A motivação do Dossiê Democracia Global e Instituições Internacionais, a estampar o presente número da Revista Monções, nasceu do seguinte diagnóstico: o debate a respeito da democratização da política internacional é, definitivamente, algo que se impõe atualmente, não sendo facultada às discussões sobre Relações Internacionais no Brasil a opção de passar-lhe ao largo. De um lado, a despeito de todas as crises e turbulências contemporâneas, a democracia como regime de governo permanece disseminada pelo mundo. De outro lado, nunca antes foi tão aguda a consciência de suas limitações empíricas.1 Diante disso, o Dossiê representa um chamado à avaliação crítica e reflexiva do fenômeno da democratização da política internacional a partir de diversos ângulos analíticos. Seu objetivo central é compreender as formulações, as reformulações e os limites das vias promovidas pelos Estados, pelas instituições internacionais e outros atores não estatais para o exercício de uma gestão da governança global mais plural e aberta – e, num sentido bastante peculiar, mais “democrática” – em meio às complexidades, desigualdades e instabilidades impostas pelas condições de “anarquia estrutural”.
A partir da década de setenta, tornou-se frequente nas reflexões sobre a política internacional a interpretação do mundo calcada na premissa da anarquia sistêmica (Bull, 1977; Waltz, 1979; Keohane, 1984; Wendt, 1996). Sua premissa é que em um ambiente no qual os Estados representam a autoridade suprema dentro de seus respectivos territórios um governo mundial é uma impossibilidade. Trata-se de uma decorrência do princípio moderno da igualdade soberana entre as nações. Assim, se não há uma instância superior aos Estados, prevalecerá uma estrutura anárquica.
Esse sistema internacional moderno, baseado na ideia de soberania territorial e no relacionamento jurídico horizontal entre os Estados (em oposição à lógica verticalizada e hierárquica do âmbito doméstico entre governantes e governados), teve a sua própria dimensão política questionada. Waltz (1979) defendia que o sistema internacional moderno era decorrência de uma balança de poder, ou seja, ele não seria resultado de escolhas políticas deliberadas, mas de um equilíbrio atingido entre os Estados, os quais, em razão de suas necessidades básicas, se moveriam pela sobrevivência nacional e, assim, se constrangeriam mutuamente.
Essa visão da política internacional foi sendo questionada e nuançada com o decorrer do tempo e ao longo dos debates e mudanças pelas quais passaram os estudos internacionais. É fato que ainda hoje não se reconhece uma instância superior aos Estados. Entretanto, já é possível visualizar nichos de autoridade concorrentes com a soberania estatal, que passam a incidir sobre os rumos da realidade internacional. Essa fluidez da autoridade política foi chamada de “governança sem governo” (Rosenau; Czempiel, 1992; Young, 1999). Nesse caso, vale esclarecer, governo refere-se às atividades levadas a cabo por uma autoridade formalizada, pelo poder de polícia que garante a implementação de políticas. Já governança concerne às atividades baseadas em objetivos compartilhados, que podem ou não derivar de responsabilidades jurídicas e formalmente prescritas e não necessariamente dependem, para sua implementação, de poder de polícia. Assim, governança e governo não são sinônimos e, tal como discutido por Rosenau e Czempiel (1992), a governança é um fenômeno mais amplo do que o governo, não estando por ele delimitada.
A essa complexidade de uma governança global sem um governo mundial se junta o debate acerca da legitimidade política nas relações internacionais. O ponto aqui é o seguinte: se existem, de fato, indícios de uma “governança sem governo” em escala mundial, de onde ela extrai a sua autoridade legítima? A partir dessa indagação, percebe-se que se, de um lado, o regime democrático tornou-se fonte de legitimidade dentro dos Estados, de outro lado, permanecem baixas as expectativas de que o sistema moderno de Estados funcione balizado pela fórmula democrática. Diante dessa dificuldade estrutural de injetar lógicas democráticas na política internacional, a pergunta que perpassa não apenas este texto de apresentação, mas a própria inciativa de elaboração do Dossiê, é: será possível conceber interações políticas democráticas em um sistema de Estados territoriais e soberanos?
