HONNETH, Axel. Das recht der freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011. Resenha de: PINZANI, Alessandro. O valor da liberdade na sociedade contemporânea. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n.94, Nov, 2012.
Das Recht der Freiheit [O direito da liberdade], o livro mais recente de Axel Honneth representa, por um lado, a tentativa mais sistemática de organizar sua teoria, que – como se sabe – tem seu centro no conceito de reconhecimento, e, por outro, a tentativa de atualizar o pensamento hegeliano1. É necessário considerar este último objetivo para melhor entender os alcances e os limites do primeiro. Em geral, tem-se a impressão de que o autor, ao seguir de perto a estrutura da Filosofia do direito de Hegel, coloca sua própria teoria em um corpete rígido e justo demais. A proximidade com Hegel parece mais evidente na segunda parte do livro, a mais propriamente sistemática, que é estruturada de forma tripartida e segue de perto a estrutura da seção “Eticidade” da Filosofia do direito. À parte sobre família do texto hegeliano corresponde, no texto de Honneth, a parte sobre relações pessoais; àquela sobre sociedade civil corresponde a parte sobre o mercado; finalmente, à parte sobre o Estado corresponde a parte sobre o Estado democrático. Não se trata de meras analogias formais, já que a pretensão é atualizar o pensamento hegeliano, livrando-o da sobrecarga metafísica2.
Contra a perspectiva normativa que busca seu ponto de partida em normas, princípios ou procedimentos ideais, e não na empiria e na descrição de sociedades concretas – perspectiva que caracteriza a maioria das teorias da justiça contemporâneas (John Rawls, Ronald Dworkin, etc.) -, Honneth defende uma perspectiva “hegeliana”, que dê relevância central aos acontecimentos históricos e à interpretação deles nos termos do que o autor chama de reconstrução normativa, ou seja
[…] um procedimento que tenta traduzir para o plano da teoria social as intenções normativas de uma teoria da justiça, tomando como fio condutor, para selecionar e elaborar o material empírico, valores justificados de forma imanente [à própria sociedade]: as instituições e práticas existentes são analisadas e apresentadas em relação às suas prestações normativas e na ordem pela qual se tornam significativas para a encarnação e realização dos valores socialmente legitimados3.
A análise das instituições e práticas sociais existentes é, portanto, ao mesmo tempo, uma avaliação com base em sua capacidade de realizar os valores próprios da sua sociedade (e não de outra). Ora, isso levanta um problema metodológico importante, já que a análise histórica de Honneth não é acompanhada, como acontece em Hegel, por uma visão metafísico-racionalista que vê na história das instituições o caminho do Espírito, isto é, um progresso constante, ainda que descontínuo. A renúncia a tal visão abre a possibilidade de que a história não consista em um progresso, mas possa resultar em regressos e recaídas na irracionalidade e na barbárie.
Honneth, contudo, não parece disposto a aceitar completamente essa conclusão, que tornaria questionável a própria noção de uma reconstrução normativa. Portanto, ao longo do livro, descreve os fenômenos históricos, que lhe servem como base para sua reconstrução normativa, como se constituíssem um caminho fundamentalmente progressivo e positivo. Embora reconheça a existência de patologias sociais e de desenvolvimentos errados [Fehlentwicklungen], termina seu livro expressando a esperança (ainda que não a certeza, como o faria Hegel) de que é possível que surja uma “cultura europeia de cuidados compartilhados e de solidariedades ampliadas”4.
Na leitura de Honneth, os valores legítimos característicos das sociedades liberal-democráticas modernas “se fundiram em um único, a saber, na liberdade individual nos seus sentidos plurais que conhecemos”5, não porque a liberdade represente em si um valor superior aos outros, mas porque a própria sociedade moderna ocidental lhe atribui esse valor superior. Neste sentido, Honneth se serve do conceito de justiça a partir de uma perspectiva sociológica e não abstratamente normativa: trata-se de considerar o que uma determinada sociedade considera justo. Portanto, é possível analisar as diferentes esferas que formam nossa sociedade (relações íntimas, mercado e Estado democrático) com base em como e quanto realizam a liberdade individual6. Na leitura de Honneth, todas as lutas por reconhecimento social “escreveram em seus estandartes o lema da liberdade individual”. Mais do que isso: na modernidade “a exigência de justiça pode ser legitimada publicamente somente se faz referência, de uma maneira ou de outra, à liberdade individual”7.
