BRAIT, Beth; MAGALHÃES, Anderson Salvaterra (Orgs.). Dialogismo: teoria e(m) prática. São Paulo: Terracota, 2014. 322 p. Resenha de: WALL, Antony. Um Bakhtin bem jovem. Bakhtiniana – Revista de Estudos do Discurso, v.11 n.1 São Paulo Jan./Apr. 2016.
Organizado por Beth Brait e Anderson Salvaterra Magalhães, a recente obra Dialogismo: teoria e(m) prática, recebida com muito entusiasmo, constitui uma vibrante e muito bem vinda adição aos estudos bakhtinianos internacionais. As dezesseis contribuições publicadas nesse livro bem editado, de 322 páginas (acompanhadas de um pequeno prefácio de Carlos Alberto Faraco e uma introdução de três páginas dos organizadores), exemplificam a presente jovialidade dos estudos bakhtinianos no Brasil, que se apresentam com uma verve interdisciplinar e uma energia intelectual revigoradora.
De várias formas, esta obra pode ser lida como uma excelente introdução à área – em constante crescimento – dos estudos bakhtinianos desenvolvidos no Brasil atualmente (em particular, em São Paulo). O alcance disciplinar dos ensaios é amplo, compreendendo as seguintes áreas: Análise do discurso, Estudos de textos e imagens, Estudos de tradução, Estudos de comunicação e mídia, Estudos teatrais, Educação, Estudos literários, História da arte. Em sua maioria, esses trabalhos estão embasados em uma premissa teórica interessante, ou seja, a de que, para se revitalizar a noção bakhtiniana de dialogismo, seria necessário fazer conhecer os diálogos implícitos entre autores de ensaios acadêmicos que trabalham em vários campos das disciplinas das Humanidades e das Ciências Sociais e seus objetos de estudo discursivamente constituídos. O dialogismo, discutido de forma tão convincente na introdução, é, por conseguinte, melhor entendido como sendo o criador de conexões e inter-relações humanas. Segundo os editores afirmam nas páginas iniciais, engajamo-nos “em relações graças à linguagem, por meio da linguagem” (p.14). Propõe-se, portanto, uma metodologia dialógica para ser seguida em disciplinas voltadas à Arte, segundo a qual não é mais possível considerar “objetos” de estudo sem vida, compreendidos de fora: o ponto de vista deve ser o de perguntas e respostas múltiplas que emanam de ambos os lados da díade pesquisador-pesquisa; ou seja, não parte somente da ótica do acadêmico que investiga e escreve, mas da perspectiva do material vivo com o qual ele se engaja. Dessa forma, o pesquisador é obrigado a participar da interação intervocal e interpessoal, em outras palavras em diálogo (p.14).
Logo nas primeiras páginas, o jogo com palavras proposto pelo subtítulo – teoria e(m) prática – na sobrecapa, permite que seja sentida sua influência semântica sobre a forma como a maioria dos capítulos é concebida e sobre os “objetos de estudo” a serem investigados. De forma significativa, o teórico Bakhtin e o seu Círculo são muito mais do que uma mera fachada nesses ensaios, são muito mais do que fontes citadas perifericamente. De forma notável, os autores russos estão virtualmente presentes em cada uma das contribuições publicadas e, no seu interior, fundamentam as discussões sobre o cerne dos problemas desenvolvidos. Todos os autores mostram um acentuado conhecimento dos recentes estudos sobre Bakhtin e o seu Círculo, publicados no mundo lusófono, mas também – e de forma muito impressionante – no mundo acadêmico anglo-americano, na Rússia e na França. Virtualmente, todos os importantes conceitos bakhtinianos são trazidos à tona em pelo menos um, se não em mais de um, dos ensaios aqui publicados. Além do “dialogismo”, conforme anunciado no título da obra, há uma discussão bastante produtiva sobre responsabilidade, gênero, discurso, ideologia, o grande tempo, cronotopo, linguagem escrita e oral. Surpreendentemente, se o tema do carnaval é, talvez, a noção bakhtiniana menos discutida nos ensaios, o livro em si é disposto como uma suntuosa festa rabelaisiana de ideias na qual Bakhtin e seu pensamento são constantemente incentivados, questionados, revitalizados, reinstrumentalizados, muitas vezes virados de cabeça para baixo e, dessa forma, produtivamente colocados em movimento.