Na conjuntura contemporânea das relações internacionais, o surgimento de tópicos efetivamente globais, que detêm potencial para afetar todo o planeta, passou a exigir novos tipos de política pública, os quais impõem obstáculos ao modus operandi dos tradicionais Estados nacionais. São questões que demandam olhar transfronteiriço, já que suas causas e efeitos já não se circunscrevem necessariamente mais a Estados ou regiões específicas. E é daí que emergem as reivindicações por uma governança global alinhada à fórmula democrática, uma das questões centrais deste Dossiê.
Assim, a complexidade colocada pela anarquia estrutural às relações internacionais conduziu as discussões sobre a ordem global contemporânea para o conceito de governança. Whitman (2005) debate suas características, reconhecendo que governança pode ser uma função social centrada na tomada de decisões coletivas sobre dilemas compartilhados. Essa governança envolve atividades de governo, mas não deve ser restrita apenas a elas; engloba outros canais para a produção de resultados, sendo, assim, necessárias atividades administrativas (governing) de agentes políticos, sociais, administrativos, econômicos, sempre como produtos da deliberação, seja ela pública ou privada. Governança também pode ser compreendida como um conjunto de atividades sociais, políticas e administrativas que objetivam conduzir, gerenciar e controlar sociedades. Essa perspectiva alcança mais do que uma dinâmica simplesmente estatal, sendo, desse modo, ontologicamente distinta do conceito de “governo” (Whitman, 2005).
Em cada uma das perspectivas observadas, os problemas concernentes à governança consistem no incremento do número de atores independentes e com poder de veto. Portanto, requisitos comuns e regras são essenciais para a produção de bens coletivos, ainda que diante da variedade de demandas possíveis. Dessa forma, Whitman (2005) afirma que a governança tem, primeiramente, uma característica multifacetada, e, segundo, que ela não pode estar circunscrita ao Estado-nação, o que faz com que ela se direcione para o exterior, em interações globais, nas redes transnacionais.
As organizações internacionais multilaterais ocupam espaço central da governança global, como evidenciam os artigos deste Dossiê. Para Cooper et alii (2008), o desenvolvimento de instituições multilaterais é a manifestação da prevalência da perspectiva trans-soberana. Dadas suas capacidades singulares de promover cooperação e coordenação política, as organizações internacionais colocam-se como resposta para os desafios colocados pela interdependência. Para compreender o fenômeno da governança global institucionalizada, é preciso avistar os desenhos institucionais e, especialmente, analisar se essas instituições são, de fato, promotoras de responsividade, participação e incentivos às práticas da governança pactuada (Keohane, 2002).
Ao se colocarem nessa posição da governança, as organizações internacionais passam a ter um papel importante no gerenciamento global. A capacidade de fomentar arcabouços institucionais ligados à produção de informação, padronização de comportamentos e promoção de conexões entre temáticas (issue-linkages) converte as organizações internacionais em variáveis intervenientes relevantes para o alinhamento de expectativas e centralização de políticas supranacionais (Botcheva e Martin, 2001; Abbott e Snidal, 1998; Axelrod e Keohane, 1985).
A partir do momento, portanto, que a governança passa a ser gerida por tais agentes, começa a surgir o debate a respeito da qualidade dos mecanismos gestores. No fundo, surge a busca por uma adjetivação do conceito, e daí emerge o vínculo normativo entre a realidade internacional e a democracia. A democracia passa a frequentar, assim, a ideia do que seria uma governança considerada boa. “Sub-Saharan Africa: from crisis to sustainable growth” é o título de um relatório de 1989 do Banco Mundial no qual primeiramente se evoca a ideia da “boa governança”. Isso estava ligado, naquele momento, vale frisar, às pressões por ajustes estruturais da economia, por diminuição da intervenção estatal na esfera econômica, por redução da dimensão dos setores públicos, e em favor de uma maior eficiência gerencial, baseadas nas prescrições do livre mercado (Najem, 2003).
Existia, assim, um projeto universalista dos processos de governança nos Estados, manifesto principalmente na ênfase da liberalização econômica e política, as quais estariam estruturadas em prol da democracia liberal. A visão de Kofi Annan, então Secretário-Geral da Organização das Nações Unidas, reafirma esse projeto. De acordo com ele, boa governança seria “assegurar o respeito aos direitos humanos e o império da lei, o fortalecimento da democracia, a promoção da transparência e a capacidade de administração pública” (apud Weiss, 2000, p. 797). Desse modo, a questão da governança não estaria vinculada somente à eficiência de suas políticas no espaço global, mas também à legitimidade. Tal legitimidade seria decorrente de maior participação e incidência de atores transnacionais e do espraiar da democracia pelos Estados nacionais.
