Demons and Spirits in Ancient Egypt | Carolyn Graves-Brown

O que são “demônios”? Apresentação da problemática

A questão coloca-se quando atestamos o fato de que a língua egípcia não fornece um termo próprio para a definição de “demônio” (TE VELDE, 1975, 980). Representando uma definição “tradicional” do termo, Te Velde definiu “demônios” como uma categoria de entidades espirituais diretamente ligadas ao Caos. Todavia, os critérios adotados pelos egiptólogos para a construção de um conceito de demônio derivam da interpretação tardo-antiga e cristã do termo, que os opõe ao conceito cristão de “anjo” (AHN, 1997) – também inexistente na língua egípcia.

A definição da categoria pela Egiptologia assumiu como premissa a definição platônica do daimôn (Symposium 202E), onde demônios eram “mortais” e “criados” em oposição aos deuses. Por outro lado, todos os deuses egípcios eram percebidos como mortais e criados, o que inviabiliza imediatamente essa analogia. Ainda assim, a concepção platônica de “demônios” como seres intermediários entre o mundo mortal e o mundo divino é bem apropriada ao caso egípcio, uma vez que o debate entre o existir e não-existir é para o pensamento religioso egípcio mais relevante do que o debate entre bem e mal (LUCARELLI, 2010, 2).

Assim, quando se propôs originalmente essa categoria, os exemplos comummente representativos de demônios eram personificações de forças malignas, como por exemplo, a serpente Apópis, que tenta destruir a barca solar em sua jornada noturna pelo submundo, ou a monstruosidade Apepi, que figura na iconografia do julgamento das almas (Livro dos Mortos, Spell 125) pronto para devorar os espíritos que fracassassem no teste de pesagem do coração, ou ainda forças responsáveis pelas doenças, como Sekhmet – que nada mais é do que um aspecto da deusa Hathor (HORNUNG, 1997).

Essa identificação dos demônios egípcios a forças necessariamente nocivas sofreu transformações ao longo de toda uma historiografia decorrida desde os anos 1970. Os aspectos negativos de uma suposta “natureza” dos demônios não foi negada, mas posta em perspectiva. Atualmente o papel dos demônios em relação à humanidade tende a ser mais ambivalente e acaba, por vezes, dependendo do contexto. Por exemplo, no Livro da Vaca Celeste (HORNUNG, 1997), Sekhmet é invocada pelo deus Rá contra a humanidade para punir a impiedade dos mortais, o que lhe garante um status de um instrumento da justiça divina. O hipopótamo Taweret e o anão Bés, por outro lado, são intrinsecamente benfazejos, posto que protegem as grávidas e os bebês, e as suas figuras são frequentes em amuletos protetores.

O pensamento religioso egípcio admitia que o universo era habitado pelos seres vivos, bem como espíritos de seres humanos desencarnados, deuses e uma vasta gama de entidades espirituais menores (HORNUNG, 1999). Essa categoria heterogênea de entidades espirituais menores está integrada a uma coletividade que se convencionou denominar “demônios” pela Egiptologia. Assim, atualmente, demônios são uma categoria heterogênea que inclui espíritos (Akh.w), que podem ser compreendidos como “almas” no sentido cristão de uma contraparte espiritual (consciência, memórias, personalidade) do homem; fantasmas ou assombrações (mtw) – literalmente “mortos”, ou seja, almas penadas, vagando por razões diversas; e também forças ctônicas, como os Akry.w descritos nos Textos dos Caixões (II, 102 E, Spell 105); ou ainda, os 42 juízes que presidem o julgamento dos mortos descrito no Livro dos Mortos (Spell 125).

Apesar da ausência de uma ontologia formal capaz de diferenciar deuses e demônios, os egípcios eram capazes de reconhecer empiricamente esses seres espirituais intermediários. De fato, existe uma rica nomenclatura egípcia para esses seres, frequentemente denotando as suas inclinações morais, atributos físicos e jurisdição das suas atuações. Por exemplo, há demônios seguidores (jmj.w x.t) e mensageiros (wpwtj.w), geralmente associados ao séquito de um deus (nTr). Há também toda uma gama de “demônios viajantes, ou andarilhos”, como os xAjtj.w, espíritos da noite, responsáveis por doenças e outros também com uma atitude mais agressiva contra os humanos, incluindo pesadelos e possessão (TE VELDE, 1975, 980).

