Depois da utopia: A história oral em seu tempo – SANHIAGO (RTA)
SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. São Paulo: Letra e Voz, 2013. Resenha de: SCHÜTZ, Karla Simone Willemann. Um campo em (constante) reflexão. Revista Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 6, n.13, p. 240 ‐ 245, set./dez. 2014.
O campo da História oral chegou de maneira efetiva ao Brasil em meados da década de 1970, e desde este momento até a contemporaneidade muitas transformações podem ser visualizadas nele como frutos de recorrentes discussões epistemológicas e metodológicas entre seus adeptos, que buscaram através delas afirmar este campo e combater as críticas oriundas de muitos historiadores céticos em relação à utilização de fontes orais nos trabalhos historiográficos.
Advindo de mais um destes momentos de auto‐reflexão aos quais o campo da História oral se lança, o livro Depois da utopia: A história oral em seu tempo pretende, nas próprias palavras de seus autores, “pesar o que o tempo filtrou” (MAGALHÃES; SANTHIAGO, 2013, p.10). Seus organizadores, juntos, são responsáveis pela fundação, em 2009, do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Oral e Memória – Gephom –, situado na Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), responsável pelo desenvolvimento de pesquisas que lançam mão da História oral e que se dedica a pensar questões pertinentes a teoria a metodologia deste campo e seus encontros com a memória.
Ainda vale lembrar que ambos foram orientados em suas teses de doutorado defendidas na USP pelo historiador José Carlos Bom Meihy, nome de destaque dentro da História oral brasileira e um dos idealizadores do livro intitulado (Re)introduzindo a história oral no Brasil, lançado há quase uma década, em 1996, e que tem uma perspectiva que se assemelha muito a que guia Depois da utopia. A publicação da década de 1990 é resultado do I Encontro Regional de História Oral Sudeste/Sul (1995), entendido como um marco importante nos rumos que haviam tomado os pesquisadores da História oral no Brasil. Como está colocado no próprio título da obra, estes percursos se pautaram numa espécie de “reinvenção” daquele campo que havia se instalado em terras brasileiras durante a década de 1970. Naquele momento – a década de 1990 ‐ foram percebidas mudanças na inspiração destas pesquisas, que se desgarraram da exclusividade temática norte‐americana e voltaram‐se para as relações entre memória e História, para os modelos biográficos, para o desenvolvimento de uma história dos “vencidos”, da História do Tempo Presente, e para o caráter transdisciplinar da História oral.
Muitos destes tópicos ainda podem ser encontrados no livro de Magalhães e Santhiago (2013), além de alguns dos autores participantes daquela primeira publicação ‐ inclusive a organizadora Valéria Magalhães, que figura com um artigo escrito em conjunto com outros quatro pesquisadores. Olga Rodrigues de Moraes von Simson e Alice Beatriz da Silva Gordo Lang, sociólogas articulistas de (Re)introduzindo a história oral no Brasil, reaparecem na publicação de 2013 com capítulos que pretendem fazer um balanço do campo e de seus trabalhos desde 1990 até a contemporaneidade. Nesse sentido, vale mencionar que Depois da utopia está organizado em 5 temáticas – Matéria: Memória; O método em seu tempo; Auto‐olhares; As histórias e seus usos; Memória é cultura ‐, e no total conta com 15 artigos que ressaltam a índole transdisciplinar vinculada à História oral e quem vem, nas ultimas décadas, estabelecendo um diálogo profícuo com outros campos das ciências sociais: jornalistas, sociólogos e historiadores brasileiros e estrangeiros, reunidos para pensar a “história oral em seu tempo”.
Como mencionado anteriormente, muitos dos assuntos em voga na década de 1990 ainda estão presentes na obra objeto desta resenha, como é o caso do lugar que ocupa e das formas que assume a memória nas pesquisas que lançam mão da História oral, tópico que toma toda a parte inicial do livro, com destaque para o artigo da italiana Luisa Passerini, nomeado Memória e utopia em um mundo global. Nele, a autora apresenta a relação entre memória e utopia como chave para entender os processos de formação de subjetividades e identidades no mundo contemporâneo marcado pelo trânsito de pessoas, que migram e transitam ao redor do globo em função de motivações tanto econômicas quanto culturais. Passerini caracteriza a memória como algo que se direciona ao passado, enquanto a utopia se direcionaria para o futuro, estando o segredo da relação entre elas no encontro que estas efetuam na dimensão do presente. De maneira geral, a sugestão que Passerini oferece, não só aos oralistas, mas também àqueles que são adeptos da História do Tempo Presente, é ampliar a atenção dedicada às subjetividades presentes na memória, problematizando o papel das utopias individuais não universalizantes no presente. Passerini (2013), acerca destas multiplas temporalidades, assim afirma: “Estou convencida que hoje, além de explorar o passado para olhar para as formas de memórias esquecidas, precisamos também explorar o presente, a fim de encontrar traços do futuro” (p.24).
As outras principais questões que saltam aos olhos nessa publicação de 2013 estão relacionadas sobretudo as temáticas e problemáticas que surgiram no campo desde a primeira “virada” na década de 1990. Dentre elas estão a utilização crescente das chamadas “novas mídias” em trabalhos de História oral; dos testimonios e o cuidado com os usos políticos de entrevistas orais; e da História Pública, que no cenário historiográfico brasileiro dos últimos anos vem sendo tema de inúmeros eventos e publicações.