A centralidade da liberdade individual não implica, contudo, a assunção de um paradigma, tipicamente liberal, de individualismo ontológico ou metodológico: Honneth não parte da ideia de que os indivíduos representam um prius ontológico, isto é, que existem anterior e independentemente do seu contexto social; tampouco faz do indivíduo o juiz último da legitimidade das instituições sociais, como na tradição liberal8. Seu conceito de liberdade individual não desconsidera o fato de que o indivíduo está desde sempre inserido em um contexto social caracterizado pela existência de instituições e práticas sociais legítimas.
Hegel tinha dividido sua Filosofia do direito em três partes, dedicadas respectivamente ao direito abstrato, à moralidade e à eticidade. Honneth identifica três diferentes sentidos de liberdade que, grosso modo, correspondem à tripartição hegeliana: a liberdade negativa ou jurídica, a liberdade reflexiva ou moral e a liberdade social9.
A liberdade jurídica está ligada à existência de um sistema de direitos subjetivos, surgido na modernidade por um processo paulatino. Honneth reconhece que inicialmente os direitos subjetivos tiveram primariamente caráter econômico, com o primado do direito à propriedade – primado não somente prático, mas também teórico (de Locke ao próprio Hegel tal direito recebe um lugar de primazia nas relações dos indivíduos entre si e com a comunidade). Contudo, ao longo do tempo, os direitos subjetivos acabaram criando um espaço de proteção do indivíduo, que lhe permite desenvolver autonomamente seu plano de vida independentemente das concepções e dos valores socialmente dominantes. Os direitos subjetivos constituem uma esfera privada, à qual o indivíduo pode retirar-se, subtraindo-se às obrigações comunicativas ligadas à exigência de justificar escolhas de vida e valores individuais10.
Mas na liberdade jurídica estaria presente o risco de uma patologia social: a total identificação, pelos indivíduos, de sua liberdade com a liberdade jurídica, isto é, com seus direitos negativos e que, portanto, tais direitos acabem sendo os elementos constitutivos do plano de vida de seus titulares. Assim, os sujeitos tendem a “retirar-se na gaiola de seus direitos subjetivos e a pôr-se perante os outros exclusivamente como pessoas jurídicas”, demandando a resolução de todos os seus conflitos unicamente aos tribunais. A pessoa se reduz assim à “soma de suas pretensões jurídicas”11, fechando-se ao fluxo comunicativo que a une às outras pessoas12. Os direitos são usados, portanto, como uma barreira às exigências de justificação que provêm dos outros indivíduos.
O segundo tipo de liberdade, a liberdade moral, coincide com aquilo que na tradição filosófica foi definido como “autonomia moral”, e consiste basicamente na capacidade de pôr em questão normas, exigências ou instituições socialmente válidas com base em razões universais, isto é, com base em argumentos que poderiam encontrar o consenso de todos os envolvidos (manifesta-se aqui a influência da teoria do discurso de Habermas). Em outras palavras, cada indivíduo é livre para questionar as exigências morais que a sociedade lhe impõe, contanto que desde um ponto de vista universal. Neste sentido (como salientava Hegel em sua crítica a Kant), essa liberdade toma uma forma negativa: é a liberdade de rechaçar normas ou instituições sociais que não superem o teste de universalização (isto é, que se fundam sobre argumentos que não podem encontrar o consenso dos envolvidos). Isso implica que – contrariamente ao que acontece no caso da liberdade jurídica – os sujeitos estão dispostos, se necessário, a justificar suas ações e suas escolhas recorrendo a argumentos universalizáveis13. A liberdade moral exige, para ser exercida, não somente que os indivíduos possuam a capacidade de distinguir entre razões corretas ou falsas, mas também que sejam capazes de colocar-se no lugar dos outros.
Justamente essa capacidade, contudo, abre o risco de outras duas patologias sociais: o indivíduo tornar-se um moralista incapaz de situar-se no próprio contexto social, agindo como se tal contexto não existisse, isolando-se socialmente e tendendo a considerar-se como um “legislador” moral todo-poderoso, ou chegar a uma postura de verdadeiro terrorismo com motivações morais, a partir da qual a ordem social é considerada injusta e imoral na sua totalidade, exigindo a sua destruição14.
