Dez dias em um hospício é fruto de uma experiência singular em que a autora e jornalista norte-americana Elizabeth Cochran (1864 – 1922) investiga a realidade de um hospício. Foi convidada pelo então editor chefe do jornal e New York World (circulou entre 1860 e 1931) Joseph Pulitzer. Ele é o criador do Prêmio Pulitzer de jornalismo, pela primeira vez editado em 1917. Foi seu o projeto da internação de uma jornalista no hospício feminino da Ilha de Blackwell, mas a excelência do trabalho de Elizabeth esteve acima do que qualquer um podia imaginar. Ela encenou loucura, observou e denunciou não apenas as condições altamente inapropriadas da vida e do tratamento dispensado às internas, mas o próprio diagnóstico a que ela e outras internas receberam.
Nellie Bly era o pseudônimo de jornalista pelo qual publicava no e New York World e que foi usado para a série de reportagens que narraram sua experiência no asilo. As reportagens foram, em seguida, reunidas por ela na forma do livro que enfim chega ao público brasileiro, após 133 anos. Momento muito oportuno, em vista da desconstrução da Reforma Psiquiátrica, por políticas de regresso ao modelo manicomial, que vêm ocorrendo sistematicamente no Brasil, nos últimos anos.
A obra vai ao encontro da famosa frase dita possivelmente pelo jornalista William Randolph Hearst, e de algum modo retomada por George Orwell, mas sempre de maneria oral, o que impossibilita a citação da fonte sem que fique prejudicado seu valor de verdade: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique: todo resto é publicidade”.
Pode-se pensar que foi em busca do furo jornalístico que Nellie Bly assumiu a identidade de Nellie Brown, personificando a loucura com a recomendação de revelar a realidade do tratamento recebido pelas exiladas na ilha de Blackwell. Porém, não é a avaliação da subjetividade dela que tem interesse, mas o fruto de um trabalho primoroso de jornalismo investigativo, que se caracterizou por divulgar informações sobre ações de instituição da sociedade. Ela instituiu os muros e no interior dos quais não olha. Muros análogos ao das prisões.
Esse empreendimento de jornalismo investigativo, um poder em exercício, implicava riscos, mesmo que a equipe jurídica do jornal estivesse de prontidão, na retaguarda. Esses riscos e os sofrimentos por que passou Nellie são o preço que ela e tantas outras e outros jornalistas investigativos pagam para denunciar e dar visibilidade às verdades que foram colocadas à margem e na invisibilidade. Muitas/os jornalistas já perderam a vida no exercício desse compromisso.
Quanto ao drama, que alcança valor literário, sobre como Nellie se preparou para a situação de candidata à imediata internação, o que implicava parecer pobre e desprotegida; quanto ao que se passou lá dentro, a impressionante narrativa de seu convívio com as pacientes, as enfermeiras e os médicos… não resumiremos! Ative o leitor ou não o seu senso investigativo e amor pela verdade ou deixe repousar no silêncio e na invisibilidade o que é uma sociedade construtora dos muros e clausuras da grande e hipócrita divisão binária: de um lado do muro os bem adequados, do outro os demais (ou ‘a mais’).
Resenhistas
Tatiana Carilly Oliveira Andrade – Jornalista e professora. Doutora em Educação pela PUC Goiás. E-mail: tatianacarilly@gmail.com
Eduardo Sugizaki – Filósofo e professor. Doutor em Filosofia pela Universidade da Picardia Júlio Verne e em História pela UFG. E- mail: eduardosugizaki@gmail.com
Referências desta Resenha
BLY, Nellie. Dez dias em um hospício. Trad. Karine Ribeiro. São Caetano do Sul: Wish, 2020. Resenha de: ANDRADE, Tatiana Carilly Oliveira; SUGIZAKI, Eduardo. Nelly Bly denuncia o encarceramento da loucura, no século XIX. Revista Mosaico. Goiânia, v. 14, n.2, p. 338-339, 2021. Acessar publicação original [DR]
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