Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide | Fernanda Arêas Peixoto
Je leur donnai le feu,la flamme et tous les artsdont une flamme est l’aliment.André Gide (1925)
Os estudos do pensamento social no Brasil têm um lugar já consolidado na formação das ciências sociais no país. Com a institucionalização dos centros de pesquisa e pós-graduação, a partir da década de 1960, cristalizaram-se grupos polarizados nos principais centros universitários. O livro Diálogos brasileiros, da antropóloga e professora da Unesp/Araraquara Fernanda Arêas Peixoto, trata de uma trajetória intrinsecamente relacionada à formação da vertente paulista, notadamente no Departamento de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), com a análise da fase brasileira do sociólogo e ensaísta francês Roger Bastide (1898-1974).
Mesmo para quem não se interessa especificamente sobre os temas particulares focalizados por este autor, a leitura de sua obra é relevante sobretudo no que se refere à reflexão sobre as relações entre teoria, metodologia e prática social, consubstanciadas em sua obra Antropologia aplicada, publicada na França e no Brasil em 1971, 17 anos depois que ele passou a ocupar o cargo de professor e pesquisador em prestigiadas universidades francesas, como a École Pratique des Hautes Études, a Sorbonne e o Institut de Hautes Études de L’Amérique Latine (Queiroz, 1978, p. 223). As constantes referências nessa obra às suas interlocuções brasileiras são uma demonstração da relevância de sua estada no Brasil para redefinir seu referencial teórico e constituir um lugar de indagação sobre a verdade e sobre a importância da experimentação para a análise em ciências sociais. Na sua fase brasileira, em contato direto com os professores, pesquisadores, produtores de cultura e outros interlocutores, ele colocou em prática o que chamou seu papel de “questionador” à procura dos caminhos para “entender a resposta dos fatos” (Bastide, 1971, p. 193), deixando como legado não uma receita metodológica única, mas investidas dentro da prática sociológica e antropológica que ainda hoje servem como parâmetro para a pesquisa inter e intradisciplinar.
Fernanda Arêas Peixoto focaliza três séries dialógicas da trajetória de Roger Bastide: as interlocuções com Mário de Andrade e o modernismo paulista (cap. I); com Gilberto Freyre e a face africana do Brasil (cap. II); com Florestan Fernandes e a formação da sociologia nacional, sobretudo no que se refere aos paradoxos da modernização (cap. III). Entre a variedade de reflexões e temas abordados, seleciono pontos relacionados com o pensamento social no Brasil a partir da reflexão sobre o exercício da identidade de estrangeiro por Bastide, procurando costurar indagações sobre as máscaras brasileiras por ele antropologicamente examinadas e também, de certo modo, por ele incorporadas.
Segundo Fernanda, entre as leituras de Bastide da França nas décadas de 1920 e 1930, constam André Gide, Marcel Proust e Paul Mauriac. Talvez por sua formação literária e filosófica, formula restrições ao sociologismo de Émile Durkheim, valorizando a experiência individual, com base no humanismo de Gaston Richard e a afetividade, nos termos de Lévy-Bruhl, afinando-se também com Maurice Halbwachs e Marcel Mauss. Escreve, entre outros assuntos, sobre os materiais coletivos encontrados nos sonhos e as relações entre arte e sociedade.
Fernanda mostra como nos 16 anos em que morou no Brasil (1938-64), Bastide aproxima-se do pensamento brasileiro sem deixar de ser francês, redefinindo sua identidade de estrangeiro vivenciando criticamente o “encontro de culturas”. Sua perspectiva é conformada por sua filiação sociológica e antropológica francesa, redimensionada pela experiência brasileira; a influência sobre o Brasil da sociologia e da antropologia cultural norte-americana; a interação com as linhagens intelectuais nacionais. A par de suas incursões em outros terrenos, como na convivência com a intelectualidade extra-universitária, na leitura sistemática de nossa literatura e ensaística bem como na formulação de novos paradigmas, para a qual concorre o exercício sistemático de seu “método crítico” erigido com base em princípios como o descentramento do olhar e o dos “refletores convergentes” de modo a captar cada objeto em movimento, a partir de vários ângulos (p. 20).