Ao terceiro tipo de liberdade, à liberdade social, são dedicados quase dois terços do livro, já que nela se realizaria, para Honneth, a liberdade do indivíduo. Em relação às outras duas, Honneth afirma que elas se comportam de forma “parasitária perante uma práxis de vida social que não somente as precede sempre, mas à qual devem também seu direito de existir”15. A liberdade jurídica e a moral permitem que o indivíduo distancie-se ou feche-se perante as exigências ligadas a relações sociais preexistentes, mas são incapazes de criar elas mesmas “esta realidade intersubjetivamente compartilhada no interior do mundo social”16. A tese central de Honneth, nesse sentido, é a de que
a liberdade individual alcança uma realidade socialmente experimentável e socialmente vivida somente em construtos institucionais que dispõem de obrigações complementares ligadas a papéis [sociais], enquanto nas esferas do direito e da moral, previstas “oficialmente” para ela, possui somente o caráter de um mero distanciamento ou de uma revisão reflexiva17.
Isto é, experimentamos nossa liberdade individual somente no contexto de obrigações sociais que surgem do fato de desempenharmos certos papéis sociais (por exemplo, enquanto parceiros, pais, amigos, agentes econômicos, produtores, consumidores, cidadãos, etc.). Essa liberdade é social, pois, longe de isolar o indivíduo do contexto social no qual se encontra, só é vivida em tal contexto, isto é, na interação com outros indivíduos. Isso leva Honneth a não identificar patologias sociais ligadas ao seu exercício, já que tais patologias remetem a um mal-entendido sistemático que leva o indivíduo a atribuir um sentido errado à sua liberdade jurídica ou moral – mal-entendido que, contudo, tem suas causas nas próprias formas de liberdade em questão; no caso da liberdade social, estamos perante desenvolvimentos errados que, segundo Honneth, não seriam provocados pelo próprio sistema da liberdade social. Ora, com isso, o autor abre espaço para uma ambiguidade, pois aparentemente as causas de tais desenvolvimentos não seriam imanentes ao sistema descrito, por exemplo à esfera do mercado ou do Estado democrático. Na realidade, como o próprio Honneth explicou em ocasião de uma discussão sobre seu livro realizada em Berlim em fevereiro de 2012, no caso da liberdade social, os fenômenos negativos se dão quando um certo patamar de desenvolvimento de tal liberdade é atingido e, em seguida, novamente abandonado. Trata-se, em suma, de regressões históricas, que levam a sociedade a perder um nível de liberdade social que já tinha alcançado, e não de patologias individuais. Por isso, contrariamente ao que acontece nos capítulos dedicados à liberdade jurídica e moral, o objeto principal de Honneth nessa parte é uma leitura do desenvolvimento histórico das três esferas nas quais se realiza a liberdade social: as relações pessoais, o mercado e o Estado democrático. Trata-se, nesse caso, de ver qual é a contribuição das três esferas à realização daquela liberdade, na qual se concentram os valores considerados legítimos na sociedade dos países industrializados e democráticos da Europa ocidental. Como acontece com Hegel, contudo, o leitor suspeita que a reconstrução normativa em pauta tenha como objeto uma sociedade específica, a saber, a do autor: a Alemanha, já que boa parte do material empírico apresentado refere-se evidentemente, ainda que não explicitamente, à sociedade alemã e só em parte pode ser visto como uma descrição fiel de outras sociedades, inclusive as de outros países industrializados.
Assim, na reconstrução da evolução das maneiras de viver as relações pessoais, que compreendem amizade, relações íntimas (quer no sentido de relações amorosas, quer no sentido de relações sexuais) e família, Honneth mostra como se passa da visão clássica de amizade masculina a formas de amizade entre pessoas de diferentes gêneros, ou como se passa do amor romântico ao amor “livre” dos anos 1970 e a uma maior abertura em relação a tais questões, ou como a família patriarcal ampliada dá lugar à família nuclear tradicional, na qual os pais ficam presos a seus papéis (o homem trabalha e sustenta a família, a mulher fica em casa cuidando dos filhos), à família moderna, na qual a divisão dos papéis entre os gêneros não é tão rígida, e, finalmente, às novas famílias, não mais compostas por dois pais de gênero diverso e pelos filhos, mas, eventualmente, por pais do mesmo gênero ou por diferentes casais de pais, consequências de divórcios, etc. Essa “história”, embora incompleta (faltam, por exemplo, formas de relações pessoais importantes como clubes, associações, camaradagem, etc.), é, provavelmente, a menos problemática para efetuar uma reconstrução normativa que aponte para um progresso. É significativo que o único risco de um desenvolvimento errado mencionado diga respeito à família e se refira à ausência eventual de políticas públicas de apoio às famílias (portanto, seja atribuível à esfera da política).