Conceber modos e vias de implementar a lógica democrática na esfera internacional gerou diferentes respostas teóricas e conceituais. Marks (2001), por exemplo, estruturou uma segmentação tripartite dos projetos para democratização da governança global, reunindo-os em: (1) governo mundial, (2) democracia pannacional e (3) democracia cosmopolita. O primeiro agrupamento relaciona-se à possibilidade de construção de um Estado democrático global; o segundo, à soma de todos os regimes democráticos que povoam o mundo; e o terceiro concilia traços dos dois primeiros, vinculando a democratização incremental no nível doméstico dos Estados ao aparecimento de instituições transnacionais e supranacionais com condição de democratizar a política internacional contemporânea.2 Já Marchetti (2012) dividiu as abordagens contemporâneas em transnacionais e cosmopolitas.
Tratemos brevemente dos argumentos das abordagens tradicional e contemporânea, tentando contemplar variadas perspectivas que reduzem o papel do Estado nacional na viabilização efetiva da democratização da política internacional.
Aportes tradicionais da questão da “democratização da governança mundial” tendem a se focar no aspecto da pluralização dos atores estatais com condição de fazer parte de arranjos multilaterais formais, elaborar e veicular as suas preferências (em situação de igualdade formal com os demais atores) e tomar decisões concernentes às variadas agendas internacionais. Essas abordagens tradicionais compartilham o diagnóstico de que os Estados territoriais e soberanos importam e, além disso, ainda são necessários para a eventual construção de uma administração pública global (mais ou menos) poliárquica.3
Para Archibugi et alii (2012), esse modelo guarda semelhança com o confederalismo, isto é, arranjos multilaterais de deliberação que, a despeito de admitirem decisões substantivas colegiadas e baseadas em maiorias, preconizam a preservação das prerrogativas soberanas dos Estados nacionais. Segundo Hermet (2002), ainda que haja a ascensão de vários temas globalizados, o Estado ainda é o único agente capaz de dar um encaminhamento (mais ou menos precário) aos dilemas e desafios que engessam e congestionam as agendas políticas em âmbito mundial, regional e nacional. Sendo assim, qualquer projeto de democratização da governança global terá, de forma inescapável, que passar pelos Estados e suas respectivas capacidades e disposições de elaborarem e incluírem regimes internacionais4 no corpo do direito internacional público.
Se Estados então são os eixos e os pontos de encontro e acesso das lealdades políticas, como conceber uma instância legítima de poder que esteja acima e além dos Estados? Para Howse (2001), a operação mental é a seguinte: faz-se uma analogia entre a delegação formal de autoridade que os Estados promovem em relação às organizações internacionais,5 de um lado, e a atribuição de autoridade (real ou presumida) dos indivíduos em relação aos representantes dos Estados, de outro. Assim, o multilateralismo interestatal torna-se, nessa analogia, o mecanismo por meio do qual se legitimam as relações do sistema de Estados. De certa forma, tal como afirma Onuf (1998), a condição soberana concede aos Estados prerrogativas sobre o território, tanto prerrogativas de uso quanto de posse e, como tal, pode-se dizer que os Estados passam a se comportar como indivíduos titulares de direitos, em analogia às condições previstas pelo contratualismo liberal.
Quase diametralmente opostas às visões tradicionalistas, estariam as abordagens contemporâneas. Elas evidenciam a entrada (mais formal ou mais informal) de atores não estatais – como governos subnacionais, organizações não governamentais, redes de advocacy, movimentos sociais, corporações transnacionais etc. – nos fluxos e mecanismos decisórios globais, nos quais anteriormente prevaleciam em larga medida os Estados (Alger, 2010; Bexell, Tallberg e Uhlin, 2010; Keohane, Macedo e Moravcsik, 2009). Com isso, as abordagens contemporâneas colocam em relevo as feições potencialmente transnacionais que a democracia teria ganhado no âmbito de um processo de globalização das relações sociais e humanas (Marks, 2001; Held, 2004; Zweifel, 2006).