Em mais da metade dos ensaios, a abordagem especial aos estudos bakhtinianos meticulosamente desenvolvida ao longo da última década por Beth Brait, uma teórica bakhtiniana prolífica, apresenta-se na forma daquilo que ela chama de discursos “verbo-visuais”. O pensamento inovador de Brait no campo dos estudos culturais desenvolve-se na análise de objetos multiconstituídos e híbridos em que é impossível a separação de suas dimensões inerentemente icônicas e linguísticas. Infelizmente, o seu trabalho ainda não é tão conhecido no mundo anglófono1. De maneira ampla, a presente obra Dialogismo: teoria e(m) prática é uma importante homenagem à natureza produtiva da obra de Brait, tendo em vista que mais da metade dos autores dos ensaios é formada por colaboradores atuais e/ou por ex-alunos de doutorado ou pesquisadores em pós-doutorados que têm atuado, às vezes por longos períodos de tempo, sob sua liderança notoriamente exitosa. Para ser franco, Beth Brait representa um dos pensadores (se não ‘o’) mais importantes que surgiram nos últimos quinze anos no Brasil, país onde há, no presente, uma boa dúzia ou mais de canteiros intelectuais de estudos bakhtinianos.
O livro, no entanto, não deve ser considerado uma mera coletânea clássica de ensaios que reconhece o lugar de proeminência de uma mestra na academia. De fato, as várias propostas teóricas desta coletânea provêm de um espaço fora do seu campo de trabalho intelectual, que, ao longo dos anos, foi por ela construído na Universidade de São Paulo e na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Ademais, esta coletânea de ensaios não está, de forma alguma, limitada a simples variantes dos princípios de análise de discursos “verbo-visuais” que ela desenvolveu. No interior da obra, muitas aventuras intelectuais em outras esferas são propostas também. O livro é dividido em três partes, sendo a seção mais substanciosa das três (140 páginas de extensão) a que é intitulada Dialogismo na vida. Ela contém sete ensaios, incluindo aqueles assinados pelos organizadores da obra. No primeiro ensaio dessa seção, escrito por Anderson Salvaterra Magalhães, uma discussão teórica densa sobre a história da imprensa é acompanhada por um estudo provocador de uma série de reportagens de jornal sobre o movimento neonazista brasileiro, pleno do uso inventivo da distinção feita por Bakhtin entre pequeno e grande tempo. Com Bruna Lopes-Dugnani, Beth Brait co-assina um artigo em que se debruçam sobre as conexões inextricáveis entre corpos, discurso verbal e imagem a partir de cartazes, escritos à mão ou impressos, que manifestantes levaram às ruas nas grandes manifestações em junho de 2013, que ficaram conhecidas, por vezes, como o movimento “V-de vinagre”. Aqui, constelações polimórficas do “nós” nos enunciados dos manifestantes são analisadas com o objetivo de revelar as forças heterogêneas de interlocução que se desvelam simultaneamente nas várias mídias expressivas, ao mesmo tempo que evidenciam o espaço ou espaços em que tais enunciados são produzidos e recebidos. Outras contribuições estudam a complexa interpenetração entre discursos jurídicos e jornalísticos no que tange a um julgamento de homicídio que foi bastante noticiado (Maria Helena Cruz Pistori) ou a relações intrínsecas entre cor, layout e fonte na publicação de uma série de capas de revistas em que aparecem imagens do ex-presidente Lula (Miriam Bauab Puzzo).
