A tarefa de definir o fascismo esbarra quase sempre na capacidade do fenômeno de se articular entre a indefinição que o caracteriza enquanto projeto e a rispidez da coação que o materializa. Vitalismo e indiferença, desprezo pelas “massas” e medo de insurreição, burocratização e ilicitude: as oscilações de um fascismo que se propõe pensamento e ação encerram contradições, disputas e aporia.
Como, então, definir aquilo que aparenta ser insondável e estarrece? Em Fascismo: definição e história, ensaio escrito em 1963, a anarquista de origem italiana Luce Fabbri desce para as linhas de choque da reflexão para trazer uma visão sóbria, engajada e densa do fenômeno.
Logo de início, Fabbri se corrige: o subtítulo, para ela, deveria ser “definição através da história” (p. 7). Não é mero detalhismo: ao usar o termo “através”, a autora indica que não se trata só de uma abordagem do fascismo pela História. É, sobretudo, uma operação crítica que torna o fenômeno necessariamente historicizado, posto de um lado a outro, atravessando a temporalidade como uma transversal que tangencia desde a Bolonha em que viveu Luce até os nossos soturnos dias, cada vez mais cheios de tétricas ressurgências de um fascismo que espreita tanto o vão entre os “de bem” [sic] e os “Outros” quanto o abismo entre engajados na destruição do fascismo e inertes minimizadores.
Desmerecido em meio à debilidade de suas representações em discursos oficiais, o “protofascismo” brasileiro destes tempos de “democradura” da austeridade cria uma conjuntura que nos situa na espera de uma tradução para a caótica realidade que, felizmente, Luce pode tornar menos obscura.
Atuando na e pela escuridão, esse protofascismo guarda flagrante semelhança com o silêncio reticente, (cheio de rancor, relutância e desprezo) que Fabbri percebia nas casas de seus colegas, filhos da pequena burguesia bolonhesa. Não por acaso, as atrozes “expedições punitivas” marcariam o momento em que aquele silêncio encontraria seu grito no esgrimir de “punhais, facas e facões” (p. 9).
A estridente sinfonia de armas brancas da Itália da década de 1920, sempre acompanhada de canções e culto à agressividade, expressava um ódio que era palpável, relacionado a situações materiais, mas que também era transversal, visto que congregava todos os silêncios. Uma metáfora usada pela autora descreve o contexto: foi como se a Primeira Guerra Mundial tivesse acordado o tigre adormecido que havia em cada um e o treinado para matar. Guardadas as diferenças, talvez não seja demasiado lembrar que “a horrenda sinfonia da crise, da hecatombe e do golpe parlamentar” (MASCARO, 2019, p. 25) foi sequência do despertar de um “gigante” que jazia em silêncio e, no seu desadormecer, transfigurou-se.
Fabbri relata como o fascismo, inicialmente visto como subproduto transitório da Primeira Guerra, passou a adotar símbolos, aglutinar os incapazes de se adaptar à vida normal e empregar métodos que envolviam crueldade e sadismo. Tal processo passou ao largo da percepção da intelectualidade, mas, segundo Fabbri, foi logo diagnosticado pelos trabalhadores, que identificaram um movimento conservador, que estava a serviço do patronato e era profundamente antissocialista.
Esse movimento, conforme explica Luce, era impulsionado por um medo de uma revolução que parecia inevitável. Aderiram ao fascismo aqueles que temiam perder suas posições sociais. Daí a retomada de um frutífero conceito de Luigi Fabbri (pai de Luce): como contrarrevolução preventiva, o fascismo surge contra os ecos de um socialismo e de suas liberdades que não chegaram a se concretizar em insurreição na Itália. Por isso, o fascismo vem preventivamente, ceifando com o feixe dos lictores os candentes desejos de liberdade antes mesmo que eles pudessem incendiar a ordem. A importância do conceito é patente: além de o fascismo, deturpando o termo, reivindicar-se “revolucionário”, o seu contexto de surgimento, como alertou Trótski (2019, p. 57 – 62), foi marcado pelas capitulações da social-democracia e pelos erros de leitura dos Partidos Comunistas italiano e alemão, de modo que o espaço de crítica radical ao sistema não foi ocupado pela esquerda.