As visões contemporâneas a respeito de um potencial processo de democratização (que estaria em curso) da governança global adotam como inspiração os desenhos institucionais que possibilitam um exercício mais direto da democracia pelos ditos “cidadãos globais”, ou seja, aquelas pessoas envolvidas concretamente no processo político, conciliando elementos de representação, participação e deliberação (Bexell, Tallberg e Uhlin, 2010). Esse método traz uma potencial positividade consigo: ao promover uma inclusão de atores transnacionais, ele cria as possibilidades para expansão e melhora do acesso ao poder público de estratos representativos da população global, os quais possivelmente estariam excluídos pelos canais representativos tradicionais (Marks, 2001).
O argumento, por outro lado, está eivado de problemas. As redes transnacionais de ativismo, que comumente se valem das organizações internacionais como plataformas, conformam posições, mas não necessariamente representam populações. Dessa forma, a inclusão não necessariamente gerará mecanismos igualitários ou equânimes na formação da representação do demos6 (Keck, 2004).
Diante das complexidades teóricas e dos dilemas morais colocados, autores como David Held, Peter Singer e Jurgen Habermas tentaram conceber alternativas de inclusão e de arranjo entre o tradicional método democrático de tomada de decisão (que requisita representação e/ou participação de todos os cidadãos) e a vislumbrada eficácia das políticas externas e internacionais dos Estados. Held (2004) apresentou uma proposta de revisão do modelo de governança global estruturado na década de noventa, ou seja, aquele projeto de espraiamento transnacional e global dos pressupostos social-democratas: democracia, direitos humanos e império da lei. Ao refutar a visão de uma suposta evolução gradativa a partir da institucionalidade já vigente, Held sugeriu a criação de uma rede vasta e interconectada de instâncias públicas, cobrindo cidades, Estados, regiões, enfim, cobrindo a chamada ordem transnacional. Os âmbitos locais seriam as arenas para os processos participativos do demos, e nos domínios menos locais dar-se-ia a articulação por meio de mecanismos representativos. Haveria, assim, a possibilidade de conformação de uma assembleia mundial, a qual englobaria todos os Estados e agências, cujo foco seriam as preocupações eminentemente globais (questões de saúde e doença, questões alimentares, instabilidades financeiras, dívidas externas, aquecimento global, desarmamento, riscos nucleares etc.).7
Singer (2004) argumenta que, tendo em vista as características comunicacionais do tempo presente, a justificação de um comportamento diante de uma audiência global é algo factível. As mudanças trazidas por essa revolução comunicacional contemporânea podem se constituir na dimensão material para a elaboração de uma nova ética mais globalizada. Com isso, pode-se pensar em inserções, raciocínios e formulações políticas que transpassem de fato as tradicionais fronteiras estatais.
Habermas (1998), em relação a possíveis alternativas para um processamento democrático dos problemas internacionais, afirma que uma comunidade política vista como democrática deve ser dotada da capacidade de diferenciar seus membros de seus não-membros. O conceito autorreferencial de “autodeterminação coletiva” aponta o espaço lógico que ocupam os cidadãos reunidos como membros de uma comunidade política particular (diante de outras comunidades políticas, agrupadas sob outros Estados). Essa comunidade política particular só se configura como democrática se detém as capacidades de forjar a própria norma de conduta que regerá as interações que manterá com as outras comunidades políticas do mundo. A solidariedade construída pela população no interior de um Estado está baseada em uma identidade coletiva particular, estruturada em referências históricas e morais também particulares. É isso o que conforma o substrato da nação e fomenta o seu potencial de autogestão.
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Daí o grande desafio teórico, empírico e normativo, espelhado na propositura deste Dossiê, de se pensar uma democracia de alcance global e o respectivo papel a ser desempenhado pelas instituições internacionais. Ao passarmos brevemente por essas diferentes abordagens, torna-se muito claro como há limites desafiadores – tanto políticos e operacionais quanto teóricos – às concepções de democracia global.
Langlois et alii (2009), por exemplo, argumentam que a transição da concepção democrática construída dentro do Estado-nação para o espaço internacional não se dá em um vazio político e simbólico, ou seja, o ambiente internacional também é dotado de suas características e práticas, as quais deverão ser transformadas para a viabilidade e eventual completude do seu processo de democratização.