O estudo sistemático da demonologia egípcia teve início com uma coletânea de ensaios (KOUSOULIS, 2011) e com o “The Ancient Egyptian Demonology Project: Second Millennium BCE”1 sediado na Universidade de Swansea, no Reino Unido, desde 2013. Atualmente, demônios são definidos como entidades que habitam o limiar entre as esferas da Ordem (Ma’at) e do Caos (Isf.t). A priori, demônios não se ocupam com os assuntos da humanidade. As ocasiões em que as duas esferas interagem são completamente dependentes de um contexto específico. É o contexto que dita como um demônio reagirá em sua interação com mortais.

Os chamados “demônios guardiões” estão temporariamente ou eternamente subordinados a um poder divino e são associados a uma função de vigilância de espaços, tesouros, portais, múmias, etc. A sua função de vigilância previne a profanação de espaços sagrados, contaminação de locais purificados e até mesmo a invasão de ladrões. Um guardião está “preso” ao espaço que protege, seja ele no mundo material ou imaterial (EDWARDS, 1960; LEITZ, 2002, v. II, p. 506). Um exemplo da ação desses demônios guardiães está bem descrita no “Primeiro Conto de Setna” (P. Cairo 3046). O protagonista, príncipe Setna, tem de vencer uma partida de senet com a múmia que vigia uma câmara funerária, numa disputa do lendário livro de magia do deus Toth. Os fantasmas de Naneferkahptah, sua esposa Ahwer e o filho deles, castigados por Toth e mortos de forma trágica, são convertidos em demônios guardiões, fadados a protegerem o livro que tentaram roubar, pela eternidade. O exemplo também é pertinente no sentido de comprovar que espíritos humanos podiam também se converter em demônios.

Graças ao seu comportamento protetor, essa categoria de demônios é comummente percebida como benevolente. Um exemplo emblemático dessa categoria está bem retratada na personagem literária da misteriosa serpente “Governante de Punt”, do conto do Náufrago (P. Hermitage 1115). No final da história ela solicita preces como retribuição à hospitalidade dada ao protagonista, logo que este retornasse ao Egito.

De fato, diversos demônios guardiões chegaram a ser cultuados durante o período greco- -romano, como, por exemplo, a esfinge Tutu (KAPER, 2003, p. 61-62), alcançando o status de divindade. Além disso, na Tebas Ptolemaica existiu um culto aos temidos xAjtj.w (que se enquadradiam na categoria de demônios viajantes), possivelmente para que se aplacasse os seus instintos agressivos contra a humanidade (THISSEN, 1989, p. 30-33). A adoração de demônios “divinizados” produziu também um estranho fenômeno de criação de nomes próprios teofóricos (profiláticos) na língua demótica, dedicados a essas entidades, como por exemplo: pa-nA.w-xT > pa-nA-xT.w (e variantes) – protegido pelos que cortam (o mal), pa-nA-xpj > pa-nA-xts (e variantes) – protegido pelos que matam (os inimigos) (LÜDDEKENS et al., 1980, p. 382-383).

Por outro lado, os “demônios viajantes” estão livres para interagirem igualmente com os mundos físico e intangível, ocasionalmente atuando como mensageiros de deuses ou executores da sua vontade. Os egípcios chegaram a elaborar calendários identificando os dias mais suscetíveis à atuação de demônios benfazejos e malfazejos (LEITZ, 1994, p. 244-255). Essa associação é tão clara no pensamento egípcio que no papiro médico Kahun (VI, col. I, linha 20; col. II, linha 47), a expressão “doença incurável” é sinônima de “malfeitor” (bTw), (LOPES, PEREIRA, 2021, 7; 13-14; 17-18), uma palavra para “demônio”, conforme se atesta pelas entradas [10237 – 10241] do dicionário de Hannig (2006, 282).

