Autor e livro dispensam apresentações. O impacto suscitado por esse ensaio de 1927 pode ser medido por uma pequena lista dos seus resenhistas de primeira hora, que inclui nomes como Delio Cantimori, Karl Löwith, Eugenio Imaz, Herbert Marcuse, Sérgio Buarque de Holanda e Leo Strauss. A história de sua recepção é fascinante. Um mestre da suspeita como Habermas (2007, p. 80) advertiu que seria um grave erro tentar suprimir as notórias deficiências da teoria política marxista recorrendo à “crítica fascista de Carl Schmitt à democracia”. O tabu habermasiano jamais entusiasmou muita gente, pela simples razão de que Schmitt é um daqueles poucos autores a quem podemos chamar de “bons para pensar”. A esse respeito, uma pequena anedota: Jacob Taubes conta que, quando foi fellow na Universidade de Jerusalém, apenas quatro anos após o fim da Segunda Guerra, teve grande dificuldade para acessar a Teoria da constituição de Schmitt porque o exemplar da biblioteca fora requisitado pelo ministro da justiça, então ocupado com a formulação de um esboço da Constituição para o Estado de Israel (TAUBES, 1987, p. 19). Nos últimos anos, Chantal Mouffe tem apostado suas fichas num híbrido gramsciano-schmittiano que, acredita ela, seria capaz de recarregar as baterias da esquerda num mundo “pós-político”. Tal como o Koselleck de Crítica e crise, que via na moralização uma deturpação do político – uma conhecida tese schmittiana –, Mouffe reclama a mesma neutralização ética do político, além do abandono do racionalismo liberal que permita “[…] mobilizar as paixões para fins democráticos” (MOUFFE, 2007, p. 13-14). Para quem já teve oportunidade de ler Francisco Campos, o déjà vu é inevitável.
O festival de sinais trocados não é menor no campo liberal. Enquanto Johan Huizinga viu nas teses de Schmitt um inequívoco sintoma da “enfermidade espiritual” da Europa do Entreguerras, um influente historiador e teórico do direito como Ernst-Wolfgang Böckenförde assumiu publicamente sua dívida intelectual para com Schmitt e uma inabalada admiração por O conceito do político. E se Mark Lilla rejeita explicitamente toda “política do desespero teológico”, ele é honesto o bastante para admitir, não sem ironia, que o teorema amigo/inimigo, o antiliberalismo e o decisionismo schmittianos são uma espécie de ponto de fuga intelectual em que buscam refúgio e justificação muitos dos que se colocam nos extremos do espectro político. “Não surpreende, assim, que jovens revolucionários que um dia haviam cortado cana em Cuba tomassem o trem para Plettenberg, compartilhando as cabines com seus adversários conservadores” (LILLA, 2017, p. 63). Reinhart Koselleck, Giorgio Agamben e Sérgio Buarque são apenas três entre os muitos que, de fato ou imaginariamente, compraram seus bilhetes para o lugarejo onde se refugiara “o apocalíptico da contrarrevolução” (a expressão é de Taubes).