O primeiro obstáculo é a complexidade de se conceber, mesmo em processos de governança sem governo, as soluções para além do Estado e a distribuição equitativa das decisões. O ceticismo persiste, especialmente quando são trazidas à tona as desigualdades entre os Estados e a política de poder ainda presente nas relações diplomáticas ou militares, convertendo o âmbito internacional também em espaço de combates políticos e ideacionais. Sendo assim, subestimar o papel o Estado seria infrutífero, já que ainda é difícil vislumbrar concretamente outras vias para a democratização.
Um segundo elemento corresponde à relação entre democracia e soberania. Esse elemento emerge na medida em que o desenvolvimento efetivo de um arcabouço institucional em torno da ideia de “soberania popular” demandará a desconstrução, seguida por uma reinterpretação, da lógica do poder e dos elementos simbólicos que o legitimam.
Habermas, em sua faceta prescritiva, arrisca-se nesse processo de desconstrução-reconstrução quando propõe que se desconstrua o binômio Estado-nação, de modo que os vínculos compartilhados entre os cidadãos desaguem não mais em elementos afetivos de base nacional, e que tais laços de coesão e compartilhamento sejam reconstruídos a partir de bases normativas, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, por exemplo. A viabilização concreta dessa possibilidade de um patriotismo constitucional em bases soberanas pós-nacionais, entretanto, ainda permanece coberta por ceticismo e desconfiança.
Howse (2001) vai relativamente na mesma linha que Langlois et alii. Segundo Howse, o uso do termo “demos” para remeter a questões ainda concernentes ao sistema moderno de Estados desperta dubiedade. Para o autor, na medida em que não há concretamente um demos transnacional, não se pode dizer que a sociedade civil transnacional o represente. Diante dessa disjunção de representatividade, resta à sociedade civil transnacional extrair legitimidade da sua capacidade de encarnar interesses, valores e grupos que possuam alguma relevância ou ressonância doméstica.
O que se percebe, nesta apresentação do Dossiê, é que há aspectos salientes e problemáticos na ação e nas análises sobre as instituições internacionais contemporâneas, particularmente em relação aos potenciais e aos limites das propostas de “democracia global”. De forma geral, pode-se dizer que os artigos que conformam este número, a serem apresentados na sequência, problematizam as instituições em seus papéis. É interessante destacar que o corrente volume explora as organizações internacionais na governança global sob, pelo menos, três ângulos: (i) enquanto difusoras de políticas públicas, (ii) enquanto entes observados e percebidos por cidadãos e políticos em nível doméstico, e (iii) enquanto objetos ontologicamente relevantes a ponto de tornar seus procedimentos e mecanismos internos alvo de análise.
Além disso, vários dos artigos neste número publicados examinam as potencialidades e limites da governança democrática global em áreas temáticas específicas, como direitos humanos e ativismo transnacional, segurança e poder cibernético, finanças e as agências de risco, movimentos sociais e espaços transnacionais, questão alimentar e influência corporativa. Em seu conjunto, os textos colocam em discussão elementos centrais, tais como a globalização da ordem política internacional, a emergência de instituições da governança democrática global, atores da governança democrática global (como corporações transnacionais, ONGs internacionais, movimentos sociais globais, organizações intergovernamentais e tribunais internacionais) e seus respectivos e desiguais níveis de poder e discussões teórico-metodológicas para acompanhamento da governança democrática global.
O Dossiê inicia-se com a entrevista concedida por Ulysses Panisset, teórico e prático das relações internacionais. Na conversa com Dawisson Belém Lopes, um dos editores do número, o Dr. Panisset fala de seus quase trinta anos como funcionário internacional de OPAS e de OMS. Docente e pesquisador da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Ulysses também reflete filosófica e empiricamente sobre os aspectos mais instigantes da democratização da governança global, com a autoridade de quem ajudou a construir e avançar alguns dos seus caminhos no campo da saúda pública internacional.
O número segue com o texto As organizações Internacionais como difusoras de políticas públicas, da autoria de Carlos Aurélio Pimenta de Faria. O autor debruça-se sobre o – frutífero, mas ainda pouco explorado – fenômeno das organizações internacionais como influenciadoras das políticas públicas dos Estados e analisa os objetivos, as formas de ação e os instrumentos dos quais tais organizações se valem para tentar pautar a atuação doméstica dos Estados.