Entendia-se que a atuação dos demônios ditos maléficos ocorria em decorrência de um afastamento individual de “ma’at”: a grande força mantenedora da ordem cósmica, manifestada no mundo físico através da piedade, virtude e comportamentos moralmente condignos com o amor (e proteção) das divindades (RIZZO, 2001). Segundo o pensamento religioso egípcio, eles eram responsáveis por todos os infortúnios que recaem sobre a humanidade: desde acidentes domésticos e azar, às grandes pragas e catástrofes naturais, seriam decorrência de um afastamento da esfera de proteção de ma’at: tornando indivíduos suscetíveis à atuação de isft. (RIZZO, 2001).

Deuses, demônios e espíritos em debate

A obra em análise (GRAVES-BROWN, 2018) contribui para o desenvolvimento da ontologia egiptológica da categoria dos “demônios”, ainda em processo de formação. A sua proposta inova ao estabelecer um diálogo com a cultura material. Até o momento a documentação estudada estava restrita à produção de textos literários e não-literários, incluindo epigrafia e papirologia. Isso restringe a abordagem do fenômeno a uma perspectiva das elites egípcias. Ao mesmo tempo que essa documentação oferece um testemunho escrito das crenças religiosas da elite letrada egípcia, ela também pode ocultar preconceitos contra crenças populares. É importante ter-se em mente que aqui a questão é a possibilidade de um enxoval funerário pertencente a uma elite social e económica eclipsar crenças e tradições populares, baseadas em oralidade. O que essa cultura material nos lega aos tempos atuais são o reflexo de uma “versão oficial” da espiritualidade, mitos e tradições religiosas do antigo Egito.

Dito isso, a obra dedica-se ao estudo do espólio arqueológico da coleção egípcia do Egypt Centre da Universidade de Swansea, fundado em 1998, a partir de doações de outras coleções. A Universidade de Swansea é referida como a principal instituição comprometida com o estudo de demonologia egípcia. Os seus egiptólogos participaram ativamente na preparação dessa obra. Assim, todas as traduções e transliterações da obra são de autoria acadêmica, o que garante a qualidade da análise textual do corpus.

A obra problematiza as diferenciações entre deuses, demônios e os espíritos dos mortos. Ela propõe uma distinção mais clara entre demônios e os espíritos dos mortos. Existem diversos pontos em comum entre os dois grupos: eles habitam no mesmo espaço no além (Duat), são considerados “divinos” e são referidos ao mesmo tempo em encantamentos apotropaicos. Entretanto, argumenta-se que os espíritos dos mortos necessitam do “Ritual de Abertura da Boca” para reviverem no além. Creio que essa argumentação seja frágil porque se acreditava que os espíritos de seres humanos podiam se transformar em demônios (KOUSOULIS, 2011, p. x -xi; LEITZ, 2004, p. 395).

Outro ensaio de revisão de classificações é a proposta do grupo dos “quasi-daemons” (semi- -demônios), que agruparia os reis e animais mumificados. Eles seriam divinos por “hospedarem” uma divindade, mas não por qualquer característica intrínseca da sua natureza. Essa qualificação é nova e assume-se como contraditória ao que normalmente se atribui à natureza divina da realeza egípcia (LEITZ, 2004, p. 395). Dificilmente essa proposta de reclassificação será aceita no caso do rei. Por outro lado, ela pode ter maior apelo em relação aos animais mumificados. Há uma diferença de origem transcendente entre os dois casos: o animal sagrado é um mero receptáculo, ou seja, um ser vivo utilizado como um emissário da divindade. Assim, pode-se dizer que uma criatura mortal “hospedou” temporariamente uma divindade, mas isso não alterou em absolutamente nada a sua essência mortal. Por outro lado, o faraó é, pela sua própria natureza, um deus vivo, que está deliberadamente encarnado para exercer um mandato temporário na terra e logo a seguir retornar para a sua esfera divina de existência.

O ponto forte da obra é o estudo dos 5000 objetos dessa coleção, que permitiu o foco sobre entidades espirituais menos conhecidas. Contudo, uma vez que o objetivo da obra é estudar um museu específico, o corpus trabalhado e as conclusões alcançadas estão limitadas às cronologias existentes naquele museu2. Um ponto fraco da obra é o pouco diálogo promovido entre o acervo analisado com coleções externas, o que acaba por limitar o potencial alcance da análise da obra. Um outro problema é a ausência de dados sobre proveniência de alguns objetos, um problema comum a todos os estudos de coleções museológicas.