Esta parte central do livro é separada por duas seções menores (aproximadamente 70 páginas de extensão cada) – uma antes, outra depois – que são intituladas, respectivamente, Dialogismo: produção de conhecimento à brasileira e Dialogismo na arte. Enquanto na primeira parte encontramos contribuições sobre os gêneros do discurso, jornalismo e, especialmente, um artigo esclarecedor sobre os problemas para traduzir Bakhtin para a língua portuguesa (Sheila Vieira de Camargo Grillo e Ekaterina Vólkova Américo), na última seção do livro, encontram-se análises inteiramente bakhtinianas em áreas de estudo como a museografia, onde palavras e imagens entrelaçadas têm um papel proeminente na recente exibição sobre o escritor Jorge Amado (Adriana Pucci Penteada de Faria e Silva), as ilustrações da fábula A cigarra e as formigas de Esopo (Elaine Hernandez de Souza), os discursos indiretos livres em Vidas secas de Graciliano Ramos (Maria Celina Novaes Marinho), ou, finalmente, a presença subversivamente oculta da voz de uma mãe e uma discussão instrutiva sobre o uso de nomes próprios no romance amplamente aclamado de Guimarães Rosa Grande sertão: veredas (Sandra Mara Moraes Lima).
Os variados objetos de estudo propostos e discutidos nos ensaios desta coleção criam um caminho recompensador para o leitor que deseja uma visão detalhada dos direcionamentos contemporâneos dos estudos do pensador russo nesse centro cultural incontestável dos Estudos Bakhtinianos no mundo, isto é, o Brasil. A jovialidade dos articulistas não está entre as características menos atrativas do livro (apesar de se desejar que, ao serem feitas citações às obras do Bakhtin e do Círculo, as edições usadas fossem as mesmas em todos os capítulos, evitando, assim, que cada autor usasse edições próprias). Dado o agrupamento dos ensaios ter sido, de certa forma, inesperado, objetos de estudo semelhantes foram encontrados em várias contribuições em diferentes partes do livro. O desfecho positivo dessa escolha editorial é que os objetos de estudo, em sua dinâmica, não ficaram compartimentados em seções específicas do livro, tendo em vista que, simultaneamente, vários pontos de vista metodológicos e teóricos estão justapostos de forma produtiva, ou seja, de forma quase dialógica na sua disposição paratática, permitindo que o leitor, ao ir de um ensaio ao outro, perceba a insensatez que seria restringir a sua curiosidade para uma única parte do livro ou para um único “objeto” de estudo.
Por fim, o livro Dialogismo: teoria e(m) prática não é apenas uma homenagem muito justa ao trabalho de Beth Brait, que deve ser colocado no centro dos estudos bakhtinianos brasileiros. A obra também fornece um testemunho bastante convincente da alta qualidade das pesquisas feitas por muitos jovens acadêmicos em São Paulo e em outras partes do Brasil na atualidade.
Traduzido por Orison Marden Bandeira de Melo Júnior – junori36@uol.com.br
1Essa lacuna por parte de pesquisadores que não leem português é lamentável. Alguns dos trabalhos vigorosos de Brait sobre (e com) Bakhtin podem ser encontrados na seguinte lista de publicações, que está longe de ser exaustiva: (1) Ironia em perspectiva polifônica [Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996/2008]; (2) Bakhtin, dialogismo e construção do sentido [Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1997/2013]; (3) Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas [Campinas, SP: Pontes/FAPESP, 2001]; (4) Bakhtin: conceitos-chave [São Paulo: Editora Contexto, 2005]; (5) Bakhtin: outros conceitos-chave [São Paulo, Editora Contexto, 2006]; (6) Bakhtin: dialogismo e polifonia [São Paulo: Editora Contexto, 2009]; (7) Bakhtin e o Círculo [São Paulo: Editora Contexto, 2009]; (8) Literatura e outras linguagens [São Paulo: Editora Contexto, 2010]. Ela é, claro, a fundadora e editora-chefe do periódico eletrônico Bakhtiniana.
Anthony Wall – University of Calgary, Calgary, Alberta, Canadá; awall@ucalgary.ca.
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