No cap. I, Fernanda Arêas considera a interlocução de Bastide com Mário de Andrade como uma iniciação por meio da qual não só “define seu lugar como intérprete da sociedade e da cultura brasileiras”, quanto problematiza o seu próprio olhar de estrangeiro na busca da “alma brasileira”. O diálogo inaugural funciona assim como um rito identitário (p. 46). Implica também a formulação de reflexões que representam um mergulho no barroco, no folclore, na literatura e nas artes plásticas. Estas reflexões registraram-se em seus artigos publicados sistematicamente em jornais entre 1939 e 1945, e caracterizam sua visada etnográfica e sociológica. O barroco aparece como marcado pelo aspecto onírico e imaginário, como uma forma de mostrar um país mestiço, pautado pelo passado colonial e pelas relações escravistas, que serve como um exemplo para a análise do sincretismo. Aprofunda, dentro de uma abordagem sociológica, o diagnóstico de Mário de Andrade sobre o lugar do mulato na sociedade colonial, no que se refere a Aleijadinho (p. 67). Para buscar, seguindo Machado de Assis e Mário de Andrade, o que é autenticamente brasileiro, Bastide quer romper com o exotismo, ou seja, com a visão estilizada e anedótica do país a partir do olhar de estrangeiro, que não implica recusar que se olhe de fora para aquilo que é autêntico. Radicaliza assim a postura modernista, na busca da “África no Brasil”, do “exótico do exótico”, do “outro do outro” (p. 77). Esta radicalização o conduz a propor uma “modificação total das categorias lógicas” aprendidas em sua formação francesa, deixando-se “penetrar por uma civilização diferente”, induzindo uma compreensão que emergisse “de dentro”, e não de sua identidade européia. Assumir a “África no Brasil” implica uma atitude de “conversão” não somente poética mas sobretudo religiosa, que não consegue, no entanto, conformar a sua consciência multifacetária, voluntariamente transformada na experiência do candomblé. Ou transformada na “máquina de fazer brasileiros” criada por Bastide com referências às suas próprias aproximações à cultura brasileira, sua própria conversão em nacional, seu “abrasileiramento” (p. 81). Dentro do contexto do debate com Mário de Andrade, destaca-se a impossibilidade de transfiguração em linguagem escrita de uma supostamente única linguagem falada no Brasil – mais propriamente uma reinvenção dentro de propostas de nacionalização, e as oscilações do modernista entre as críticas e a exaltação aos professores estrangeiros, dos quais Bastide serve como um singular exemplo.
Sobre o folclore, colocam-se em discussão os termos “sincretismo”, “encontro entre tipos literários equivalentes”, “fusão”, “convergência de formas idênticas, “reinterpretação”, “troca de projetos”, dentro de uma reflexão sobre a interpenetração de diferentes tradições culturais, que leva em consideração a luta literária, o embate cultural, tendo por centro a noção de resistência, dentro de um jogo de vida e morte no qual a cultura portuguesa tem mais chances que as civilizações ameríndias em grande parte destruídas, ou que as tradições africanas, subjugadas desde o escravismo colonial. Impõe-se aos negros colocar “uma máscara branca por cima” (p. 92). Essa máscara branca evoca a noção de resistência cultural no sentido de preservação da cultura negra que integra a imagem do rosto original subjacente à discussão sobre contato e da justaposição de culturas decomposta com a análise do folclore afro-brasileiro. Identifica o branqueamento por mimetismo cultural, que não deve ser visto simplisticamente apenas na motivação pela ascensão social mas, paradoxalmente, uma estratégia de preservação da cultura apesar da subjugação. Ao esconder o rosto negro, a máscara serve de escudo, de proteção que permite recompor o perfil original. Dentro de minha interpretação da metodologia das camadas com a qual Bastide (1959, pp. 31-44) sugere que se analise a Amazônia, região na qual ele não desenvolveu pesquisas sistemáticas, cabe ao analista, como ao geólogo, identificar as camadas superpostas e historiá-las, distinguindo as sedimentações antigas e as transformações recentes.
