“… difícil sustentar, a partir do quadro descrito, a tradicional imagem de um Império centrado, dirigido e drenado unilateralmente pela metrópole.”1
Foi com grande satisfação que aceitei o convite para redigir a apresentação do dossiê “Debates sobre História Moderna e Américas coloniais” que se insere no conjunto de celebrações do 20º aniversário da publicação do livro “O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa” 2 . Essa obra teve uma forte influência na minha formação acadêmica desde graduação e marcou gerações. Logo após a primeira leitura, percebi que os estudos desenvolvidos pelos autores da coletânea iriam contribuir para o desenvolvimento da minha pesquisa sobre o governo da justiça, que começava a ganhar os primeiros apontamentos pouco tempo depois do lançamento da primeira edição. Além disso, tive o privilégio de ser orientada por uma das organizadoras, a Professora Maria Fernanda Bicalho (Universidade Federal Fluminense), ao longo da minha trajetória acadêmica na pós-graduação.
O livro, muito inovador na ocasião, suscitou intensos debates nos anos seguintes e até hoje é revisitado em debates historiográficos sobre o período colonial. A obra coletiva revelou novas abordagens possíveis para as dinâmicas econômicas, políticas, culturais e religiosas no âmbito da América lusa, propôs alternativas para superar a dualidade metrópole e colônia presente em modelos explicativos até então dominantes e forjados a partir de análises macroestruturais. Entre os muitos méritos da obra, os ensaios foram elaborados com fontes depositadas em arquivos nacionais e internacionais e destacaram as conexões entre diferentes partes espalhadas pelo globo. Como destacou A. J. R. Russell-Wood, autor do prefácio, fazia parte do livro uma geração de brasileiros que concluíram seus doutorados desde 1989, que juntos reavaliam o Antigo Regime e como o Brasil e outras partes do império encontravam-se perpassados por suas práticas e mentalidades. Essas novas formas de entender o universo colonial deram particular atenção as negociações que marcaram as relações no âmbito do império português.
Desde a década de 1960, o historiador britânico Charles R. Boxer já chamava atenção para o processo de construção da soberania portuguesa em diferentes espaços ultramarinos, para a formação do império marítimo português, mas ainda faltava uma obra que impulsionasse essa nova chave interpretativa na historiografia brasileira. A partir da publicação do Antigo Regime dos Trópicos, o conceito de império foi absolutamente consolidado na produção historiográfica nacional.
Além disso, os capítulos da coletânea dialogavam com as ideias desenvolvidas pelo grande historiador do direito português e ibérico António Manuel Hespanha (in memoriam). Em seu capítulo, Hespanha nos convidava a repensar as categorias de “Estado” e “centralização”, chamando atenção para a pluralidade de modelos jurídicos, para multiplicidade de laços políticos, para o poder partilhado com diferentes graus de autonomia. Demonstrou, a falta de homogeneidade e de hierarquias rígidas na arquitetura do poder, quer no reino, quer no ultramar. Seu estudo publicado no livro marcou o início de um profícuo diálogo com pesquisadores brasileiros e, nos anos seguintes, se tornou uma referência teórica fundamental e incontornável para várias gerações.
Percorrendo os doze capítulos do livro Antigo Regime dos Trópicos, encontramos uma grande diversidade temática: conexões econômicas, circuitos comerciais, arrematação dos contratos, elites, nobreza, câmaras ultramarinas, instituições locais, ofícios administrativos, negociações, redes, trajetórias, famílias, estratégias missionárias, religião, escravidão, etc. Como destacado na epígrafe dessa apresentação, a partir da leitura desses ensaios e mediante a imensa constelação de poderes que foram apresentadas nos textos, parece realmente impossível continuar sustentando a ideia de um império dirigido unilateralmente pela metrópole.