O papel das “novas mídias”, sobretudo no formato audiovisual – blogs, redes sociais, Youtube ‐ na conjuntura historiográfica atual, aparece pontuado em diversos artigos do livro. Entretanto, dois deles – de autoria de Mônica Rebecca Ferrari Nunes e Ana Maria Mauad ‐ se propõem a discutir com maior detalhamento os limites e possibilidades que se fecham e se abrem tanto em relação a função de mediadoras que estas estabelecem entre a memória e os pesquisadores, quanto no que tange à utilização destas na própria produção da narrativa histórica – tema candente que possibilita aos historiadores lançar novos olhares sobre estes “suportes da memória” e também difundir o conhecimento histórico por meio de diferentes formatos. Vale lembrar ainda que a disseminação da tecnologia audiovisual aparece nesse contexto como fator essencial para entender esse novo horizonte de possibilidades, num cenário muito parecido com aquele que se refere ao momento inicial da História oral e a popularização do gravador de voz portátil: novos suportes fomentam novas discussões.
O segundo tema aqui relevante se refere à noção de testimonio, tema de discussão da historiadora Daphne Patai e termo que remete aos depoimentos cedidos por pessoas consideradas à margem de determinada sociedade e que tenham vivenciado experiências traumáticas de sofrimento. Apesar de seu formato originalmente de “entrevista oral”, os testimonios são divulgados em forma impressa por iniciativa de algum intelectual, normalmente engajado politicamente mais “à esquerda” (de acordo com Patai). Tais depoimentos trazem consigo traços marcantes da ação política. Nesse sentido, Daphne alerta para seus usos por parte dos historiadores e, principalmente, para a transformação destes no próprio discurso histórico, sem que estes tenham passado pela mediação de um historiador, ou problematizados levando‐se em conta seu contexto de produção e difusão. Este tema está intimamente relacionado ao crescimento do espaço que a “testemunha” ganhou nos trabalhos historiográficos e na própria sociedade, a ponto da historiadora Annette Wieviorka caracterizar a segunda metade do século passado como a “era da testemunha”. Como exemplos desse fenômeno aparecem, com destaque, os sobreviventes do holocausto, em contexto europeu, e na América do Sul, as vítimas das ditaduras militares vigentes no século XX. Portanto, a partir do que expõe Patai, pode‐se ponderar acerca do próprio ofício historiador e o imperativo de observar estas falas “à distância”.
A história pública, por sua vez, pode ser considerada um “velho tema novo” que ganha espaço na cena historiográfica brasileira dos últimos anos, mas que, na verdade, já podia ser visualizado em iniciativas que aludem ao próprio momento em que a História oral aqui dava os seus primeiros passos. Ricardo Santhiago dedica um capítulo inteiro à tentativa de traçar em linhas gerais um pouco da trajetória deste campo, buscando pontuar iniciativas de recolhimento de entrevistas orais que escapavam ao circuito universitário, considerado, por excelência, o espaço onde a História oral floresceu no Brasil. Dentre estas iniciativas se destacam o Museu da Imagem e do Som, com várias unidades ao longo do país e que já no início dos anos 1970 se dedicava a constituir um acervo com entrevistas visando à consulta de pesquisadores futuros; e o Museu da Pessoa, fundado no início de 1990 e voltado a coleta de histórias de vida de pessoas dos mais variados segmentos sociais. No atual contexto, onde estas iniciativas são cada vez mais recorrentes, percebe‐se que a discussão sobre o crescimento dos debates acerca da história pública estão interligados a temas como a divulgação do conhecimento histórico produzido academicamente, a história popular e aos usos do passado – debates já, de certa forma, estabelecidos, mas ainda muito pertinentes.
Como nota‐se, o campo da História oral ainda dedica muito espaço ao debate acerca da sua natureza e de seus métodos. O livro (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil, da década de 1990, aqui colocado como objeto de comparação, e Depois da utopia, mostram que o caminho percorrido por este campo conservou muitos pontos de debate, mas, naturalmente, ao incorporar novas temáticas, sentiu a necessidade de também problematizar os limites e possibilidades ligados à estes novos métodos e objetos, sendo as “novas mídias”, os testimonios e a história pública apenas alguns deles. Enfim, a auto‐reflexão parece ser característica intrínseca ao campo, que apesar de plenamente estabelecido ‐ dado o números de trabalhos historiográficos que lançam mão das fontes orais atualmente ‐ permanece se “reinventando”.
Referências
MEIHY, José Carlos Sebe Bom (Org.). (Re) Introduzindo a História Oral no Brasil. São Paulo: USP, 1996.
SANHIAGO, Ricardo; BARBOSA, Valéria (Org.) Depois da utopia: A história oral em seu tempo. Letra e Voz: São Paulo: Letra e Voz, 2013.
Karla Simone Willemann Schütz – Mestranda do Programa de Pós‐Graduação em História da Universidade do Estado de Santa Catarina. Brasil. E-mail: karlawschutz@gmail.com.