Outro aspecto sobremodo interessante no livro é a atenção dada pela autora e pelos editores (que rechearam o texto com notas explicativas) ao modo de operação dos bandos responsáveis pelas “expedições punitivas”. Sob o véu da institucionalidade da “Milícia Voluntária Para a Segurança Nacional”, tais bandos expressaram concreta e simbolicamente suas aversões aos socialistas e ao Parlamento, sempre por meio de violência bruta e de cantos às armas e aos porretes. Cumpre salientar que Luce é cirúrgica ao afirmar que o caráter classista do movimento caracteriza-o desde o início e que isso se verifica na própria articulação política do fascismo, que notoriamente congregava nos bandos remanescentes de guerra, desempregados permanentes e estudantes embriagados de nacionalismo, porém mantendo uma hierarquia clara, no topo da qual se situavam exoficiais e filhos de latifundiários, comerciantes e industriais. Diante da atuação dos bandos, que avançaram sucessivamente pela Itália, a própria importância da “Marcha sobre Roma” figura apenas enquanto marco da história institucional.
A análise de Fabbri sobre os bandos fascistas chega a uma caracterização da violência repressiva que praticavam, diferenciando-a da violência revolucionária ao mostrar como a agressividade fascista estava permeada por medo de perder posses e posições e repleta de ódio a todos os que melhoram de vida. Na contemporaneidade, isso se constitui num fato cuja lembrança é oportuna, visto que parte da classe média brasileira, imbuída de incautas alucinações quanto ao seu posicionamento na sociedade de classes, passa a sentir-se representada por uma grotesca (e nada nova) instrumentalização do verde e do amarelo.
Para além de uma definição classista, o texto de Luce Fabbri avança em direção a uma explicação que não reduz o fascismo a um instrumento da classe dominante, mas demonstra que o fenômeno ocorreu articulando os desejos de obtenção ou preservação do “prestígio social” (p. 22). É com essa consideração que a autora descortina uma “segunda fase” do fascismo. Nela, a classe dominante se conforma com mudanças estruturais e com a utilização de mecanismos de poder que não a posse dos meios de produção, desde que isso sirva para manter sua posição. A partir disso, o controle político-burocrático (não mais a simples posse) dos meios de produção passa a caracterizar o fenômeno, que, saltando ao “poder total”1, culmina em “violência mórbida” (p. 30).
Fascismo: definição e história conclui com uma visão ampla do problema, mas é assertivo ao identificar no “desejo desesperado de conservar o poder” (p. 30) pelo menos três feições definidoras: o desprezo pelos “Outros” (ou “massas”, ainda que cooptadas), a instrumentalização conservadora de obsessões e deturpações da realidade e, por fim, a distorção das noções de autoafirmação e abnegação, de sorte que “a primeira é reduzida ao uso da força material e a segunda ao masoquismo da obediência cega” (p. 32).
A leitura da obra de Luce Fabbri não se resume a conhecer mais um alerta insistente de presença do fascismo, mas de entender a conexão entre a sede “de autoridade, direção e ordem” (MUSSOLINI, 2019, p. 38), que se verte em torrente de horror, e a inércia indiferente da atualidade, que condiciona o assassínio de si e a perpetuação da servidão (ADORNO, 2005). Somente compreendendo esse elo nebuloso é possível criar defesas contra o fascismo, tendo em conta coisas a serem cultivadas: a singularidade de cada um, a responsabilidade para com o outro e para com o coletivo, o engajamento e a consciência de classe.
Nota
1 Fabbri utiliza a categoria “totalitarismo”. Vale lembrar que o texto é de 1963, quando essa categoria ainda não havia sido submetida às pesadas críticas que hoje tornam o seu uso bem mais restrito.
Referências
ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. 2005. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Disponível em: https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-apos-Auschwitz.pdf Acesso em: 11 out. 2019.
MASCARO, Alysson Leandro. Dinâmica da crise e do golpe: de Temer a Bolsonaro. Margem Esquerda: revista da Boitempo, São Paulo, n. 32, p. 25-32, maio 2019.
MUSSOLINI, Benito. Fascismo: a doutrina. In: EDITORA NOVA FRONTEIRA. Fascismo: a doutrina, o que é e como combatê-lo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 11-51. (Textos fundamentais e históricos do século XX).
TRÓTSKI, Leon. Fascismo: o que é e como combatê-lo. In: EDITORA NOVA FRONTEIRA. Fascismo: a doutrina, o que é e como combatê-lo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019. p. 52-104. (Textos fundamentais e históricos do século XX).
Resenhista
Arthur Willian Soares Alves – Graduado em História pelo Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM); professor de História e Geografia do Ensino Médio (UNIPAM). E-mail: arthurwillian@unipam.edu.br
Referências desta Resenha
FABBRI, Luce. Fascismo: definição e história. Trad. Fernanda Grigolin, Rodrigo Millán e Aquela Mulher do Canto Esquerdo do Quadro. São Paulo: Tenda de Livros; mícroutopias; Publication Studio São Paulo, 2019. Resenha de: ALVES, Arthur Willian Soares. Pergaminho. Patos de Minas, n.10, p. 178-180, dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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