Para além do grande diálogo com a produção historiográfica internacional que a coletânea incentivou, ainda é importante destacar que os autores que participaram da obra, além de enriquecerem os debates e as pesquisas sobre o universo colonial até o momento, orientaram e continuam orientando diversos discentes vinculados aos programas de pós-graduações de todo o Brasil. Portanto, são gerações que seguem articulando as principais ideias e pesquisas desenvolvidas na obra com as novas tendências da historiografia colonial nacional e internacional, que estudam a América portuguesa como parte de uma monarquia pluricontinental, termo cunhado mais recentemente que surgiu inicialmente nos trabalhos do historiador português Nuno Gonçalo Monteiro e que vem sendo refinado por João Fragoso3. O conceito pressupõe a existência de um só reino e diversas conquistas extra-europeias, sendo que a centralidade material do monarquia está nos territórios ultramarinos.
Portanto, a relevância do tema escolhido para o dossiê se justifica pelo impacto irreversível que a obra e as pesquisas desenvolvidas por seus autores desde sua publicação promoveram na produção historiográfica brasileira. O título do livro ainda deu origem a um dos principais grupos de pesquisa na área de Brasil colonial registrado no CNPq, com sede na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, o ART/UFRJ é coordenado pelos professores Antônio Carlos Jucá de Sampaio (UFRJ) e Roberto Ferreira Guedes (UFRRJ) e possui grande atuação nacional e internacional.
O dossiê é composto de estudos recém-concluídos ou em andamento que inspirados pela produção historiográfica que os antecedem, reavaliam, repensam e se conectam com diferentes análises que foram propostas inicialmente na obra Antigo Regime nos Trópicos. Os leitores terão contato com pesquisas que apresentam múltiplas abordagens e temas que dialogam com novas fontes, acervos, noções e conceitos.
Os textos produzidos por pesquisadores e discentes de diferentes instituições, mesmo seguindo percursos historiográficos diversos, evidenciam a fecundidade e a atualidade dos estudos sobre a Época Moderna, principalmente no que tange às Américas coloniais e suas facetas. Sua vertente inovadora baseia-se na perspectiva imperial ou pluricontinental a partir da qual os objetos são analisados. Os ensaios abrangem quase sempre uma região, capitania ou vila, ou seja, valorizam a dimensão regional dos territórios e suas conexões, bem como exploram as possibilidades dos aportes da microhistória, que podem ajudar a revelar dimensões inesperadas ou pouco conhecidas dos mais diversos temas de pesquisa.
Nesse volume da Revista Ars Histórica, o leitor irá encontrar quatorze artigos, uma nota de pesquisa e uma resenha. Os primeiros artigos do dossiê tratam de questões envolvendo o processo de colonização, definição de fronteiras em diferentes territórios da América portuguesa. Questões envolvendo a indefinição dos vastos limites territoriais atravessaram três séculos, pautaram demarcações, concessões de terras, a própria defesa e manutenção dos domínios.
Pedrina Araújo, doutoranda no Programa em História e Conexões Atlânticas da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), investiga parte do processo de ocupação do Piauí promovida pelo avanço das entradas dos sertanejos vindos do Estado do Brasil e do Maranhão e Grão-Pará e o papel desempenhado pelos bispados na estruturação da região. João Paulo de Barros Silva, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo (UPF), também apresenta parte do processo de definição de fronteiras e limites no contexto da América portuguesa, utilizando como principal corpus documental fontes cartográficas e o Alvará de criação da Companhia Geral do Grão-Pará e Maranhão de 1755, para refletir sobre a configuração política do contexto pré e pós-independência. Clara Garcia de Carvalho Silva, doutoranda em História pela Universidade do Porto em Portugal, desvenda as características do povoamento na Comarca de Rio das Mortes, capitania de Minas Gerais, no século XVIII, revelando como a posse da terra era um importante instrumento de poder e prestígio para os imigrantes.
