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Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade/política e subjetividades | Mériti de Souza

O livro Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades, organizado por Mériti de Souza, possui 12 capítulos escritos por diferentes autores, com diversidade epistemológica e referenciados em diferentes campos de estudo, porém com um objeto comum: a análise da democracia na sua relação com a produção da subjetividade brasileira. A coletânea torna-se uma publicação preciosa ao refletir sobre a conjuntura atual, analisando a constituição histórica das resistências ou disputas pela democracia e o esmagamento das políticas públicas pelo neoliberalismo. Também discute a adesão à ideologia capitalista consumidora de subjetividades por meio de simulacros do espetáculo em nome de uma suposta liberdade, enquanto são produzidas respostas violentas às manifestações de diversidade de gênero e sexualidade.

Nesta resenha pretende-se destacar os principais argumentos apresentados nos capítulos da coletânea, com destaque para as discussões que envolvem as políticas educacionais, marcos importantes da constituição democrática brasileira. Dessa forma, entendemos que é possível estabelecer um diálogo frutífero com o dossiê que comemora os 130 anos da Escola Normal em Santa Catarina, considerando que a educação e a formação docente foram temáticas em destaque ao longo do século XX e estão sendo problematizadas na atualidade.

O período democrático de 1945 ao golpe de 1964 é tematizado em dois artigos. No texto A modernização do atraso: as vicissitudes da aliança para o progresso no nordeste do Brasil, José Victor de Lara, Pedro Carvalho Oliveira e Sidnei J. Munhoz analisam como a construção democrática brasileira foi modelada por agentes estadunidenses, com base em documentos oficiais do departamento de estado estadunidense que relatam a implementação do programa Aliança para o Progresso. A gerência do programa operacionalizava a intervenção nas disputas políticas, promovendo sabotagem de atores políticos divergentes das teorias liberais democráticas importadas, e o financiamento de políticos aliados. O Nordeste, especificamente Pernambuco, foi considerado um estado estratégico para impedir a expansão da influência comunista nos setores campesinos após a Revolução Cubana. Os autores analisam como o candidato Miguel Arraes, entusiasta dos processos revolucionários, foi considerado perigoso e sabotado no programa da Aliança. A partir dessa experiência, a interferência estadunidense para a modelagem e desestabilização política de seus oponentes tornou-se uma estratégia recorrente de manipulação da política brasileira.

Já no capítulo Democracia, educação e infância nos editoriais da revista brasileira de estudos pedagógicos (1944/1964), Sara da Silva Böger e Diana Carvalho de Carvalho analisam a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP) como palco de disputas dos intelectuais da educação pública durante as décadas de 1940, 1950 e 1960. Décadas em que ocorreram a estruturação das políticas e dos marcos legais da educação, além da expansão do aparelho educacional brasileiro e a institucionalização da formação docente em bases científicas. A REBEP era uma publicação oficial do INEP, órgão do Ministério da Educação, e foi criada com o objetivo de divulgação das ideias pedagógicas que orientavam os debates educacionais e a formação de professores.

Nos anos de Lourenço Filho (1944-1952), seu primeiro editor, as publicações versavam sobre o caráter democrático e nacionalista que a educação deveria assumir nos anos após Segunda Guerra Mundial. Nos editoriais afirmava-se que, para evitar autoritarismos e a volta do nazifascismo, desde a infância, as crianças deveriam ser educadas para amar a democracia e a nação. Já sob o comando de Anísio Teixeira, no período de 1953 a 1964, as discussões se inclinam sobre as disputas concretas da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) de 1961, em que diferentes projetos de sistema educacional estavam em disputa. Ao lado da defesa da educação pública, o editor teve posições enfáticas sobre a quota-parte de cada criança no financiamento educacional, destacando-se na defesa de uma concepção de direito à educação pública de qualidade desde a infância, sobretudo, no ensino primário. O golpe militar de 1964 interrompe a publicação da revista, que foi retomada posteriormente e mantém-se até hoje.

Se, ao longo do século XX, a discussão sobre a educação pública e a responsabilidade do Estado na formação das novas gerações mantém-se como orientação hegemônica nos debates, a conjuntura atual revela um contexto diferenciado. No capítulo Educação pública na era dos golpismos e extinção dos serviços públicos, Marta Bellini aponta que a agenda golpista de privatização da educação pública sempre esteve em pauta na história do Brasil. O horizonte educacional construído na Constituição de 1988 está sendo destruído por setores privatistas que desde os anos 2000 articularam-se para a aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), imprimindo o rebaixamento curricular, implementando a escola de testes de capacidades socioemocionais, replicando modelos educacionais que fracassaram nos Estados Unidos, disseminando ideais liberais e separando as crianças entre lucrativas e não lucrativas, apontando as que não têm valor social para o capital e que não precisam de educação. Bellini aponta que o plano de expansão dos lucros é a privatização da educação, que já está sendo operada pelas empresas de materiais educativos em consultorias para a nova BNCC e na comercialização de apostilas e aplicativos educacionais. Para a consolidação desses novos produtos, os professores vão sendo desqualificados, desmoralizados e descreditados em lógicas competitivas sustentadas por mecanismos como os vouchers da educação, inclusive no ensino superior, em que a lógica produtivista promove a “uberização” docente.

