Depois das Caravelas, obra publicada na Coleção Relações Internacionais da Editora Universidade de Brasília, representa um trabalho de grande importância para as relações bilaterais entre Portugal e sua ex-colônia, o Brasil. Com seu enfoque nos últimos duzentos anos, o livro preenche uma grande lacuna na literatura acadêmica sobre as relações entre os dois países, que tende a focalizar, sobretudo no ano do V Centenário do Descobrimento do Brasil, o próprio descobrimento e o período colonial. O livro soma os esforços de scholars dos dois países, como que simbolicamente representando a nova qualidade das relações bilaterais. A obra contém duas partes. Na primeira (151 páginas) o historiador brasileiro Amado Luiz Cervo analisa as relações entre Portugal e Brasil no século XIX. Segue um capítulo sobre as relações culturais no século XIX, escrito pelas duas historiadoras cariocas Tânia Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira e Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves, ambas especialistas em história cultural do Brasil (30 páginas). A segunda parte do livro trata das relações bilaterais do início do século XX até os tempos mais recentes (122 páginas). O autor, José Calvet de Magalhães, é diplomata português e especialista em história diplomática do seu país. O livro conta ainda com uma apresentação, escrita por Dário Moreira de Castro Alves, que oferece, em 50 páginas, um resumo de seu conteúdo. Finalmente, são reproduzidos em anexo os três mais importantes tratados entre Portugal e Brasil.
Em seus capítulos, o livro apresenta uma certa diversidade de abordagens de ordem teórico-metodológica. A parte do Cervo é um trabalho bem sucedido na tradição da história das relações internacionais de Duroselle, tentando analisar forças mais profundas e grupos estratégicos dentro das duas sociedades que influenciaram a inserção internacional dos dois países, além de demonstrar o cotidiano da diplomacia. Diferentemente, os capítulos que compõem a segunda parte do livro, elaborados por Cavet, restringem-se aos limites de uma história diplomática tradicional, descrevendo principalmente, com muita paciência e com muito amor aos detalhes, a atuação das chancelarias e o conteúdo de tratados. O capítulo sobre as relações culturais no século XIX, localiza-se dentro dos paradigmas da história das idéias e da história intelectual e da literatura e podemos dizer que, de fato, convence. Esta diversidade, embora inspiradora, dificulta a leitura e a compreensão da obra. Seria bem-vinda uma melhor explicitação das vertentes norteadoras desses duzentos anos de relações bilaterais. Também o próprio genre do livro, sendo um estudo de relações bilaterais, impôs certas restrições. O trabalho, principalmente a segunda parte, teria sido muito beneficiado com a inclusão de mais elementos comparativos e com uma maior contextualização das relações bilaterais no cenário mais amplo da inserção internacional dos dois países.
Então, como construíram-se as relações entre Portugal e Brasil nos últimos duzentos anos e qual a natureza deste relacionamento? Na sua introdução, Dário Moreira de Castro Alves destaca que, “o relacionamento de Portugal com o Brasil foi, em sua essência, mais íntimo e entrelaçado do que qualquer outra metrópole européia e seus respectivos territórios coloniais”, baseando-se em “quatro elementos de valor perpétuo: […] sangue, língua, cultura e passado comum.” Os autores não desenvolvem, de maneira sistemática, esta idéia de excepcionalidade dessas relações. Pelo contrário, o livro demonstra que a “amizade e irmandade luso-brasileira”, que tanto inspirava os discursos dos políticos durante uma boa parte dos últimos duzentos anos, não se traduziu em uma cooperação especial e íntima que caracteriza, por exemplo, o relacionamento entre Grã-Bretanha e suas ex-colônias de povoamento (EUA e Austrália).
A leitura do livro permite a identificação de três períodos distintos no relacionamento entre Portugal e Brasil desde 1808. O primeiro período, que o autor Amado Cervo chamou, na ocasião da apresentação pública do livro, de “tempo da distância”, vai da Independência do Brasil até o início do século XX. Esses primeiros cem anos caracterizam-se por relações políticas irrelevantes e por três grandes contenciosos: questões financeiras e de reparações, a questão da moeda falsa destinada ao Brasil e a participação portuguesa no tráfico de escravos para o Brasil. O pano de fundo do abalo nas relações e das hostilidades entre os dois governos – fato que sufocou forças sociais que dariam mais densidade às relações – foi a profunda crise econômica que Portugal tinha que enfrentar com a perda do comércio transitário, devido à Independência brasileira e à hegemonia comercial britânica no século XIX. Cervo demonstra com muita clareza a importância desta questão e as suas repercussões no plano político e diplomático. Trata também, muito extensivamente, da imigração portuguesa para o Brasil, que era a mais numerosa na época e que estabeleceu um elo entre os povos, demonstrando, ainda, como a chamada grande naturalização de 1889 causou atrito diplomático.
O segundo período, chamado por Cervo de tempo da retórica, inicia com as comemorações do IV Centenário do Descobrimento (em 1900) e do Primeiro Centenário da Independência, estendendo-se até o duplo acontecimento da Revolução de Abril de 1974 em Portugal, que causou o fim do colonialismo português e o início da chamada política do pragmatismo responsável do Governo de Ernesto Geisel. Este período é marcado por um reencontro político entre os dois Estados, uma forte retórica de amizade, mútuas visitas de Chefes de Estado e a celebração de tratados, culminando com o Tratado de Amizade e Consulta de 1953. A retórica não pertence ao domínio do imaginário, do contrário, não teríamos Gilberto Freyre, cuja obra descreve os fundamentos desta relação especial. Calvet atribui muita importância à retórica diplomática de amizade e descreve com muitos detalhes as realizações neste processo de reaproximação. Além de ser informado minuciosamente sobre os tratados celebrados, o leitor aprende, por exemplo, passo a passo, sobre a corajosa travessia do Atlântico pelos dois pilotos portugueses, Cabral e Coutinho, por ocasião do Centenário da Independência, e a emoção e entusiasmo que esta bravura causou no público brasileiro. Até informações sobre a potência do motor do avião são fornecidas. Mas a reaproximação política e o Tratado de Amizade não evitaram atritos. O principal contencioso entre os dois países no período do pós-guerra referia-se à questão colonial portuguesa. Desafiando as tendências mundiais de descolonização e opondo-se militarmente ao desejo de autodeterminação dos povos, o regime salazarista insistiu na permanência do colonialismo português na África e esperava o apoio diplomático brasileiro neste, bem como na questão das possessões na Índia. A política externa brasileira oscilou entre o apoio a Portugal e manifestações anticolonialistas, particularmente nos governos de Jânio Quadros e João Goulart.
A trajetória das relações bilaterais conduz, segundo os autores, a um happy end, que se deve mais ao lado português do que ao brasileiro. Com o fim do colonialismo português, a democratização dos dois países e, principalmente, com a transformação de Portugal em um país similar aos pequenos países do mundo desenvolvido, a relação entre Portugal e Brasil chegou à maturidade no final do século XX, caracterizando-se pela inversão do fluxo migratório, pelos altos investimentos do empresariado português na economia brasileira e pela celebração de um moderno Acordo de Amizade, Cooperação e Consulta entre os dois governos.
Resenhista
Wolfgang Döpcke
Referências desta Resenha
CERVO, Amado Luiz; CALVET DE MAGALHÃES, José. Depois das Caravelas. As relações entre Portugal e Brasil, 1808-2000. Brasília: EdUnb, 2000. Resenha de: DÖPCKE, Wolfgang. Revista Brasileira de Política Internacional, v.43, n.1, 2000. Acessar publicação original [DR]
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