A tarefa mais árdua talvez seja mostrar como a esfera do mercado pode ser o lugar onde se realiza a liberdade social dos indivíduos. O próprio Honneth reconhece as dificuldades ligadas a essa tarefa, uma vez que o sistema da economia de mercado capitalista não parece minimamente orientado à construção de uma relação de reconhecimento recíproco, na qual os indivíduos possam ver na liberdade dos outros a condição para o exercício da sua própria liberdade, como exige o conceito de liberdade social que deveria ser realizado pela esfera do mercado18. Destarte, parece difícil ver como “a esfera do mercado organizado de forma capitalista” possa ser considerada uma “instituição ‘relacional’ de liberdade social”19. É verdade que tal esfera pressupõe a institucionalização de direitos individuais que correspondem à criação da liberdade jurídica; e que, portanto, nela os indivíduos possuem um mínimo de liberdade. Contudo, prevalece a concentração no interesse particular e uma visão pela qual cada um vê no outro meramente um meio para alcançar seus fins particulares. O atual mercado capitalista (quer o mercado de trabalho, quer o mercado “tradicional” onde se trocam mercadorias) tende a isolar os indivíduos uns dos outros e a convencê-los de que a única coisa que conta é a maximização dos lucros individuais, não a satisfação das carências sociais. Isso leva os indivíduos a não assumir aquela atitude de confiança e benevolência que, já segundo Adam Smith, representa a condição necessária para o correto funcionamento do sistema20. Em harmonia com essa visão, Honneth pensa, então, que as relações contratuais no mercado de trabalho deveriam obedecer não somente a imperativos econômicos (a “lei” da oferta e da procura, por exemplo), mas também a normas e princípios normativos independentes e, sobretudo, deveriam ser expressão de relações de reconhecimento recíproco: “os atores econômicos devem ter se reconhecido de antemão como membros de uma comunidade cooperativa antes de poderem atribuir-se reciprocamente o direito de maximizar seu lucro no mercado”21.
Na sua reconstrução normativa do desenvolvimento histórico do mercado capitalista, Honneth vê a “realização paulatina dos princípios de liberdade social, que lhe servem de fundamento e asseguram sua legitimação”. Em particular, menciona os mecanismos institucionais que visam garantir um “procedimento discursivo de acordo de interesses” e ancorar juridicamente “a igualdade de oportunidades”22. Na realidade, aqui como em outros momentos, Honneth parece referir-se à realidade alemã, na qual, como se sabe, existe (melhor seria dizer: existia – em consideração das profundas transformações pelas quais passou o modelo de mercado social alemão) um mecanismo de cogestão das empresas e de harmonização dos interesses por meio de contratos nacionais e da mediação do governo. Em outros países, contudo, os mecanismos institucionais mencionados por Honneth permanecem uma utopia, e o mercado de trabalho não obedece a regras estabelecidas discursivamente, nem ao princípio da igualdade de oportunidades. Portanto, a reconstrução normativa, neste caso, parece questionável não somente com base na interpretação do dado empírico (isto é, não somente questionando se até no modelo social de mercado alemão de fato os mecanismos mencionados por Honneth funcionaram da maneira descrita pelo autor), mas também com base nos próprios dados empíricos apresentados.