Na mesma linha de análise dos fatos da educação brasileira e de suas interferências estrangeiras, Jéferson Silveira Dantas e Marcos Edgar Bassi apontam no capítulo As avaliações em larga escala e a responsabilização docente no âmbito da pedagogia das competências e habilidades, que o neoliberalismo nunca deixou de estar presente na política brasileira, ainda que tenha sido freado nos governos petistas das primeiras décadas dos anos 2000. Os autores destacam que tendências de competitividade e responsabilização individual somadas à ideia de flexibilização do capital, formam um sujeito de novo tipo, que trabalha para a empresa como se trabalhasse para si mesmo, e estimula os trabalhadores a se aventurarem, a se arriscarem, dividindo a classe em riscófilos (empreendedores) ou riscofóbicos (assalariados).

Esses processos vêm estabelecendo a concorrência generalizada e naturalizando o dever do bom desempenho que agora se dirigem também para características de personalidade, nas competências socioemocionais. Nas diretrizes de avaliação, a desigualdade social é tomada como um estresse que pode prejudicar o aluno, mas não como um desafio social a ser analisado criticamente para ser superado. Os autores concluem que a avaliação de competências socioemocionais é uma forma de moldar a personalidade da classe trabalhadora para a resiliência e a racionalidade cínica do capitalismo psicologiza as mazelas sociais, sem atribuir suas causas às ordens a que pertencem e que não são redutíveis a aspectos socioemocionais.

No capítulo Permanecer? Sim, mas a que custo? Estudantes negras e negros no ensino superior, de Renata Cristiane Araújo de Lima Pierre Louis e Mara Coelho de Souza Lago, temos uma leitura obrigatória para todos os intelectuais no Brasil e, principalmente, os que estão ligados às universidades. As autoras apresentam o apagamento sistemático da história negra e um resgate histórico das desigualdades de acesso à educação, desde a origem escravocrata da sociedade brasileira. Na universidade, apontam a seletividade epistemológica ou epistemicídio para excluir intelectuais e personalidades negras da academia; também analisam as políticas de acesso, apontando como a mudança do Programa de Ações Afirmativas de cotas com critério racial para Cotas Sociais diminuiu o número de estudantes negras e negros na universidade. Isso, depois de um breve período de aumento, ocasionado pelas cotas com critério racial, demonstrando como os benefícios materiais e simbólicos mantidos pelos brancos no país, mantêm-se intactos por políticas que disfarçam reparação racial.

Os relatos de estudantes negras e negros são tocantes e constrangedores para os brancos que os leem, uma vez que não deveriam em hipótese alguma acontecer em qualquer lugar, sobretudo em uma universidade pública. O que se inicia com a tensão pela presença negra em lugares historicamente ocupados por brancos resulta em mecanismos mais ou menos velados de manutenção da hegemonia branca. São eles exclusão, estigmatização, racismo velado ou explícito, injúria racial, até a tentativa de expulsão de espaços do campus universitário por seguranças. As consequências são a desistência de muitas(os) estudantes negras e negros e adoecimentos psicológicos graves, o que reafirma a questão inicial de quem paga o preço dos custos da permanência na universidade.

No capítulo Experiência, cidadania, e democratização da educação no Brasil, Maria Terezinha Bellanda Galuch, Eduardo Oliveira Sanches e Analice Czyewski referenciam-se na constituição da experiência conceituada por Walter Benjamin para discutir o conceito de pós-democracia, uma vez que no Brasil, a partir de 2016, o Estado democrático de direito flexibilizou os limites éticos e jurídicos dos direitos reconhecidos na constituição. Diante dessa progressão histórica, o cidadão a ser formado está convencido de que a liberdade que o capitalismo proporciona é sinônimo de igualdade, e a meritocracia tomou conta do imaginário coletivo. As autoras advertem que a consequência que enfrentamos atualmente é que os valores liberais típicos do capitalismo invadiram a educação, sendo transmitidos como valores da comunidade, minimizando drasticamente as possibilidades da experiência nas escolas.

A desigualdade presente no sistema capitalista brasileiro é debatida em dois capítulos. Os sentidos da desigualdade na trilogia da resistência de Kleber Mendonça Filho, de Alexandre Busko Valim e Rafaela Arienti Barbieri, analisa a trajetória narrativa de três filmes dirigidos por Kleber Mendonça Filho que ilustram metaforicamente a história do capitalismo brasileiro. No primeiro filme O som ao Redor, se expressa uma análise do momento mercantilista do capitalismo do Brasil colônia; já em Aquarius ilustra-se o capitalismo moderno, com base na produtividade, em que aquilo que foge a essa lógica deve ser exterminado. No filme Bacurau expressa-se um capitalismo mais agressivo, que acompanha a internacionalização do capital, em que os territórios perdem suas fronteiras e as invasões usurpam os espaços de reprodução da vida dos trabalhadores. Nessas narrativas, não só momentos diferentes do capitalismo se apresentam, mas também estratégias de resistência distintas articuladas pelos que lutam contra a aniquilação subjetiva e de pertencimento, contados a partir da sétima arte de maneira inspiradora e reflexiva.

