De Norte a Sul, a sombra do autoritarismo e do fascismo no passado e no presente: perspectivas sobre experiências limítrofes nos séculos XX e XXI /Escritas do Tempo/2022
Se Marshall Berman (1987) dizia que a modernidade é demarcada por sua inerente contradição, Zygmunt Bauman complementou essa perspectiva compreendendo esse período como o constante derretimento de sólidos. Assim, a fluidez dos tempos modernos não demonstraria a ausência dos sólidos: pelo contrário, a nova ordem deveria ser verdadeiramente pautada em estruturas. Para Bauman, nenhum molde social foi destruído sem que outro fosse construído para substituí-lo. Dessa maneira, o processo de derreter os sólidos “antigos” era uma urgência vinda da necessidade de “inventar sólidos de solidez duradoura”, tornando esse novo mundo, portanto, previsível, organizado e administrável (BAUMAN, 2001, p. 10).
Caminhando para modelos mais perfeitos e bem adaptados, o século XX é o epítome das consequências da perigosa noção de progresso, tão cara a essa modernidade. As repercussões das duas guerras mundiais, bem como a ascensão dos fascismos, do nazismo e da extrema direita, e o genocídio, a violência e o imperialismo que assolaram não somente a Europa como a África do Sul e a América Latina, são exemplos dos traumas que (ainda) são nosso legado. Para François Hartog (2013), essa modernidade, iniciada na Revolução Francesa como reflexo da esperança e da luta pela igualdade e liberdade, se viu, após Auschwitz, como uma experiência de tempo desorientada. O Holocausto se apresentou como “a” experiência limítrofe, a terrível consequência do processo de burocratização da sociedade e de desumanização dos indivíduos. Ainda que estudos mais recentes e decoloniais coloquem em xeque a centralidade do Holocausto na memória coletiva, Bauman reforça que o que o século XX demonstra de maneira inquestionável é que “o mal existe como realidade independente e paralela, e não como uma insuficiência do bem.” (BAUMAN; DONSKIS, 2014, p. 17).
A Guerra Fria intensificou a complexidade desse novo regime de historicidade. Para usar a terminologia de Reinhard Koselleck (2006), as experiências passadas não serviam para ensinar nada e o horizonte de expectativas não tranquilizava com uma noção de futuro promissor. Não surpreende que Francis Fukuyama (1992) tenha declarado que a queda do muro de Berlim tenha determinado o “fim da história”. Afinal, o que haveria de novo depois de tantos horrores? Nesse momento de incertezas, a memória aparece como um componente fundamental na tensão na forma dos seres humanos lidarem com o tempo. “Para nunca mais esquecer” se tornou um lema do pós Segunda Guerra Mundial e os julgamentos dos perpetradores e os processos de justiça de transição deram, apesar dos seus evidentes limites, voz às vítimas das catástrofes. História e memória se viram caminhando juntas e, por vezes, em embate direto, ao longo dos anos da segunda metade do século XX.
O que emergiu das sombras das guerras e conflitos identitários foi a democracia, não somente como regime político, mas, sobretudo, como “valor universal”, compartilhado e propagado em todas as regiões do mundo. Na virada do novo milênio, acreditava-se saber quem eram os inimigos e, principalmente, qual era a solução para o futuro. Mais uma vez, entretanto, o que aparecia na superfície não era necessariamente o que se encontrava nas estruturas. A crise migratória advinda do processo de globalização trouxe à tona os resquícios de ideologias violentas que não se findaram no século XX. A compreensão de “terrorismo” como ações pautadas em preceitos ideológicos, religiosos e raciais de um determinado grupo, principalmente após o 11 de setembro de 2001, reforçaram a perspectiva do “inimigo interno” e da guerra do bem contra o mal. Não por acaso, compreendendo a potência de elementos conhecidos, o presidente dos Estados Unidos que declarou a “guerra ao terror”, George W. Bush, usou e abusou de comparações da Al-Qaeda com o nazismo e o fascismo. Essa memória parecia, então, ainda muito viva.
A perspectiva determinista de Fukuyama mereceu uma revisão do próprio autor após a chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, em 2017. Afinal, como compreender que a democracia carrega em si o próprio germe de sua destruição? Como oferecer explicações definitivas para a (re)ascensão da extrema direita em tantos países do mundo? Como entender que, em grande medida, para usar as palavras de Eric Hobsbawm, o que sobreviveu do século XX foi o nacionalismo excludente e preconceituoso (HOBSBAWM, 1998)? Como analisar o processo de justiça de transição sabendo que, em tantos lugares, essa justiça sequer chegou? E, ainda, como lidar com a própria noção de genocídio se, na maioria das vezes, ela se concentra no território europeu, deixando de lado todas as atrocidades ocorridas no que hoje chamamos de Sul Global? Essas são algumas das tantas questões que nos deparamos no complexo processo de disputa pela memória desse passado recente, ou, nas palavras de Hartog (2013), desse “passado que não passou”.
Tendo esse panorama como perspectiva, a proposta de dossiê que apresentamos conjuntamente, numa parceria entre o Núcleo Brasileiro de Estudos de Nazismo e Holocausto (NEPAT) e o Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória (NUPPOMEUFPEL), pretende contribuir com a reflexão sobre os diferentes regimes de exceção e as violências que marcaram o século XX, assim como com a análise sobre seu impacto, suas permanências e reformulações no presente.
Apesar das dificuldades que enfrentamos nos últimos anos, marcados pela escassez de recursos para as universidades públicas e pelo negacionismo que desmotivam pesquisadoras e pesquisadores em todas as regiões do país, recebemos 14 artigos para serem avaliados. A todas e todos que enviaram seus artigos para o dossiê, fica aqui registrado o nosso agradecimento.