Bastide prosseguirá sua busca do eu africano no Brasil, já iniciada no diálogo com o modernismo literário, na sua interlocução com o ensaísmo sociológico, o qual, no que se refere às religiões afro-brasileiras, resultou em um encontro com a obra de Gilberto Freyre, examinado no cap. II. Ao Bastide antropólogo, vinculado a uma tradição romântica africanista, sucede-se o Bastide sociologizante, que procura, de dentro de um realismo radical, destrinchar os vínculos sociais entre africanos e brasileiros. Para forjar os instrumentos analíticos e conceituais adequados a esta segunda interlocução, irá entrecruzar as influências francesas de Durkheim a Marcel Griaule e a perspectiva americana.
Dentro de uma crítica ao biologismo difusionista, orienta-se para a abordagem dos “mosaicos culturais” sem estar suficientemente informado do alcance das sugestões da antropologia cultural, pautando-se, ainda que não diretamente, por linhas de análise das abordagens sociológicas de Chicago. Destaca-se a inflluência de Melville Herskovits, aluno, como Gilberto Freyre, de Boas; sobretudo no que diz respeito à conceituação de “reinterpretação” e “foco cultural” (p. 102). Esta conceituação já fora apontada embrionariamente em autores brasileiros como Nina Rodrigues, mas a presença da escola americana marca a introdução de paradigmas como o estudo de comunidade, além da implantação de um modelo institucional. A discussão cara a Bastide sobre a interpenetração de civilizações segundo seu ponto de vista será mais coerentemente abarcada pela sociologia francesa que pela americana, enfrentando a questão das “alterações na estrutura morfológica da sociedade”, observando-se, dentro de um desdobramento da perspectiva racionalista ensejada por Lévy-Bruhl quando trata da “lei da participação”, a “inserção dos novos valores no plano das mentalidades” (p. 106).
A noção de “justaposição” é considerada mais adequada que a de “mistura” para a análise do sincretismo entre religiões africanas e catolicismo, uma vez que permite a abordagem da resistência. As máscaras usadas para ocultar os segredos e impedir seu devassamento possibilitam assim a manutenção de valores africanos caros às culturas negras dominadas. Este raciocícinio remete à noção de memória coletiva, tal como formulada por Halbwachs, aplicando-se ao candomblé o conceito de “lugar de memória” no sentido de um terreno de rememoração no qual se enuncia a incompletude enquanto uma ausência, ou seja, um “sentimento de falta” (p. 113). O sincretismo expresso pela imagem da colocação de máscaras brancas nos deuses negros é entendido como uma dissimulação pelos negros de crenças profundamente enraizadas, disfarçadas para serem aceitas aos olhos dos brancos, num processo caracterizável pelo conceito de “reinterpretação” (Herskovits).
O método forjado por Bastide (1959, p. 15) para conhecer o lado oculto pela dissimulação consiste em buscar perceber a presença da África no Brasil, tal como ela se impõe ao observador, como ela se revela pelas sensações, pelas imagens que o analista tenta fixar no texto escrito, tirando-a da obscuridade e trazendo-a ao centro da cena. Para modelar as palavras conforme estas formas vivas, o analista precisa “não raro, transformar-se em poeta”. Segundo Bastide, para isto é preciso deixar de ser um observador externo, produzindo um julgamento a partir da observação supostamente objetiva. Ao contrário, sua idéia é realizar uma “transfusão de almas”, através de um mergulho poético. Segundo seu método, trata-se de utilizar o “princípio dos refletores convergentes” sobre a imagem em movimento (da bailarina, por exemplo), iluminando-a de diferentes perspectivas, combinando diferentes métodos e teorias, conformando-a do ponto de vista mais abrangente possível, embora inevitavelmente sempre algum ângulo permaneça na obscuridade. Embora a identidade de Bastide se constitua como sociólogo, seu texto pauta-se pelas leituras de poesia e prosa literária, fiel a autores como Marcel Proust e André Gide, ainda que seus interlocutores privilegiados sejam os africanistas brasileiros e franceses, no esforço de definição de um campo de representações coletivas (p. 123).
