Destinatário: Felte Bezerra. Cartas a um antropólogo sergipano (1947-1959 e 1973-1985) – DANTAS; NUNES (PL)
Em 2009, o recém-criado Núcleo de Pós-Graduação e Pesquisa em Antropologia (NPPA) convidou a antropóloga e Professora Emérita da UFS Beatriz Góis Dantas para ministrar a aula inaugural para a primeira turma de pós-graduandos, que versou sobre a trajetória acadêmica de outro antropólogo sergipano: Felte Bezerra. Embora a velha e básica lição da Antropologia nos ensine que só podemos nos situar no mundo enquanto “eu” a partir de um “outro”, daí ser necessário conhecer esse “outro”, não devemos nos esquecer de quem somos. Sendo assim, nada como começar o primeiro ano letivo debatendo sobre os pioneiros da Antropologia em Sergipe.
Nesse ano, a mencionada professora, em parceria com a professora da UFS e diretora do Museu do Homem Sergipano, Verônica Maria Menezes Nunes, trazia à luz para a comunidade acadêmica a obra Destinatário: Felte Bezerra – cartas a um antropólogo sergipano (1947-1959 e 1973-1985).
Felte Bezerra nasceu em Aracaju, aos 25 de dezembro de 1908. Após atuar no comércio, vai para Salvador, onde se forma em Odontologia em 1934. Atua como professor catedrático de Geografia no Ateneu Sergipense e mais tarde será um dos fundadores da Faculdade Católica de Filosofia, em 1951, peça importante no começo dos estudos superiores em Sergipe. Nessa Faculdade vai ministrar aulas de Geografia Humana, Antropologia, Etnologia e Etnografia do Brasil. Nas fronteiras entre Geografia e Ciências Sociais ele produziu: Da Terra (1938), tese de concurso para professor do Ateneu; Etnias Sergipanas (1950); Investigações Histórico-geográficas de Sergipe (1952); Antropologia Sociocultural (1973); Problemas de Antropologia – do estruturalismo de Levi-Strauss (1976); Problemas e Perspectivas em Antropologia (1980); Aspectos Antropológicos do Simbolismo (1983); Análises AntropológicasEstudo Teórico (1986) e África Subsaariana (1988). Felte Bezerra falece no Rio de Janeiro, em 6 de janeiro de 1990, aos 82 anos.
O livro Destinatário: Felte Bezerra pode ser dividido em três partes principais. Na primeira, temos uma análise da professora Beatriz sobre a trajetória intelectual de Felte Bezerra, tendo como fontes principais de estudo as missivas que ele recebeu de diversos intelectuais brasileiros e estrangeiros do campo das Ciências Sociais. As cartas apontam para dois períodos de intensa atividade intelectual do antropólogo sergipano (1947-1959 e 1973-1985), captados por Beatriz em seu texto, que, por sua vez, mostra como tal correspondência “é exemplar no sentido de ajudar a desvendar o processo de articulação entre intelectuais de regiões “periféricas” e os grandes centros de produção das Ciências Sociais no Brasil” (DANTAS, 2009, p. 31).
Assim, a antropóloga mostra a relação entre Felte Bezerra e a tríade de professores estrangeiros responsáveis pelo desenvolvimento Ciências Sociais no Brasil. Donald Pierson, Emílio Willems e Roger Bastide atuaram e se destacaram em São Paulo, na década de 1930, “na institucionalização do ensino e da pesquisa, e na diferenciação de disciplinas que formavam blocos ainda indiferenciados e [que], gradativamente, vão se constituindo em campos especializados de saberes e práticas” (DANTAS, 2009, p. 43). Sendo assim, a correspondência de Felte Bezerra com essa tríade será de fundamental importância na elaboração do livro Etnias Sergipanas (Aracaju, 1950). É a partir desse livro pioneiro, clássico nos estudos sobre o nosso estado, que o antropólogo se tornará conhecido nacionalmente, a partir da “rede de intelectuais paulistas… e esta nova teia de relacionamentos contribuiu para ampliar sua divulgação, contando também com o concurso de ex-alunos da escola de Sociologia e Política [de São Paulo] que começavam a ocupar espaços acadêmicos” (DANTAS, 2009, p. 69).