Entre os textos publicados encontramos estudos que abordam temas relacionados aos impactos da Primeira Guerra Mundial no Brasil, o legado imediato da Segunda Guerra Mundial no campo da historiografia, perspectivas sobre os usos da justiça de transição nos países que viveram sob a União Soviética, e, ainda, análises focadas nas políticas de memória implementadas no Brasil e no Cone Sul. No que se relaciona ao contexto brasileiro, por sinal, os artigos que compõem o dossiê analisam os complexos impactos decorrentes de diferentes experiências autoritárias vividas no país: o Estado Novo varguista (1937-1945) e a ditadura civil-militar (1964-1985). O dossiê também possui artigos abordando a propaganda nazista e as continuidades da política genocida colonial na atualidade, além de trabalhos com perspectivas dos estudos literários, com análises de livros como “O Conto da Aia”, a obra de Caio Fernando Abreu e “O Diário de Anne Frank”
Além dos textos selecionados, o dossiê contou, ainda, com o recebimento de 3 artigos de autoras e autores convidados, assim como com uma entrevista concedida pelo historiador Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora. Nessa entrevista, Caldeira Neto discute o atual cenário de crescimento da extrema direita, dentro e fora do Brasil, e as especificidades metodológicas do trabalho com a História do Tempo Presente no estudo das direitas. Também o indagamos sobre o papel social dos historiadores e possíveis caminhos para o enfrentamento, político e acadêmico, do fascismo. A entrevista demonstra, como as leitoras e os leitores poderão perceber, a atualidade e urgência desse tipo de discussão em nosso contexto.
Entre os convidados, encontram-se Paolo Caroli (Universidade de Turim, Itália), Elcio Cornelsen (Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil) e Lua Gill da Cruz (Universidad de Chile, Chile). O artigo de Paolo Caroli apresenta uma análise sobre os dilemas jurídicos enfrentados na Itália para processar e punir os crimes do fascismo. Para tanto, o autor discute o peso da Lei de anistia (conhecida como “Anistia Togliatti”) no processo de transição iniciado na reta final da Segunda Guerra Mundial. Ainda sobre o artigo de Paolo Caroli, cabe destacar que se trata de uma tradição para o português exclusivamente para esta edição da Revista Escritas do Tempo.
No artigo de Lua Gill da Cruz, a autora nos apresenta uma análise focada no papel que a literatura pode desempenhar na construção da memória coletiva relacionada a diferentes períodos de exceção, com foco no contexto brasileiro e nos demais países do Cone Sul. Seguindo na linha de estudos literários, por fim, temos o artigo de Elcio Cornelsen, no qual o autor busca analisar as imagens do nazismo e da Shoah no romance A guerra no Bom Fim, de Moacyr Scliar, partindo da premissa do olhar infantil do protagonista. Registramos nosso agradecimento especial às e aos autores convidados e ao entrevistado, por contribuírem conosco.
Quando organizamos a proposta deste dossiê, nos primeiros meses de 2022, sabíamos que este era um ano eleitoral e compartilhávamos a esperança de que ventos melhores soprariam por aqui a partir de outubro. Não temos ilusões. O resultado das urnas não resolverá todos os problemas que se acumularam no país e que se aprofundaram nos últimos anos, sobretudo devido à pandemia. A extrema direita e o fascismo não deixarão de existir de uma hora para outra. Não foi assim no passado, não será assim, agora, no tempo presente. Se o resultado das urnas não basta, que o conjunto de artigos publicados aqui nos sirva de alerta e nos mostre caminhos que poderemos percorrer se quisermos reduzir as chances de que o negacionismo avance.
Uma boa leitura a todas e todos.
Referências
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. 1a Edição ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt; DONSKIS, Leonidas. Cegueira moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida. 1a Edição ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: Presentismo e experiências do tempo. 1a Edição ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
HOBSBAWM, Eric J. Nacõ̧es e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 2. ed ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. 1a Edição ed. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.
Organizadores
Carlos Artur Gallo Cabrera – Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS, Porto Alegre, 2016], com Estágio Doutoral realizado junto à Facultad de Ciencias Políticas y Sociología da Universidad Complutense de Madrid [UCM, Madri – Espanha, 2014-2015]. Professor no Departamento de Sociologia e Política [DESP] e no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de Pelotas [UFPel]. Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória – NUPPOME [IFISP / UFPel]. Pesquisador vinculado a Grupos de Pesquisa na ALACIP [Democratización de América Latina en Perspectiva Comparada – DALC], na UFF [Núcleo de estudos sobre o Estado, instituições e políticas públicas – NEEIPP], na UFPel [Arqueologia da Repressão e da Resistência] e na UFRGS [Processos Participativos na Gestão Pública]. https://orcid.org/0000-0002-0111-4400
Maria Visconti Sales – Licenciada em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014), com extensão universitária de um semestre na Universidade Friedrich-Alexander, em Erlangen-Nuremberg, Alemanha (2013). Mestre na linha de História e Culturas Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (2017). Doutoranda pela mesma instituição (início em 2018). É membro da Perpetrator Studies Network (Utrecht UniversityHolanda) e da Rede de investigação Direitas, História e Memória (DHM). É membro fundadora e coordenadora do Núcleo Brasileiro de Estudos sobre Nazismo e Holocausto (NEPAT) desde 2019. Atua na área de História Pública, com a produção de conteúdo de divulgação científica sobre nazismo e Holocausto nas redes sociais do NEPAT e no Podcast Desnazificando. https://orcid.org/0000-0003-4880-5898
Referências desta apresentação
CABRERA, Carlos Artur Gallo; SALES, Maria Visconti. Apresentação. Escritas do Tempo, v. 4, n. 12, p. 04-09, set./dez. 2022. Acessar publicação original [DR/JF]