Retoma-se a este respeito, em seu diálogo com Freyre, o tema da interseção entre identidades parciais, de características específicas, como a África no Brasil, e a complexidade da identidade nacional, na qual a “interpenetração de culturas sinonimiza o autenticamente nacional” (p. 130). Para sociologizar os tipos ideais de “comunidades negras” e “comunidades africanas”, destaca as distâncias sociais entre diferentes categorias engendradas no regime escravista, a família tutelar e o sistema paternalista brasileiro e agravadas após a abolição/ proletarização, que implica o fortalecimento das religiões afro-brasileiras, como um lugar de reintegração da identidade africana. A África no Brasil aparece, portanto, como reelaboração. Bastide define “interpenetração das culturas” dentro de uma conceitução sociológica de “sincretismo mágico”, para não falar como Freyre de “mistura racial” ou miscigenação. A inspiração freyriana se realça notadamente em Brasil: terra de contrastes (publicado em 1957 em francês e em 1959 em português), quando trata do paradoxo convivência/preconceito racial. No Brasil compõe-se um mosaico de raças, culturas, religiões, tipos humanos, cortado, no entanto, por marcadas divisões sociais e geográficas, constituindo-se um conjunto multifacetado, composto por polarizações. Critica, a este respeito, as teses lusotropicalistas freyrianas que sinalizam sobretudo a adaptação recíproca, negligenciando a dimensão histórica e sociológica. Ressaltam-se as descontinuidades entre o Brasil colonial, o Brasil imperial, o Brasil republicano, o Brasil do campo e o Brasil da cidade. A visão lusotropicalista se identifica com uma concepção arcaica do país, em uma abordagem sentimental do subdesenvolvimento, enquanto que Bastide procura desenvolver suas concepções do ponto de vista das vítimas. Desmistifica, assim, as vinculações do lusotropicalismo com o salazarismo, em particular, e com o dominador branco, em geral. Pergunta-se se, ao identificar-se com o ponto de vista do africano, não estaria também entronizando uma visão sentimental do arcaico, ao tentar recuperar uma África recalcada.
A terceira interlocução focalizada por esse livro tem um caráter diferente das precedentes, no qual se percebe sua vinculação a linhagens já consolidadas, dentro de uma discussão com os paradigmas sociológicos e antropológicos oriundos da França e dos Estados Unidos. Essa última interlocução, agora com Florestan Fernandes, é travada no interior de uma vertente de estudos formada com a intervenção do próprio Bastide enquanto professor universitário. Concorre para a análise o exame dos pontos de cruzamento das duas trajetórias e a identificação dos eixos temáticos que informaram as argumentações e discussões. Destaca-se a filiação rústica de Florestan, filho de uma costureira, cujo vínculo a Bastide como seu aluno quando ingressou na recém-criada USP, no início da década de 1940, permitiu-lhe ampliar seu horizonte, uma vez que de certo modo rompeu com seu pertencimento social ao integrar-se a um grupo profissional e intelectual universitário. Neste ínterim, folclore era o tema de interesse. Em 1945, Florestan torna-se segundo assistente da cadeira sociologia II, e portanto colega de Bastide, professor de sociologia I. Na década de 1950, final do período de formação de Florestan, o interesse desloca-se para relações raciais, temática da pesquisa financiada pela Organização Educacional, Científica e Cultural das Nações Unidas (Unesco). Em 1954, Bastide deixa o país e indica Florestan Fernandes para substituí-lo.