Deixemos Agamben de lado e tomemos o caso de Sérgio Buarque. É bem verdade que a admiração do historiador paulista por André Gide o tornou impermeável ao decisionismo, razão pela qual seu livro de estreia não assume uma posição clara num contexto tão polarizado como foi o daquela época. É inegável, por outro lado, que seus escritos dos anos 1930 revelam marcas de sua atenta leitura do “sábio professor da Universidade de Bonn”. Destacam-se três aspectos claramente schmittianianos no jovem Sérgio: o antiliberalismo de raiz, o empenho em articular concepções antropológicas e teoria política e, claro, a famosa distinção amigo/inimigo. Sendo o antiliberalismo um esporte praticado no Brasil desde sempre, os dois últimos pontos são sem dúvida os mais importantes. Em sua primeira formulação, entre 1935 e 1936, a caracteriologia do brasileiro em Sérgio Buarque deve bem mais a Schmitt do que se pensa. Como o homem cordial supostamente não tem – ou não quer ter – inimigos, significa dizer que no Brasil não existe política. Para chegar a essa conclusão, terá bastado a Sérgio Buarque ler a seguinte passagem na página 34 do seu exemplar de O conceito do político: “Uma vez suprimida tal distinção [amigo/inimigo – SM], a vida política deixa de existir completamente”. E como para o historiador paulista “[…] a noção de bondade natural do homem combina singularmente com o nosso já assinalado ‘cordialismo’ […]”, daí resulta a fragilidade constitutiva da organização político-estatal brasileira, sua falta de “punjança” e de “grandeza”. Feito à imagem e semelhança do homem cordial (admiravelmente retratado por Noel Rosa em seu samba de 1935: “este João nunca se expôs ao perigo/ nunca teve um inimigo/ nunca teve opinião”), nosso Estado estaria desprovido de qualquer “ambição de conquista” ou de “espírito militar”. Diríamos: um Estado neurastênico, que ignora o “prestígio” proporcionado pela conquista, posto que “[…] detestamos as soluções violentas” (HOLANDA, 1936, p. 154, p. 142-143). Que pode haver de mais schmittiano que a tese expressa em “Corpo e alma do Brasil” (HOLANDA, 2011, p. 73) segundo a qual “[…] com a cordialidade e a bondade não se criam os bons princípios”? Não são exatamente escassos os que, hoje em dia, sorrirão em sinal de aprovação ante considerações como essa.
Somente a força dos mitos historiográficos explica por quê ainda se dedica tanta tinta a uma fabulação como o “homem cordial”. É claro que para a perpetuação de tais mitos concorrem fatores de toda ordem, intelectuais e institucionais. Um deles tem a ver com o tema desta resenha, e que não convém perder de vista: o fato de que uma boa edição crítica de um grande livro precisa colocar à vista as diversas camadas de que se compõe. Tanto quanto Raízes do Brasil, O conceito do político passou por sucessivas reformulações desde sua publicação original no volume 58 do Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik (seguem-se as edições de 1932, 1933 e 1963). O que as motiva? Podemos responder com um alto grau de certeza: em geral as circunstâncias mudam mais rapidamente do que as posições de um autor. Para um pensador “ocasionalista” como Schmitt – na precisa expressão de Löwith – a adequação à situação é tudo. Assim, tão logo Hitler toma o poder, ele rompe o contrato com a editora Duncker & Humblot, pertencente a judeus, para publicar uma versão bastante condensada do texto, impresso em letras góticas, numa casa editorial de perfil assumidamente nacionalista, a Hanseatische Verlagsanstalt (sendo essa a edição lida por Sérgio Buarque, Huizinga e Hannah Arendt).
Oferecer aos leitores uma visão cristalina das mutações de um texto é algo que não se consegue apenas à custa de novas introduções ou posfácios, por melhores que sejam. Para seguir com nosso paralelo, tomemos o exemplo da recente edição “crítica” de Raízes do Brasil. Ao tomar por base não “Corpo e alma do Brasil” ou a edição princeps, mas o texto “definitivo” de 1969, impõe-se ao leitor uma ordem de leitura (e de interpretação) na qual o que possa haver de instigante ou comprometedor resta simultaneamente revelado e velado. Em comunidades acadêmicas menos ciosas de preservar seus mitos historiográficos, a filologia é colocada a serviço da crítica por meio da adoção de estratégias que em si nada têm de novas, mas cuja eficácia é comprovada. No caso da edição aqui resenhada de O conceito do político, as três versões do texto foram dispostas uma ao lado da outra, em colunas – como nas edições sinóticas dos Evangelhos, há séculos empregadas pela exegese bíblica. A visualização dasalterações se dá muito mais facilmente, o que, aliado àexcelente contextualização processual dos textos feita pelo organizador Marco Walter, o amplo e preciso aparato de notas explicativas e a inclusão do prefácio escrito por Schmitt em 1971 para a tradução italiana, abrem para os pesquisadores um arco significativamente mais amplo de possibilidades de leitura.
