Deslocamentos populacionais, migrações de crise e refugiados | Monções – Revista de Relações Internacionais | 2019
O início do século XXI pode ser marcado de diversas formas. Podemos elencar: as guerras ao terror, e suas graves consequências; a popularização da internet, e todas suas decorrências; a consolidação da China como ameaça à hegemonia das grandes potências ocidentais sobre o mundo, e seus impasses. Qualquer uma delas, ou outras que não inserimos aqui, não pode ser enxergada apenas como uma virada de página de um século para outro. Da mesma forma ocorre com as migrações internacionais, com suas variadas formas, estratégias, repercussões e impactos. As atualizações que esses movimentos populacionais estão sujeitos são marcadas, também, pelas assimilações que obtiveram a partir daquelas novidades que mencionamos.
Sem dúvida, os movimentos migratórios internacionais se avolumaram, isso em função, também, do aumento de guerras e catástrofes ambientais, principalmente nos países mais pobres. Consideramos que isso tenha ocorrido como consequência de uma somatória de elementos que aqui é difícil de ser resumida. Além dos conflitos e das tragédias, ocorridos por motivações internas ou externas a cada país, as formas como os vizinhos reagiram ou não, os posicionamentos políticos das nações mais desenvolvidas, as rotas que foram abertas ou consolidadas, as estratégias de sobrevivência e de administração dos recursos para chegar a um destino são apenas alguns dos pontos a constar nas observações. Há outros, diretamente ligados aos países em que escolhem, ou não, para sua reconstrução. E, neste ponto, reside aquilo que Michel Foucher denominou por obsessão pelas fronteiras, que pode ser entendida como uma expressão de endurecimento de práticas de controle por parte dos estados nacionais envolvidos. Mas, também, como uma atualização da governamentalidade ensinada por Michel Foucault, que se expressa, por exemplo, na seleção de ‘bons imigrantes’, que ocorre há muitos anos.
As formas de assimilação, as táticas de envolvimento com a sociedade local, as manutenções de redes familiares com o país de origem, são alguns dos pontos, que aparecem, mais sob a forma interrogativa do que exclamativa, residem nos corações e mentes desses personagens. De forma quase antagônica, os receios em aproximar, as práticas solidárias ou xenófobas, os níveis permitidos para o acesso à cidadania, aqui entendida em seu sentido político e não jurídico, permeiam aqueles que atuam nas esferas administrativas e a sociedade que os acolhe ou repele, de maneira quase que geral, além dos organismos de defesa da cidadania e promotores de oportunidades. O debate a respeito da migração internacional – pensando em seu trajeto, desde a decisão familiar ligada à saída, os caminhos enfrentados e as formas como vão lidar na nova sociedade em que vão viver – não cessa.
Dados do Alto Comissariado das Nações Unidades para Refugiados (ACNUR) indicam que, em 2018, o número de pessoas forçadas a se deslocar de suas comunidades de origem em razão de guerras, violência ou perseguição bateu recorde pelo quinto ano consecutivo, ultrapassando os 70 milhões. Além disso, como reflexo da degradação ambiental e das mudanças climáticas, migrações por estresse socioambiental têm se intensificado da maneira considerável nesse início de século XXI. Com efeito, a governança das migrações e deslocamentos transnacionais se configura como um dos principais desafios da política internacional contemporânea. Objeto de pactos e declarações no âmbito da Organização das Nações Unidas, o tema mobiliza agendas políticas mundo afora. Ao passo que instituições multilaterais, organizações da sociedade civil e órgãos governamentais se articulam para atender a demandas relacionadas a estes fluxos populacionais, movimentos e partidos políticos nacionalistas se utilizam de discursos populistas, antiglobalistas e xenófobos que acarretam em diversas violações aos direitos humanos.
Ao longo da última década a América Latina entrou no circuito de destino e de origem de fluxos migratórios de cidadãos que abandonam seus países em razão de dificuldades provocadas por crises sociais, econômicas e ambientais, além de indivíduos que buscam reconstruir suas vidas após escaparem de regiões envoltas em conflitos armados e perseguições políticas. Haiti e Cuba, e mais recentemente Honduras e Venezuela, são a origem do maior número de solicitações de refúgio. Além desses, chegam a esse continente migrantes internacionais oriundos de países da África, Oriente Médio e Ásia, como Angola, Síria e Bangladesh.
Diante desse quadro, a MONÇÕES – Revista de Relações Internacionais da UFGD, em parceria com a Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UFGD, promove o dossiê “Deslocamentos populacionais, migrações de crise e refugiados”, reunindo 12 artigos de pesquisadores, ativistas e agentes públicos que nos apresentam análises teóricas sobre o tema, radiografias de fluxos migratórios, formulação e execução de políticas públicas, estabelecimento de legislações, experiências de acolhimento e integração, bem como uma série de apontamentos a novos rumos para a pesquisa em nosso país.