Fernanda Peixoto examina as circunstâncias do nascimento da universidade no que se refere às relações entre ciências sociais e modernismo paulista. Historia, por exemplo, os vínculos entre diferentes campos, como o jornalístico e o acadêmico. As características específicas das diferentes faces da presença francesa na USP são significativas para o encontro de Bastide e Florestan, sobretudo para o delineamento da trajetória do segundo, desde seus primeiros anos universitários, quando se debruça sobre a sociologia do folclore, em cujo estudo toca alguns temas abordados em seus trabalhos futuros como, ao olhar sobre “as sobrevivências do passado”, o questionamento sobre fatos relacionados com estamentos ou classes sociais (p. 172). Para não falar em “arqueocivilização”, Bastide mostra o potencial de resistência da memória coletiva, a qual, através da “lembrança afetiva” implica a possibilidade da recriação da terra de origem.
O projeto sobre as relações raciais é apresentado como um segundo ponto de inflexão na interlocução entre Bastide e Florestan Fernandes. Desenvolvido na década de 1950 a partir de diretrizes concebidas desde a constituição da Unesco, o projeto-piloto é trazido ao Brasil por Alfredo Métraux, chefe do Setor de Estudos Raciais do Departamento de Ciências Sociais da Unesco, que mobiliza todo um aparato de pesquisadores em diferentes regiões do Brasil e convida Bastide para coordenar o aspecto sociológico em São Paulo, sendo que Florestan participa como “seu braço direito na condução dos trabalhos” (p. 186) e redige o projeto em 1951, procurando unificar diferentes perspectivas. Em publicação datada de 1955, Florestan expressa sua própria visão de que as desigualdades sociais produzidas em contexto escravista sobredeterminam fatores raciais da discriminação, considerada um meio de manutenção da ordem escravocrata. Já a análise de Bastide sobre o preconceito detém-se em atitudes e comportamentos de brancos e negros e seu pertencimento a grupos e classes sociais no sentido da crítica da chamada democracia racial. Para Bastide, como para Florestan, a miscigenação não traduz uma sociedade igualitária, servindo mesmo para tornar mais visível o preconceito. Embora os pontos de vista de ambos coincidam quando consideram uma dupla ordem social, caracterizada pela antiga ordem senhorial escravista e a ordem capitalista em formação no sentido da desmitificação da democracia racial, focalizam ângulos distintos: Bastide discute, ao nível das relações dos valores e das ideologias com a estrutura social, como se constituem comportamentos ambivalentes. Ao passo que Florestan discute problemas relacionados com a integração do negro no contexto da modernização (p. 191). Cabe considerar em que medida a crítica à modernização, nestes dois autores, se pauta pela ótica do arcaico. Seguindo as indagações de Fernanda Peixoto, não seria a simpatia de Bastide pela contracultura da década de 1960 alimentada por seu apego aos fatores arcaicos das mobilizações de resistência cultural? Compete, igualmente, perguntar em que medida o modelo ocidental se constitui como uma via única para os processos e alternativas sociais (pp. 195-7).
A retomada da obra de Bastide a partir do ponto de vista de seus diálogos brasileiros permite uma visão panorâmica da formação das ciências sociais no Brasil. A releitura do modernismo a partir de temas tocados por Mário de Andrade e interesse pelo estilo de crítica ensaística em um diálogo com Gilberto Freyre não implica um distanciamento do rigor da análise acadêmica que influenciou o desenvolvimento da crítica sociológica a partir de Florestan Fernandes. O exercício da crítica de Bastide torna-se um antídoto diante da pluralidade de temas, o que pode ser visto hoje como uma metodologia de abordagem interdisciplinar, centrada em problemas como as relações entre experiência e reflexão, indivíduo e sociedade, simbolismo e estrutura, tradição e ruptura. Entre tantas possibilidades das diferentes perspectivas teóricas e interpretações sobre o Brasil, Bastide traça um recorte diferente do habitual interesse exclusivo dos estrangeiros pelas manifestações culturais. Para ele a análise da cultura brasileira “autêntica” não deve ser confundida com a busca de uma pureza idealizada. Ao contrário, assume a condição de estrangeiro na encruzilhada entre o social e seu inverso: a subjetividade e o misticismo.