Ainda permeando o campo de Organizações Internacionais, Camilo López Burian e Federico Irazabal oferecem uma discussão empírica a respeito das preferências e valorações que atores políticos uruguaios expressam em relação a diferentes regimes internacionais. Em Regímenes internacionales y organizaciones intergubernamentales: preferencias y valoraciones políticas desde Uruguay, os autores mostram como tais preferências e valorações dos parlamentares uruguaios são muito mais heterogêneas entre si – na medida em que são estruturadas pelos pertencimentos partidários e dimensões ideológicas – do que os posicionamentos de cidadãs e cidadãos uruguaios.
Luciana Campos provê, em The political economy of the UN system operational activities: Overcoming the bilateralization of multilateralism through pooled funds, uma importante argumentação sobre a necessidade de imaginar caminhos alternativos para o financiamento das atividades onusianas ao redor do mundo – o que, sem sombra de dúvida, guarda relação com a democraticidade da atuação dessa organização internacional, uma das mais centrais em todo o sistema institucional global. Nesse particular sentido, os fundos compartilhados despontam como promissora modalidade para evitar o que a autora chamou de “bilateralização da cooperação multilateral”.
Dois artigos conectam a problemática proposta pelo Dossiê às dinâmicas da integração regional. No primeiro deles, intitulado Os desafios da política de integração regional e a governação multinível na Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), Kathleen Rocheteau Gomes Coutinho e Paulino Oliveira do Canto argumentam a respeito da necessidade de a iniciativa regional direcionar seu desenvolvimento institucional rumo a uma governança multinível a fim de fomentar políticas de integração regional.
No segundo, Alain Guggenbuhl analisa quais fatores podem explicar que Estados da União Europeia (EU) tenham desempenhos diferentes em negociações conjuntas. Nesse sentido, Learning the Negotiation Dance Between Regionally Integrated States: theoretical propositions inspired by the European Union, amparado em pressupostos teóricos a respeito de negociações internacionais e suas crises e barganhas, oferece seis fatores que explicariam o sucesso em negociações no âmbito da UE. Além disso, o autor ainda apresenta outras seis proposições que ajudariam a compreender como lidar com os efeitos de crises em negociações rotineiras no âmbito da integração regional europeia.
Os outros cinco artigos que conformam este Dossiê dizem respeito a setores específicos e fatores críticos da governança global, ou seja, se debruçam sobre áreas circunscritas da governança, mas também evidenciam as pressões e as desigualdades que debilitam projetos de democratização da política global.
Thaís Maria Delarisse e Marrielle Maia Alves Ferreira, a partir do estudo do caso da mobilização chilena no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) ao redor da questão da justiça de transição, apresentam uma discussão a respeito de advocacy transnacional. Em O ativismo jurídico transnacional no SIDH: um estudo sobre a mobilização no Chile em torno da promoção da justiça de transição, as autoras examinam em que medida as dinâmicas institucionais e a mobilização do ativismo transnacional fomentaram oportunidades políticas não apenas para atribuir novo significado às normas, mas também para tentar influenciar a política doméstica chilena.
Em Atores internacionais e poder cibernético: o papel das transnacionais de tecnologia na era digital, Marcelo Passini Mariano, Jaqueline Trevisan Pigatto e Rafael Augusto Ribeiro de Almeida analisam as relações de poder no contexto da expansão do ciberespaço e as consequências desse processo para Estados e instituições internacionais. Os autores argumentam que as mudanças nas formas de interação social e o uso não neutro do poder cibernético pelas corporações transnacionais da tecnologia impactam as dificuldades para formação de consensos e convergência de expectativas ao redor de metas coletivas, algo central para qualquer projeto de democratização do espaço global.
Em seguida, Pedro Lange Netto Machado apresenta uma reflexão crítica a respeito dos riscos e impactos trazidos pelas agências de classificação de risco ao projeto de governança democrática. Em As agências de classificação de risco e seus impactos sobre a governança democrática: uma análise do caso brasileiro, o autor argumenta, a partir da discussão do período que se estende da destituição da presidenta Dilma Rousseff até a suspensão da votação da reforma da previdência no governo Michel Temer, que as preferências dos atores do mercado financeiro se valem das agências de risco para pressionar e restringir as alternativas de ação dos Estados nacionais, debilitando as estruturas de uma governança global que se pretende mais democrática.