Navegando por estas cartas, Beatriz Dantas comenta dois momentos, que ora queremos destacar. Por um lado, a relação de Felte com o grande nome potiguar do Folclore, Luis da Câmara Cascudo. Este “comenta o livro [Etnias Sergipanas] e detém-se na tese da pequena influência dos holandeses em Sergipe, que também era o ponto de vista defendido por Felte” (DANTAS, 2009, p. 99). Por outro lado, Beatriz descobre o silêncio de Gilberto Freyre sobre Etnias Sergipanas quando da sua publicação em 1950, fato que muito magoou o autor. O silêncio do ilustre sociólogo de Casa Grande e Senzala e de O Nordeste, obras constantemente citadas no livro Etnias Sergipanas, “devia pesar mais, afinal fora nele que Felte Bezerra bebera muitas influências” (DANTAS, 2009, p. 110). Apesar disso, Freyre cita Felte Bezerra nas segundas edições de O Nordeste e Sobrados e Mucambos, em 1951.
Contudo, Gilberto Freyre representa mais que simples fonte de inspiração intelectual de Felte Bezerra. Freyre era o elo do antropólogo sergipano com a Escola Culturalista Norte-Americana. Como o foco central do texto de Beatriz Dantas são as cartas, esse é um viés não explorado, que fica para estudos posteriores: a relação do Felte Bezerra de Etnias Sergipanas, com Franz Boas (1858-1942), Ruth Benedict (1887-1948), Melville Herskovitz (1895-1963) e Robert H. Lowie (1883-1957), autores lhe serviam de aporte teórico. Não por acaso, a publicação de Destinatário: Felte Bezerra, além de torná-lo conhecido, objetiva suscitar “estudos sobre sua produção antropológica enfeixada em sete livros e em revistas diversas, também sobre variados assuntos de que [Felte Bezerra] se ocupou na imprensa” (DANTAS, 2009, p. 35).
Se no primeiro período de atividade intelectual, o centro dos assuntos nas cartas é o livro Etnias Sergipanas, no segundo período vemos Felte Bezerra retomar sua atividade intelectual, procurando “interlocutores especializados que quebrassem o isolamento de sua produção”, após uma década desenvolvendo atividades nos setores produtivos, afastado da vida acadêmica (DANTAS, 2009, p. 127).
As outras duas partes principais em que a obra se divide são as cartas compiladas, no caso das recebidas por intelectuais brasileiros, e as traduzidas do inglês e do francês para o português, no caso das recebidas de intelectuais estrangeiros. Além dos intelectuais missivistas já mencionados neste texto, podemos citar Oracy Nogueira (1917-1996), Edgar Roquette-Pinto (1884-1954), Egon Shaden (1913-1991), Manuel Diégues Júnior (1912- ), Vivaldo da Costa Lima (1925- ), José Calasans Brandão da Silva (1915-2001), Fernando de Figueiredo Porto (1911-2005), João Batista Perez Garcia Moreno (1910-1976), entre outros. A última parte traz informações sobre a vida e a obra dos que enviaram cartas a Felte Bezerra, o que ajuda o leitor a entender o contexto intelectual no qual o antropólogo sergipano trafegava.
Para encerrar, acrescentamos que as correspondências, como também as diversas fotografias que enriquecem o livro Destinatário: Felte Bezerra, tiradas da Coleção Felte Bezerra preservadas pelo Museu do Homem Sergipano e agora publicadas, não só fornecem outro ângulo de visão sobre a obra do antropólogo sergipano, como também situam a Antropologia praticada em Sergipe no contexto nacional e, quiçá, internacional. Resta aos leitores, portanto, seguir a oportunidade que a obra nos oferece e conhecer a prata da casa!
Eduardo Lopes Teles – Licenciado em História e Mestrando em Antropologia pela UFS. Membro dos Grupos de Pesquisas História Popular do Nordeste (HPOPnet/UFS) e Estudos Culturais, Identidades e Relações Interétnicas (GERTS/NEAB/UFS) E-mail: elteles18@yahoo.com.br
DANTAS, Beatriz Góis e NUNES, Verônica Maria Menezes (Orgs). Destinatário: Felte Bezerra. Cartas a um antropólogo sergipano (1947-1959 e 1973-1985). São Cristóvão: Editora UFS, 2009. Resenha de: TELES, Eduardo Lopes. Prata da casa. Ponta de Lança, São Cristóvão, v.4, p. 101-104, n.7, out. 2010/abr. 2011. Acessar publicação original [DR]