Como Bastide (1971, p. 146) destacou, os estrangeiros interpretam a visão de mundo dos nativos conforme os referenciais de uma religião exógena, impondo que suas divindades obedeçam à lógica do maniqueísmo ocidental, trazendo heróis culturais antes deles desconhecidos. Já consumada a violência colonial, resta à imaginação sociológica reinventar esses heróis, como o Prometeu de André Gide (1925, pp. 135-51), que amou tanto a águia que comia seu fígado que a ela se devotou e dela tratou até chegar o momento de matá-la e servi-la como refeição a seus companheiros. Para Bastide (1944, p. 72), a águia que se nutre da fé de Prometeu não é mais do que a idéia de progresso, mas em outras interpretações a águia é a dúvida sistemática que alimenta a crítica. Ousando uma analogia, caberia perguntar em que medida os métodos, teorias e indagações em ciências sociais são forjados conforme as condições locais e não unicamente conforme parâmetros exógenos. Embora não tenha sido sublinhado pela autora, cabe indagar se embora hoje questões relacionadas ao (neo) colonialismo não sejam tão centrais como na época de Bastide, principalmente no que se refere à interlocução com Florestan Fernandes, toda a problemática do enraizamento nacional e da “aclimatação” das teorias, interpretações e métodos não está ainda na ordem do dia, sobretudo no que diz respeito à história da ciência.
Apesar de ser arrolado entre os “intérpretes do Brasil”, como indica Fernanda Peixoto, a meu ver obra de Bastide não é apenas a contribuição de mais um estrangeiro intérprete do Brasil, mas um conjunto de experimentos que se traduziram em reflexões sobre as “aplicações” da antropologia, em interface com temas da literatura, da religião e das relaçõessociais no país que caracterizou como “terra de contrastes”, no qual hoje continuam colocando-se inúmeras questões de ordem prática sobre as quais as pesquisas em ciências sociais precisam constantemente redefinir um campo de reflexão. A leitura do livro aqui resenhado leva a concluir que, com sua presença no Brasil, o autor procurou deliberadamente deixar como legado a atitude de crítica sistemática. Como Fernanda Arêas mostra muito bem, a metodologia formulada por Bastide, sem ser uma receita, serve como um prumo para quem queira pensar inventivamente, sem deixar de considerar a contribuição de cada paradigma. A leitura desse livro, bem como da obra de Bastide, é recomendável para um melhor conhecimento da história das ciências sociais no Brasil.
Referências
BASTIDE, Roger 1971 Antropologia aplicada. São Paulo, Perspectiva.
BASTIDE, Roger 1959 Brasil: terra de contrastes. São Paulo, Difel.
BASTIDE, Roger 1944 ‘A evolução religiosa de André Gide’. Boletim Bibliográfico, ano 1, vol. 5, pp. 63-76, São Paulo, Biblioteca Pública Municipal de São Paulo.
GIDE, André 1925 ‘Histoire de Tityre’. Em Le Prométhée mal enchainé. Paris, Gallimard.
QUEIROZ, Maria 1978 ‘In Memorian’‘. Isaura Pereira Revista de Antropologia, vol. XXI (2ª parte), pp. 223-4.
Resenhista
Priscila Faulhaber Barbosa – Doutora em ciências sociais. Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do Museu Goeldi. E-mail: priscila@museu-goeldi.br
Referências desta Resenha
PEIXOTO, Fernanda Arêas. Diálogos brasileiros: uma análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2000. Resenha de: BARBOSA, Priscila Faulhaber. Interlocuções e máscaras: construindo a crítica sociológica na “terra de contrastes”. História, Ciência, Saúde-Manguinhos. Rio de Janeiro, v.9, n.2, maio/ago. 2002. Acessar publicação original [DR]