Além disso, chamam a atenção os fatos de Honneth não tratar o mercado financeiro, hoje tão dramaticamente importante, e não mencionar em momento nenhum a grande cisão histórica marcada pela queda do Muro e pelo fim do socialismo real – o que admira, em uma obra que pretende oferecer uma reconstrução normativa baseada na história das sociedades ocidentais modernas. A situação atual, caracterizada pelo aumento vertiginoso do desemprego na maioria dos países industrializados, pelo desmantelamento do modelo social de mercado alemão, pela progressiva mas constante redução dos direitos trabalhistas, pela concorrência entre países, que querem oferecer às empresas condições mais vantajosas à custa dos empregados, etc., é considerada por Honneth um mero desenvolvimento errado de um processo que, de outra forma, poderia ter levado a uma sociedade mais justa e não, como acham outros autores23, como a consequência inevitável de certa lógica imperante nas últimas décadas de privatizações e desregulamentações.
A última parte do livro é dedicada à reconstrução normativa do processo que levou do Estado liberal de direito ao atual Estado democrático constitucional e social. Em particular, o autor analisa “a instituição da esfera pública democrática como um espaço social intermédio, no qual cidadãs e cidadãos devem formar aquelas convicções passíveis de um consenso geral, que deveriam ser respeitadas pelo processo de legislação parlamentar por meio de procedimentos próprios do Estado de direito”24. Contrariamente ao que acontece com as relações pessoais e o mercado, a realização da liberdade social nessa esfera depende da sua realização nas outras duas. A reconstrução normativa da formação da esfera pública democrática oferecida por Honneth segue em geral a operação análoga realizada por Habermas em 196225. Honneth salienta a importância do Estado-nação nesse processo e fala da necessidade – para o desenvolvimento de uma esfera pública democrática – de “uma certa medida de ‘patriotismo'”, que, contudo, deve assumir hoje o aspecto de um “patriotismo constitucional”, para que se estabeleçam “pontes de comunicação” entre órgãos de governo e população26.
Falando dos desenvolvimentos errados nessa esfera, Honneth menciona o fato de que a mídia deixou de gerar informação para comercializar-se e tornar-se um mecanismo de produção de riqueza através da venda de de espaço publicitário, e lamenta a apatia presente entre os cidadãos, que parecem não ter interesse em participar ativamente do processo de formação da vontade política (que não se limita somente à participação nas eleições, mas compreende a participação nas discussões que acontecem no contexto da esfera pública). Honneth apresenta cinco condições que deveriam permitir um melhor exercício da liberdade social, embora em princípio não possam ser preenchidas todas e completamente27, mas sem as quais não seria possível pensar a esfera pública como esfera de liberdade social. As menos problemáticas dizem respeito à existência de garantias jurídicas para a participação política dos indivíduos e à presença de um espaço comunicativo comum, já a terceira, relativa à existência de um sistema diferenciado de mídia, é mais difícil de ser realizada; extremamente complicada é a realização das duas últimas: a disponibilidade dos cidadãos a se engajarem nas discussões públicas e o desenvolvimento de um sentimento de solidariedade cívica mantido por uma correspondente cultura política da solidariedade.
As convicções elaboradas nos debates públicos devem transformar-se em estratégias concretas de ação ou em normas jurídicas através da atividade legislativa dos parlamentos, isto é, através da ação do Estado. Honneth define o Estado como “o ‘órgão reflexivo’ ou a rede de instâncias políticas com a ajuda da qual os indivíduos, que se comunicam entre si, tentam transpor na realidade suas visões, alcançadas ‘experimental ou deliberativamente’ relativamente às soluções moral e pragmaticamente adequadas de problemas sociais”28. Nessa visão, o Estado é o instrumento através do qual os cidadãos ativos politicamente realizam suas convicções e, portanto, sua liberdade social. Contudo, os desenvolvimentos errados são particularmente numerosos e concernem à incapacidade concreta do Estado em lidar com os problemas ligados à economia, com a influência dos lobbies, com a burocratização dos partidos políticos, etc. Uma saída possível é identificada por Honneth na capacidade de pressionar os parlamentos demonstrada pelos movimentos sociais e as associações civis29.
Apesar dos diagnósticos negativos sobre os inúmeros desenvolvimentos errados que assombram as esferas do mercado e do Estado, o livro termina com uma nota otimista: a esperança no surgimento de uma cultura política democrática e participativa capaz de retomar o caminho fundamentalmente progressivo registrado por Honneth na sua reconstrução normativa da maneira em que a liberdade social veio afirmando-se como o valor principal da sociedade ocidental moderna. O otimismo de Honneth não é, portanto, crença dogmática no progresso de tal liberdade (como em Hegel), mas um otimismo cauteloso e consciente das dificuldades com as quais ela ainda tem que lidar.