Neste derradeiro prefácio, são retomadas duas questões que talvez seja oportuno sublinhar porque, lamentavelmente, sua relevância não é menor no momento atual. Schmitt trata como um anacronismo, e, mais que isso, como um erro, “a identificação acrítica entre liberalismo e democracia” (p. 51). Democracia não teria a ver com a observância de e respeito a procedimentos, mas com a “[…] identidade entre dominadores e dominados, entre governantes e governados, entre os que mandam e os que obedecem” (SCHMITT, 1996, p. 230). Desnecessário insistir nas possíveis implicações de se conceber “democracia” dessa forma. O outro aspecto diz respeito à sua crença, originalmente exposta na introdução à edição de 1963, de que o “modelo clássico” de Estado teria acabado. A verdadeira política é política externa. Seu motor é o conflito e, no limite, a guerra. Quando, porém, uma pacificação cosmopolita, kantiana, se estabelece no plano externo, tudo o que resta seria a “política partidária” interna, num gradiente que se extende das formas “secundárias” às “parasitárias” do político. Quando o inimigo interno assume a preeminência sobre o externo, o horizonte último passa a ser a guerra civil.
Essa visão agonística tem seu epicentro, bem o sabemos, nas categorias amigo/inimigo. Como assinalou corretamente Böckenförde (2011, p. 369), Schmitt é convincente quando se lê O conceito do político numa chave analítico-fenomenológica. Pois ele não quer definir, nas descrever. A questão está em saber se podemos abdicar de uma abordagem de tipo normativo, como a de Max Weber, que estabelece três critérios para que se possa identificar o agente político “vocacionado”: aliar paixão, responsabilidade e senso de proporção (MATA, 2014). Na fascinação pelo político, é tão fácil nos esquecermos da política! Mas, felizmente, o mundo não é feito apenas de cientistas políticos e filósofos, e a imensa maioria das pessoas não está disposta a se guiar por máximas do tipo fiat contemplatio et pereat mundus. Uma caracterização à altura de nosso tempo precisa dizer qual é o telos da política. Sustentar, por exemplo, que toda religião assenta na oposição entre sagrado e profano não nos diz rigorosamente nada de substancial sobre a religião, e por que milhões, bilhões, veem nela uma necessidade vital. Conhecer algo a fundo, sobretudo aquilo que é produto da cultura e do agir humanos, é também dizer para que serve, pouco importa se nos referimos ao jogo, à ciência ou à política. Ao esvaziar o conceito de todo conteúdo e de toda pretensão normativa, Schmitt, sem dúvida, lhe deu uma enorme plasticidade – mas da qual é preciso desconfiar. Pois é justamente na determinação do que pode e deve ser uma boa política que o mago de Plettenberg nos deixa deliberadamente às cegas, a nós, que não vemos a plenitude do político na apoteose do princípio da inimizade. A julgar pelos critérios de Schmitt, no Brasil dos últimos anos, o político vai muito bem, obrigado. Quem ousaria dizer o mesmo da política?
Referências
BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Wissenschaft, Politik, Verfassungsgericht. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2011.
HABERMAS, Jürgen. Identidades nacionales y postnacionales. Madrid: Tecnos, 2007.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil: ensaio de psicologia social. In: COSTA, Marcos (org.). Sérgio Buarque de Holanda: estudos coligidos 1920-1949. São Paulo: Perseu Abramo: Unesp, 2011.
LILLA, Mark. A mente imprudente. Os intelectuais na atividade política. Rio de Janeiro: Record, 2017.
MATA, Sérgio da. Max Weber e a vocação da política. Correio Braziliense, 26 abr. 2014.
MOUFFE, Chantal. En torno a lo político. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007.
SCHMITT, Carl. Teoría de la constitución. Salamanca: Alianza, 1996.
TAUBES, Jacob. Ad Carl Schmitt. Gegenstrebige Fügung. Berlin: Merve, 1987.
Resenhista
Sérgio da Mata – Professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, MG, Brasil. Doutor em História pela Universität zu Köln, Alemanha. E-mail: maxweber1864@gmail.com Orcid: http://orcid.org/0000-0002-7963-6292
Referências desta Resenha
SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. Synoptische Darstellung der Texte. Berlin: Duncker & Humblot, 2018. Resenha de: MATA, Sérgio da. Todos os caminhos levam a Plettenberg? Reflexões a partir da edição crítica de O conceito do político. Anos 90. Porto Alegre, v. 27, 2020. Acessar publicação original [DR]
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