Destacando a centralidade das Câmaras, espaços de poder privilegiados e instituições fundamentais para administração das conquistas ultramarinas, temos o texto de Mateus Bernardo Galvão Couto, mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que investiga o ofício de escrivão da Câmara e suas atribuições, escolhendo como espaço privilegiado a parte sul da América lusa, no contexto de declínio da produção aurífera. Ludmila Gomides Freitas, doutora pelo Programa de Pósgraduação em História da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), discute a ação dos colonos paulistas e as disputas em torno da administração dos índios, revelando mais uma vez a pluralidade de embates que ocorriam no âmbito das Câmaras, considerando o espaço da vila de São Paulo no século XVII.
O artigo Nara Tinoco, recém doutora em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), aborda as tramas e trajetórias de alguns membros da família Aleixo e Godinho no âmbito da capitania de Minas Gerais e suas conexões com outras paragens do império português. Ao reconstituir os percursos de alguns indivíduos por diferentes gerações, a autora ressalta a importância do conceito de família, as estratégias de ascensão social e os processos para obtenção de mercês vigentes na América lusa no século XVIII.
A história social, a temática da família e suas múltiplas tramas também estão presentes em outros textos. Débora Cristina Alves, doutora em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), analisa o sistema de casamentos, a busca por ascensão social e manutenção de privilégios no contexto da freguesia de Guarapiranga no período de 1715 a 1820. Sua pesquisa considerada as trajetórias de duas famílias – Alves Ferreira e Pinto de Oliveira – no território da capitania de Minas Gerais.
Ane Caroline Câmara Pimenta e Thassio Ferraz Tavares Roque, mestrandos no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), partem de uma instigante leitura de assentos batismais e testamentos localizados no Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Diamantina, buscam compreender as práticas e estratégias de matrimônio e concubinato entre as mulheres livres, libertas e escravas no Arraial do Tejuco, capitania de Minas Gerais, entre os anos de 1725 e 1762.
Trilhando outros caminhos e visitando outros espaços, mas também em diálogo com as ideias do Antigo Regime nos Trópicos, como as hierarquias costumeiras que recriavam e ressignificavam os quadros mentais da sociedade estamental europeia, evidenciando como as relações entre senhores e pessoas escravizadas integravam-se a concepção corporativa de sociedade, Juliana Batista, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), analisa o apadrinhamento de escravos e os possíveis parentescos espirituais forjados entre os diferentes grupos étnicos africanos na região de Nossa Senhora da Piedade de Iguaçu, freguesia situada na capitania do Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII. Seu texto enfatiza a importância de conhecermos diferentes aspectos que envolviam o batismo da população escrava no período colonial, para além das motivações religiosas.
Márcio Blanco Razzera, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), escrutina as relações de compadrio na freguesia de Viamão, território atual do Rio Grande do Sul, entre os anos de 1747 e 1759, período de intensificação do processo de colonização da fronteira sul da América portuguesa. O autor destaca as condições sociojurídicas de padrinhos, madrinhas e afilhados de indivíduos escravizados na região e revela algumas semelhanças com as sociabilidades estabelecidas no Rio de Janeiro no século XVIII, ao comparar as tramas de parentesco e os diferentes usos do batismo no contexto colonial.
Verônica Fernandes, mestranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (USP), investiga as possíveis motivações que teriam levado Sor Juana Inés de la Cruz, freira e poetisa mexicana, a escolher o padre português Antônio Vieira como seu interlocutor na Carta Atenagórica. Na obra escrita no final do século XVII, a freira questiona os caminhos argumentativos percorridos pelo famoso jesuíta, o que também evidencia as conexões e contatos entre o mundo espanhol e o mundo português.
Natalia de Souza Miranda, doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), apresenta uma análise comparativa de dois movimentos messiânicos indígenas: o Taki Onqoy, ocorrido no Peru, e a Santidade de Jaguaripe, que se estabeleceu na capitania da Bahia, revelando a complexa teia de relações estabelecidas entre os ideais de evangelização e o uso da mão-de-obra indígena.
