roma, encomenda a Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867) a pintura A morte de Leonardo. Ingres, o mais destacado pintor da école davidienne, faz o painel em óleo, de dimensão modesta (40 x 50,5 cm), conforme ordenação do comitente. Neste painel vemos Francisco I (1494-1547) de França recebendo em seus braços Leonardo da Vinci (1452-1519) em seu último suspiro”. Sobre a “forte interdisciplinaridade” de Leonardo da Vinci, Rezende, nos alerta que: “[…] Leonardo aprende a técnica do desenho e da pintura, atividades que poderiam já lhe atribuir um estatuto de genialidade ao seu tempo histórico, especialmente se considerarmos o seu Tratado da pintura como a primeira teorização da estética e da história da arte, antecipando Giorgio Vasari (1511- 1574). Leonardo considerava que a cópia das pinturas, resultando sempre em cópia da cópia de menor qualidade, não era o bastante para avançar a ciência naturalista da pintura: os modelos precisavam advir da própria realidade, do próprio estudo da natureza. Assim, Leonardo se torna um estudioso da botânica, da geologia, da anatomia animal, da anatomia humana (incluindo um original estudo sobre os embriões) e da física (da luz e sombra). Por consequência, estuda de modo geral toda a ciência, desenvolvendo uma teoria rudimentar das placas tectônicas, por exemplo. Projetos de máquinas voadoras, tanques de guerra, e até um protótipo de helicóptero são elaborados por Leonardo. Estudou a óptica e hidrodinâmica. Desenvolveu maquinaria de metalurgia que, não obstante, entrou para o mundo da indústria sem os devidos créditos ao mestre florentino. Na última década de vida, após a morte de seu mecenas Ludovico, retorna à Florença recémconquistada por Lorenzo II (1492-1519), até se instalar na corte francesa de seu último patrono, Francisco I. Foi este que, àquela altura, encomendou a Leonardo um leão mecânico que andava para frente, abria o peito e relevava um ramalhete de lírio. Leonardo, criador da robótica?”.
Luiz Antonio Dias – Professor do PEPG de História da PUC-SP. Editor Chefe da Revista Projeto História
Vagner Carvalheiro Porto – Professor da Universidade de São Paulo, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Editor da Revista do MAE-USP
DIAS, Luiz Antonio; PORTO, Vagner Carvalheiro. Apresentação. Projeto História, São Paulo, v.65, 2019. Acessar publicação original [DR]
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