Notas
1 Tarefa que já animava obras anteriores, como Sofrimento de indeterminação (São Paulo: Esfera Pública, 2007) e o próprio Luta por reconhecimento (São Paulo: Editora 34, 2003), até agora seu livro mais conhecido e teoricamente mais denso.
2 Operações análogas foram praticadas nos últimos anos por alguns pensadores norte-americanos. Ver PINKARD, T. Hegel’s Phenomenology. The Sociality of Reason. Cambridge: Cambridge University Press, 1994; NEUHOUSER, Frederick. Foundations of Hegel’s Social Theory. Actualizing Freedom. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2000. Pippin, Robert. Hegel’s Practical Philosophy. Rational Agency as Ethical Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2008.
3 HONNETH, A. Das Recht der Freiheit. Berlim: Suhrkamp, 2011, p. 23. [Citações traduzidas pelo autor.]
4 Ibidem, p. 624.
5 Ibidem, p. 9.
6 Em nota, o autor faz uma afirmação bastante relevante do ponto de vista teórico: “Em seguida não considerarei a ideia de ‘igualdade’, por mais influente e rica de consequências que seja, como um valor independente,” já que pode ser entendida somente em relação à igualdade individual (p. 35, nota 1). Essa breve observação é o único espaço que Honneth reserva em seu livro ao conceito de igualdade, tradicionalmente central nas teorias da justiça (o termo nem sequer aparece no índice analítico).
7 HONNETH, op. cit., p. 38.
8 Como veremos, Honneth considera até certo ponto estas perspectivas patologias sociais.
9 Na primeira parte do livro o autor realiza uma reconstrução histórica dos diferentes conceitos de liberdade, servindo-se da obra de pensadores bastante diversos entre si: Hobbes, Sartre, Nozick, Rousseau, Kant, Rawls, Habermas, os românticos alemães, Herder, Mill, Arendt, Hegel, Marx e Gehlen. Neste contexto não temos espaço para dedicar-nos à análise da leitura que Honneth faz desses autores e que, de qualquer maneira, é funcional à parte mais sistemática do livro, dedicada à exposição teórica dos três conceitos de liberdade.
10 Trata-se, portanto, de direitos meramente negativos, já que os direitos políticos pertencem, segundo Honneth, à esfera da liberdade social.
11 HONNETH, op. cit., pp. 161 e 164.
12 Analogamente, na seção da Filosofia do direito de Hegel dedicada ao direito abstrato, o autor criticava a tendência, típica de muitos juristas e filósofos, a reduzir o indivíduo à mera pessoa jurídica detentora de direitos formais.
13 HONNETH, op. cit., p. 193.
14 Aqui também há um eco da crítica à posição da subjetividade moral efetuada por Hegel na seção “Moralidade” da sua Filosofia do direito.
15 HONNETH, op. cit., p. 221.
16 Ibidem, p. 222.
17 Ibidem, p. 229.
18 Ibidem, p. 318.
19 Ibidem, p. 302.
20 Idem, 330 e ss.
21 Ibidem, p. 349.
22 Ibidem, p. 358.
23 Por exemplo: ROSA, H. Beschleunigung. Die Veränderung der Zeitstrukturen in der Moderne. 2. ed. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2005; Foster, J. B. e Magdoff, F. The Great Financial Crisis. Causes and Consequences. Nova York: Monthly Review Press, 2009; Stieglitz, J. Freefall. Free Markets and the Sinking of the Global Economy. Londres: Penguin, 2009; Dörre, K., Lessenich, S. e Rosa, H. Soziologie – Kapitalismus – Kritik. Eine Debatte. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 2009; Chang, H.-J. 23 Things They Don’t Tell You About Capitalism. Londres: Allen Lane, 2010; Harcourt, B. E. The Illusion of Free Markets. Cambridge (MA): Harvard University Press, 2011.
24 HONNETH, op. cit., p. 471.
25 HABERMAS, J. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
26 HONNETH, op. cit., pp. 495-9.
27 Ibidem, p. 540, nota 505.
28 Ibidem, p. 570.
29 Ibidem, p. 608.
Alessandro Pinzani – Professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
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