É importante lembrar das transformações promovidas a partir da conversão das almas e o papel primordial da religião no universo colonial, Igor Barbosa Reis, mestrando do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), avalia modelos de comportamento, os limites entre o vício e a virtude no âmbito da capitania Bahia no século XVIII. Entre outras fontes, nos brinda com o resgate de alguns trechos do grande Compêndio narrativo do Peregrino da América, de autoria do padre Nuno Marques Pereira, que traz um pequeno retrato de cunho religioso da sociedade brasileira no período colonial, que para o autor estava quase em ruínas devido aos muitos pecados e superstições.
Na sessão “Notas de pesquisa”, Gyovana de Almeida Félix Machado, licenciada em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) apresenta seus apontamentos iniciais sobe o provimento de ofícios, em especial o exercício da capelania na esfera militar no século XVIII, mostrando as implicações de uma função de natureza militar ser exercida por um eclesiástico.
O dossiê conta ainda com uma resenha do livro “Memórias da Plantação” de autoria da escritora portuguesa Grada Kilomba, publicado no Brasil em 2019, dez anos depois da versão original em inglês. O livro que narra histórias de racismo foi o mais vendido na Flip 2019 (Festival Internacional de Literatura de Paraty). Kaique Rodrigues Vieira, mestrando no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em uma leitura atenta da obra, destaca sua relevância para mudarmos o cenário do racismo estrutural existente no Brasil, um país que carrega até hoje as marcas de uma sociedade escravista, que lamentavelmente ainda reproduz práticas, hierarquias e classificações tecidas no contexto colonial.
Por fim, gostaria de fazer um convite ao leitor: percorra as próximas páginas e conheça as pesquisas produzidas com grande refinamento por jovens historiadores (as) de diferentes instituições públicas que seguem resistindo frente às intempéries geradas a partir da pandemia, aos cortes orçamentários e que continuam acreditando no desenvolvimento de pesquisas científicas de alto nível.
Notas
1 HESPANHA, António Manuel. “A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesamentos correntes”. In: FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima. O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 187-188.
2 Em 2021, o livro “O Antigo Regime nos Trópicos” completou 20 anos e ganhou uma nova edição em formato ebook. O grupo de pesquisa ART organizou dois grandes eventos para celebrar a data. O Seminário Internacional Antigo Regime nos Trópicos contou com a participação de pesquisadores e docentes de diversas instituições nacionais e internacionais, que se reuniram para debater e apresentar novas tendências historiográficas. E o evento “ART EM TESES: Novas Pesquisas” promovido para divulgar pesquisas de mestrado e de doutorado, em elaboração ou recém-defendidas, que estabelecem interlocução com as interpretações vinculadas a noção de Antigo Regime nos Trópicos. Nas mesas foram apresentados novos estudos sobre as redes de comércio, os poderes locais, as trajetórias administrativas, o governo da justiça, a nobreza, as elites, as hierarquias e classificações sociais, tudo isso em diálogo com as especificidades da sociedade escravista colonial.
3 MONTEIRO, Nuno, FRAGOSO, João (orgs.). Um reino e suas repúblicas no Atlântico. Comunicações políticas entre Portugal, Brasil e Angola nos séculos XVII e XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017
Organizadora
Isabele Mello – Professora Adjunta do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Referências desta apresentação
MELLO, Isabele. Apresentação. Ars Historica. Rio de Janeiro, v. 23, p. 7-12, jan./jun. 2022. Acessar publicação original [DR]
Décima sexta edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Décima sétima edição. Esta edição foi publicada em 2023 visando o ajuste de publicações em…
Vigésima segunda edição. N.03. 2023 Edição 2023.3 Publicado: 2023-12-19 Artigos Científicos Notas sobre o curso de…
Publicado: 2024-06-19 Artigo original A rota dos nórdicos à USPnotas sobre O comércio varegue e o…
Quem conta a história da UFS, de certa forma, recria a instituição. Seus professores e…
Publicado: 2023-06-30 Edição completa Edição Completa PDF Expediente Expediente 000-006 PDF Editorial História & Ensino 007-009…
This website uses cookies.