A Associação pela Tributação das Transações para o Apoio aos Cidadãos (ATTAC) é o objeto de análise de Santiane Arias. Em A ATTAC: um movimento social transnacional?, a autora questiona, a partir da análise de seu programa político e de suas formas de composição e organização, a ideia de que a referida associação, uma das mais identificadas com o movimento altermundista, seria, de fato, novidadeira, plural, não-hierárquica, transnacional, transclassista e pósmaterial. O questionamento evidencia os limites do alcance das ações dos movimentos sociais em âmbito transnacional e as complexidades para a construção de laços estratégicos e normativos que se estendam para além das fronteiras estatais e da natureza hierárquica que elas ensejam.
Em seu artigo Tendências e contradições da influência corporativa na agenda agroalimentar das Nações Unidas, Tiago Matos dos Santos discute a influencia das corporações transnacionais na governança agroalimentar das Nações Unidas. Analisando – empírica e teoricamente – a relação entre transnacionais do setor de agronegócio e instâncias do sistema ONU ligadas à questão agroalimentar, o autor aponta tanto os mecanismos que facilitam essa relação quanto as contradições que essa aproximação enseja.
Esperamos, após todo o exposto, que este Dossiê Democracia Global e Instituições Internacionais, mais um entre os importantes debates que a Revista Monções vem promovendo ao longo de seus números, contribua para o aprofundamento e sofisticação das discussões sobre os potenciais e os limites dos projetos de democratização da política internacional e do peculiar papel desempenhado pelas instituições internacionais. Boa leitura!
Notas
1 Dahl ilustra o afirmado por Marks (2001), ainda que não tivesse a expressa intenção: “[m]esmo os ditadores mais repressivos se dizem favoráveis, hoje em dia, ao legítimo direito do povo de participar do governo, isto é, de participar da ‘administração’, ainda que não na contestação pública” (Dahl, 2005, p. 25).
2 Instituições transnacionais são capazes de contemplar e integrar agentes estatais e não estatais em seu interior. Já as instituições supranacionais têm como traço distintivo a superação do estatuto intergovernamental, na medida em que buscam descolar-se dos referenciais dos Estados territoriais modernos. Um bom exemplo de instituição supranacional atualmente seria o Banco Central Europeu.
3 “Poliarquia” é expressão cunhada pelo cientista político Robert Dahl para referir-se a manifestações empíricas da democracia contemporânea, enfatizando-se duas dimensões do fenômeno: a capacidade de inclusão dos cidadãos ao processo político-eleitoral e a possibilidade institucional de fazer oposição ao regime doméstico (ou ao líder político, ou à coalizão dominante etc.).
4 Por “regime internacional”, faz-se referência ao conjunto de normas, princípios, regras e procedimentos de tomada de decisão em torno dos quais convergem as expectativas de diferentes atores, em relação a agendas específicas (issue-areas) das relações internacionais (Krasner, 1983).
5 Cabe lembrar que uma organização internacional (ou intergovernamental) requer, para que venha a existir, o consentimento explícito de dois ou mais Estados, geralmente expresso sob a forma da assinatura (com ulterior ratificação) de um tratado internacional.
6 Para Marchetti (2008) só há uma “democracia global” em uma situação na qual a cidadania seja pensada em termos transnacionais e, como tal, todos os cidadãos possam participar da formulação e das decisões de natureza pública em diferentes níveis, estruturados por meio de uma federação global (world federalist system). Uma estrutura desse tipo, conforme o autor, teria capacidade de uma inclusão abrangente e em diferentes níveis, garantindo a vigência do principio de “não exclusão”, essencial para um projeto de democracia global de fato.
7 Ali Kazancigil (2002) discorda desse argumento de Held. Segundo ele, vislumbrar um mundo cuja constituição de uma democracia global exija compartilhamento de visões, princípios e sistemas políticos entre todos os Estados é praticamente sustentar uma utopia improvável.
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Organizadores
Dawisson Belém Lopes – Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Matheus de Carvalho Hernandez – Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Visiting Scholar no Institute for the Study of Human Rights da Columbia University.
Referências desta apresentação
LOPES, Dawisson Belém; HERNANDEZ, Matheus de Carvalho. Democracia global e instituições internacionais: à guisa de introdução. Monções: Revista de Relações Internacionais da UFGD. Dourados, v.7, n.13, p.1-17, jan./jun. 2018. Acessar publicação original [DR]
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