Carolina Moulin Aguiar, professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Universidade Federal de Minas Gerais abre os debates com o artigo “Entre a crise e a crítica: migrações e refúgio em perspectiva global”. A autora argumenta que “a narrativa sobre a crise global contemporânea das migrações e do refúgio se sustenta por meio da articulação específica entre a dimensão do ‘problema do deslocamento’ e determinadas formas de concepção espaço-temporais das dinâmicas de pertencimento”. Assim, demonstra que o modelo hegemônico de governamentalidade migratória reduz espaços de proteção, cerceia e modula rotas de circulação e promove exclusão daqueles considerados indesejáveis.
Na sequência, Juan Carlos Mendez, professor do curso de Relações Internacionais da Universidad Nacional, na Costa Rica, discute os mecanismos de cooperação sul-sul disponíveis na América Latina e Caribe em “La Cooperación SurSur y el abordaje del desplazamiento transfronterizo causado por desastres y cambio climático: experiencias en América Latina y el Caribe”. Para ele, os princípios baseados em considerações humanitárias e de solidariedade internacional que fundamentam a cooperação Sul-Sul constituem a origem das respostas que os países da região adotaram em matéria de políticas públicas e legislação migratória, especialmente a partir do trabalho dos Processos Regionais de Consulta em Matéria Migratória.
O terceiro artigo é de Rafaela Julich Morais, agente de integração de pessoas refugiadas na Organização Não-Governamental Círculos de Hospitalidade. Fruto de sua dissertação de mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da UFSC, o argumento central do artigo “Mulheres em Refúgio: a marginalização de refugiadas em um sistema internacional hierarquizado” é que a marginalização de mulheres refugiadas, que se reproduz também nas sociedades de acolhida, é “reflexo das relações coloniais de poder que moldam o globo em múltiplas hierarquias de gênero, raça, etnia, nacionalidade e status migratório”, que gera a essas mulheres refugiadas exclusão política, social e econômica, as inferiorizando tanto no sul quanto no norte global.
Abrindo as discussões sobre a realidade brasileira, Roberto Rodolfo Georg Uebel, Professor de Relações Internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing, discute a governança migratória brasileira durante o governo Dilma Rousseff. Em “Governança migratória da administração Rousseff: panoramas e o visto humanitário”, Uebel realiza uma análise sintetizada de fluxos migratórios, solicitações de asilo e concessão de refúgio a latino-americanos e africanos no Brasil durante os anos de 2011-2016, com dados coletados em sua pesquisa de doutorado, defendida no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS.
O quinto artigo é resultado de outra pesquisa de doutorado. Realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP, a pesquisa de Gabriela Garcia Angelico se apropria do referencial teórico do filósofo alemão Jürgen Habermas para apresentar o caso das políticas públicas deliberativas do município São Paulo em “As políticas públicas do município de São Paulo para refugiados e migrantes analisadas a partir do referencial habermasiano: um novo paradigma para o Brasil?”. Segundo a autora, a experiência de São Paulo poderia ser replicada, inaugurando um paradigma jurídico e político de caráter emancipatório, ao entender “o ser humano que migra como sujeito de direitos, que deve ter a sua ação e participação políticas asseguradas”.
A seguir, o professor do Instituto de Ciências Sociais da UnB Leonardo Cavalcanti, o professor de Sociologia da UFPR Marcio Oliveira, o Doutorando em Sociologia da UFPR Pedro Marchioro e a Mestre em Ciências Sociais pela UnB Lorena Cordova, apresentam resultados de pesquisa realizada pelo Laboratório de Estudos sobre Migrações Internacionais da Universidade de Brasília em conjunto com a Universidade Federal do Paraná a respeito dos impactos da crise econômica sobre a população migrante, observando o caso dos haitianos na cidade de Curitiba. Em “Imigração haitiana em Curitiba e crise econômica: o emprego estratégico de redes migratórias e os capitais de mobilidade em contexto de crise”, os autores defendem que a crise pela qual passa nosso país, com forte retração na atividade econômica, gera impactos nos projetos dessa população imigrante, conferindo cada vez mais importância às redes e ao capital migratório como resposta ao atual cenário.
A migração haitiana também é foco do trabalho de Adriana Capuano de Oliveira, professora da Universidade Federal do ABC, Maura Bicudo Véras, professora da PUC-SP, e da ativista social do movimento Conviva Diferente e mestranda em Ciências Sociais da UFABC Érika Andrea Butikofer. Através de um trabalho etnográfico realizado em Guaianases, na periferia do município de São Paulo, as pesquisadoras buscaram conhecer a dinâmica dos migrantes haitianos que deixam suas moradias temporárias localizadas no centro da cidade para se inserirem em bairros periféricos, como demonstrado em “Migração e periferização: o caso dos haitianos em Guaianases/SP e os desafios do pertencer”.