Por fim, no capítulo Liberalismo, pós-modernidade e desinformação: breve ensaio sobre o contexto da nossa desigualdade, 2016/2021, Adriano Duarte afirma que o liberalismo é um instrumento na luta de classes para diminuir os custos sociais do trabalho a partir da negociação de direitos. O autor destaca que o atual presidente do país foi eleito justamente pela sua capacidade de estabelecer uma Democracia sem Direitos, de tirar o estado das suas funções básicas. A partir de um novo tipo de matriz emocional básica que se orienta por uma cultura da imagem e do simulacro dependente das novas tecnologias, o capital do espetáculo se torna imagem e relativiza tudo. A descrença nos valores democráticos se observa também no descrédito da ciência com uma racionalidade politicamente instrumental e seletiva. Não se trata de saber se aquele princípio científico é verdadeiro, mas se ele é útil ou prejudicial ao capital, se é cômodo ou incômodo. O autor apresenta uma nova leitura da situação das fake news como desinformação e instrumentaliza caminhos para pensar a disputa em prol da ciência e da democracia.

Outros capítulos trazem reflexões sobre questões que vivenciamos recentemente e seus impactos na subjetividade da população, referenciando-se na psicanálise e em epistemologias pós-estruturalistas, tais como a pandemia do Covid-19 (Pandemia e negacionismo no Brasil: análise sobre identidade, o mito da não violência e o estranho, de autoria de Vinicius Barros e Mériti de Souza); a violência quanto à pluralidade da sexualidade e do gênero (Queer Museo: cartografias da diferença na arte brasileira e violência à pluralidade da sexualidade e do gênero, de autoria de Fabrício Ricardo Lopes, Gustavo Angeli e Mériti de Souza).

Também estão presentes na coletânea capítulos que debatem questões metodológicas da pesquisa historiográfica, que apontam a importância de modificar as concepções historiográficas para uma ampliação subjetiva do entendimento de história, para além dos fatos humanos. No capítulo Pesquisa História: novas abordagens, diálogos, transdisciplinares e ampliação subjetiva, Chistian Fausto Moraes dos Santos, Anelisa Mota Gregoleti e Nathália Moro indicam que se faz necessário entender como as ações humanas impactam o meio ambiente ao longo do tempo, afinal as questões ambientais são elementos contextuais fundamentais ignorados nos estudos históricos anteriores à contemporaneidade e a história ambiental vem completar essa lacuna.

Os autores destacam que analisar, resgatar e contar a história ambiental é uma necessidade que rompe com a interpretação disciplinar e segmentada do conhecimento. Já Natália Martins Besságio e Sidnei J. Munhoz, no capítulo Desbundados: imprensa alternativa, contracultura e resistência ao regime militar apresentam a configuração improvável e inusitada do Pasquim, jornal lançado em 1969 com o intuito de trazer humor, riso e deboche aos fatos cotidianos anunciados no período ditatorial e driblar a censura que atingia a imprensa tradicional. Os autores consideram que o jornal representou uma forma de resistência ao regime, já que apresentou críticas sociais importantes, que os autores associam aos movimentos de contracultura.

Podemos concluir que a tendência da coletânea aqui apresentada instiga debates e reflexões para a defesa da democracia e do povo nos períodos que se seguirão sendo uma leitura necessária, se não obrigatória, para pesquisas futuras sobre o tema. Especificamente no diálogo com a educação, a obra contribui para compreendermos como temas caros à educação brasileira foram saindo de cena do debate educacional, ao mesmo tempo em que reaparecem capturados pela lógica do mercado. A formação docente é um desses temas: apresentava-se como uma aposta do Estado brasileiro para a qualidade da educação até a primeira metade do século XX, sendo paulatinamente o trabalho do professor desvalorizado e os cursos que os formam, incorporados cada vez mais pelas instituições particulares de ensino em que, na grande maioria, a qualidade fica em segundo plano em nome da lucratividade.


Referência

SOUZA, Mériti de (org). Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades. Curitiba: Appris, 2022. 314p.


Resenhista

Sara da Silva Böger – Centro Universitário Barriga Verde – Unibave – Orleans/SC. E-mail: saraboger@gmail.com


Referências desta Resenha

SOUZA, Mériti de (Org). Democracia em tempos difíceis: interdisciplinaridade, política e subjetividades. Curitiba: Appris, 2022. Resenha de: BÖGER, Sara da Silva. Linhas. Florianópolis, v. 23, n. 53, p. 392-399, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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