Os estudos de caso da obra são interessantes. O exame de um colar de contas (W9) permitiu a identificação de um demônio “tipo-Bés”3. Os pés de um berço (W2052a) apresentam traços de um demônio “tipo-hipopótamo” (ambos os tipos eram populares a partir do Reino Novo) e uma pequena placa (período greco-romano) ilustrando um sincretismo de Isis-Thermouthis e Agathosdaimon (W56).

A decoração e inscrições de sarcófagos, mesas de oferendas, estelas funerárias, vasos e papiros mágicos e/ou funerários complementa a análise de fontes. O Livro dos Mortos é particularmente bem explorado como fonte para a documentação de espaços da Duat, demônios executando as suas funções como guardiões ou ameaças a serem combatidas. É particularmente interessante a preocupação em mostrar a transformação do estatuto dos demônios ao longo do tempo, comparando o status dos deuses, demônios e espíritos nos diferentes recortes temporais, culminando na piedade e pensamento religioso egípcio durante o período greco-romano.

Trata-se de uma obra importante para o estudo do pensamento religioso egípcio, produzida com uma abordagem diacrônica, reunindo num diálogo dinâmico uma excelente documentação textual e cultura material.

Estrutura da obra

O livro é dividido em oito capítulos, incluindo a sua conclusão. O primeiro capítulo apresenta um estado da arte e a problemática endereçada pelo livro, que é a tentativa de estabelecer uma linha que separe os espíritos dos mortais e os demônios enquanto categorias ontológicas.

O segundo capítulo dedica-se à contextualização da construção de uma imagem da vida após a morte e de uma descrição dos habitantes do Além, a partir do relato de textos funerários. O capítulo seguinte estabelece um diálogo entre os demônios e os artefatos onde eram retratados, normalmente objetos mágicos. Discute-se toda uma questão a respeito de continuidades dessa iconografia, conforme a discussão avança ao longo das cronologias. A proposta do capítulo quatro é discutir uma classe de demônios associados à proteção do lar, o que implica num debate acerca de como o gênero poderia afetar as classes de demônios.

Segue-se então um capítulo específico para o debate sobre os espíritos dos mortos. Retratados como os habitantes da Duat, esses espíritos dividem espaço com os deuses e com certas categorias de demônios. Essas interações são discutidas, bem como as relações entre essas categorias. O Sexto capítulo aborda a presença de demônios nos caixões, no Livro dos Mortos e as suas relações com o céu estrelado e os arcanos celestes. O sétimo capítulo discute a possível existência de uma categoria de “semi-demônios”, que incluiria animais mumificados e a própria figura do faraó, ambos cultuados como divindades após a morte.

O último capítulo apresenta uma conclusão baseada na continuidade cultural e cronológica no tocante ao que diferencia demônio e não-demônio.

Notas

1 Disponível em: http://www.demonthings.com/ (Portal criado em 2016).

2 Embora a coleção cubra todas as cronologias da história egípcia, estuda-se a amostragem do museu. Assim, o corpus não permite comparações consistentes ou uma análise quantitativa.

3 Também identificado nos pendentes W961p e W1156; no sistrum W553. Há diversos outros casos de objetos e fragmentos cerâmicos retratando Bés, incluindo uma possível inédita contraparte feminina sua (p. 36 ff.).

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Resenhista

Ronaldo Guilherme Gurgel Pereira – Investigador da Universidade Nova de Lisboa. Doutor em Egiptologia (Universidade de Basileia, Suíça). E-mail: ronaldo.gurgel@yahoo  https://orcid.org/0000-0002-8457-6220


Referências desta Resenha

GRAVES-BROWN, Carolyn. Demons and Spirits in Ancient Egypt. Cardiff: University of Wales Press, 2018. Resenha de: PEREIRA, Ronaldo Guilherme Gurgel. Debatendo o conceito egiptológico de “demônio”: definições, evidências e continuidade. Anos 90. Porto Alegre, v. 28, e2021501, 2021. Acessar publicação original [DR]

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