O último trabalho sobre a migração haitiana desse dossiê é apresentado por Bruna Ribeiro Troitinho, Doutoranda no Programa de Pós-Graduação Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria. Como parte das atividades do MIGRAIDH, Grupo de Pesquisa, Ensino e Extensão Direitos Humanos e Mobilidade Humana Internacional, a autora também se apropriou da metodologia do trabalho etnográfico para conhecer o “sonho perseguido por jovens haitianos que ingressaram na Universidade Federal de Santa Maria a partir da política de acesso ao ensino superior”, que resultou dos trabalhos da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UFSM junto às instâncias da administração central da universidade, como apresentado no artigo “Política de Acesso ao Ensino Superior e o sonho do Diploma Diáspora Haitiano”.
Dando sequência ao dossiê, João Carlos Jarochinski Silva, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima e Bernardo Adame Abrahão, Delegado da Polícia Federal, no artigo “Contradições, debilidades e acertos dos marcos de regularização de venezuelanos no Brasil” analisam a forma como o Estado brasileiro tem lidado com o fluxo migratório venezuelano inclusive à luz das normas emergenciais para o tema. De acordo com os autores, “o reconhecimento da grave e generalizada violação de direitos humanos na Venezuela, apesar de tardia, foi adequada aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil”.
Também da Universidade Federal de Roraima vem o artigo seguinte, “O Ensino de português como língua de acolhimento e seu papel como facilitador do processo de integração de imigrantes venezuelanos em Roraima”, de Gustavo da Frota Simões, professor de Relações Internacionais da UFRR e Carolyne de Melo Ribeiro Tavares, professora de Português como língua de acolhimento no projeto da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UFRR. O artigo apresenta o ensino de português como parte do Projeto Acolher, prática de extensão oferecida pela Universidade Federal de Roraima como ferramenta de integração de imigrantes e refugiados venezuelanos à sociedade de destino.
O último dos artigos que trabalha com a migração venezuelana vem da Universidade Estadual da Paraíba. Andrea Pacheco Pacífico, Professora da UEPB e Sarah Fernanda Lemos Silva, Mestranda em Relações Internacionais na UEPB, analisam como o Programa Nacional de Interiorização promovido pela Operação Acolhida na cidade de João Pessoa se fortaleceu com os instrumentos de cooperação estabelecidos entre as Agências da ONU, Governos federal, estadual e municipal, Organizações Não-Governamentais e Universidades. A análise desse mecanismo está apresentada em “A cooperação como instrumento para fortalecer a integração de migrantes forçados venezuelanos na Paraíba em 2018”.
Finalizando o dossiê, Alex Guedes Brum, que é Doutorando em História pela FGV-RJ, apresenta “As políticas de vinculação do Brasil e da Turquia para suas comunidades no exterior no pós-Guerra Fria: uma análise comparativa”. Ao buscar semelhanças e diferenças nos atores responsáveis pela formulação e na implementação, o autor demonstra que a Turquia se encontra em situação muito mais consolidada de vinculação com sua população emigrante do que o Brasil.
Este dossiê contou com contribuições altamente valorosas, mesclando reflexões teóricas, análises de legislação e políticas públicas, e experiências de atividades de extensão com a população migrante e de refugiados. Espera-se que ele possa contribuir ainda mais com a consolidação do campo de estudos sobre migrações e refúgio no Brasil, assim como subsidiar o trabalho de agentes governamentais e organizações que atuam pela garantia de direitos e promovem a integração de migrantes à sociedade brasileira. Para abrir os trabalhos desse dossiê, convidamos as leitoras e os leitores a acompanhar a entrevista realizada com o professor Duval Magalhães Fernandes, uma das referências nos estudos sobre migrações internacionais em nosso país. Uma boa leitura a todas e todos, com votos para que se abram novos caminhos de pesquisa e intervenção a partir do material reunido nesse número da Revista Monções!
Dourados e Corumbá, Mato Grosso do Sul
29 de maio de 2020.
Organizadores
Hermes Moreira Junior – Professor da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da UFGD Coordenador da Cátedra Sérgio Vieira de Mello ACNUR/UFGD. E-mail: hermesmoreira@ufgd.edu.br
Marco Aurélio Machado de Oliveira – Professor do Mestrado em Estudos Fronteiriços da UFMS – Campus do Pantanal Co-fundador do Coletivo Circuito Imigrante. E-mail: marco.oliveira@ufms.br
Referências desta apresentação
MOREIRA JUNIOR, Hermes; OLIVEIRA, Marco Aurélio Machado de. Apresentação. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.8 n.16, p.1-7, jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]