DARNTON, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Tradução Rubens Figueiredo. Resenha de: QUELER, Jefferson. Fazer a história cantar: oralidade e política na Paris do século XVIII. Topoi v.17 n.32 Rio de Janeiro Jan./June 2016.
Buscar e compreender sons do passado, fazer a história cantar. Estes são os principais objetivos de Robert Darnton neste livro recentemente traduzido no Brasil – a publicação original foi feita nos Estados Unidos em 2010. Intelectual renomado, capaz de entrar em fóruns de discussão composto por historiadores do porte de François Furet, Albert Soboul e Roger Chartier, e ainda assim propor abordagens e interpretações novas para a França do Antigo Regime; pesquisador notável, capaz de encontrar documentação inédita em arquivos e seguir suas pistas e desdobramentos em fontes as mais variadas possíveis; dono de uma narrativa ágil e eletrizante, capaz de dialogar não apenas com a academia, como também com o público em geral; ele certamente traz todos esses elementos nesta obra e faz jus à série de resenhas elogiosas que ela vem recebendo em revistas acadêmicas e jornais de grande circulação, tanto no Brasil quanto no exterior.1 Contudo, pouco ou nada se discutiu sobre suas contribuições à luz dos debates em torno do seu tema central, a oralidade.
Entre as famosas publicações do autor, é possível encontrar estudos sobre a Encyclopédie, literatura pornográfica, impressos em geral; material subversivo amplamente consumido e discutido na França às vésperas da revolução de 1789. Na obra ora analisada, Darnton continua a lidar com o tema da calúnia política sobre a monarquia francesa; e é bem cuidadoso ao não estabelecer nenhuma relação simplista de causa e efeito entre a primeira e a queda da segunda. Porém, sua abordagem dos impressos e dos manuscritos ganha uma coloração nova: a palavra escrita passa a ser compreendida em suas interações com as redes de comunicação oral da Paris pré-revolucionária.
Passemos à trama. Em meados do século XVIII, o estudante de medicina François Bonis foi preso pela polícia parisiense por levar consigo versos que detratavam o monarca Luís XV. Na sequência da investigação, outras treze pessoas foram presas, membros dos estratos médios da sociedade francesa, como clérigos, burocratas, outros estudantes e um professor universitário. Mais cinco poemas subversivos afloraram entre os acusados. O Caso dos Quatorze, como ficou registrado nos arquivos policiais, revelava a extensa rede de comunicação no âmago da sociedade francesa. Versos eram copiados em pedaços de papel e carregados em bolsos de colete ou em mangas de camisa para serem recitados ou cantados entre amigos e, por vezes, em público. Tais composições eram reproduzidas e repassadas em grande quantidade, muitas vezes memorizadas pelos seus portadores. A ambição dos investigadores, de encontrar o autor dos versos, nunca foi satisfeita, porém. Segundo Darnton, nem poderia ser diferente, pois tais canções eram variações de uma “criação coletiva”.
Ora, o fato de a polícia não ter encontrado as pessoas que primeiramente compuseram os versos não significa que não existisse um ponto de partida; tampouco que não houvesse autoria envolvida no processo de difusão dos mesmos. A antropóloga Ruth Finnegan, em trabalho clássico publicado originalmente no final da década de 1970, criticou a ideia de que a poesia oral é produzida de maneira anônima ou coletiva. Em vez disso, é possível afirmar que os poetas envolvidos nessa tarefa são capazes de expressar certo grau de individualidade, seja na composição, seja na performance.2 A pesquisa de Darnton aponta também nessa direção. Ele chega a afirmar que a declamação dos versos ou a execução das músicas podiam alterar seus significados: o ritmo, o tom da voz, a melodia escolhida definiam a seriedade ou deboche das apresentações.
As referências bibliográficas do historiador para lidar com o tema da oralidade fornecem pistas para entender sua interpretação. Ele menciona tão somente o trabalho The Singer of Tales de Albert Lord. Trata-se de livro pioneiro, um clássico publicado em 1960. Contudo, muitas de suas conclusões vêm sendo contestadas nas últimas décadas, inclusive pelo referido trabalho de Finnegan.3 Em seu livro, ademais, a antropóloga africanista cita e analisa numerosos exemplos de poesia política, coletados especialmente durante os diferentes processos de independência política na África na segunda metade do século XX; poemas empregados para propósitos tão distintos quanto ridicularizar os colonizadores, conferir unidade à resistência, e esclarecer o funcionamento de processos eleitorais para populações majoritariamente analfabetas.4 Em suma, a poesia política de caráter oral é um fenômeno bastante conhecido e estudado, que demorou a ganhar destaque em fóruns de pesquisa como o da história da França do Antigo Regime; ainda que tenha sido estudada com grande engenho e criatividade por Darnton. De qualquer forma, este certamente podia ter se beneficiado dos debates mais recentes travados em torno do tema da oralidade.
Paul Zumthor indicou a amplitude do fenômeno da poesia oral no passado europeu. De caráter urbano, a canção de protesto esteve presente na França, na Inglaterra, na Alemanha e na Itália dos séculos XV e XVI. Foram encontradas “baladas sediciosas” em Veneza por volta de 1575, canções francesas da época das guerras de religião, mazarinadas (panfletos contra o Cardeal Mazarino). Tal gênero poético, desprezado pelos eruditos, mas seguido atentamente pela polícia, também aflorou no século XVII monárquico. Nas cidades holandesas, por volta de 1615, canções apareciam tomando partido pró ou contra Johan van Oldenbarnevelt na luta pela independência da Espanha; nas cidades inglesas, durante o reinado de Charles I, as streetballads atacavam com virulência os homens de negócio monopolistas. Impressores especializados e cantores de rua difundiam opúsculos satíricos, canções e profecias, frequentemente com teor político. É possível mencionar ainda a poesia operária cantada na França da época dos enciclopedistas. Havia a comemoração dos conflitos dos papeleiros de Angoulême em 1739 ou da revolta dos canuts lioneses em 1786.5 Em outras palavras, o livro de Darnton retoma, ainda que de maneira indireta, uma tradição documental bastante consolidada.
Os motivos da eclosão desse tipo de problemática em seu trabalho podem ser identificados nas páginas iniciais de seu livro. Darnton afirma que a propalada sociedade da informação dos dias de hoje favorece a emergência de uma consciência de que vivemos num mundo completamente diferente de tudo que já existiu. Em sua opinião, entretanto, as redes de comunicação da Paris do século XVIII demonstram a existência de uma sociedade da informação muito antes da cunhagem deste termo, antes da popularização da internet. É claro que sua análise tem o mérito de apontar as insuficiências de tal conceito; porém, ela acaba utilizando-o para entender não apenas o seu presente, como também a sociedade francesa do Antigo Regime. Ora, os fluxos de comunicação contemporâneos, sob o impacto de tecnologias como a imprensa, o rádio, a televisão e o computador, tornam a comunicação contemporânea radicalmente distinta daquela experimentada na França do século XVIII, seja do ponto de vista qualitativo, seja do quantitativo.
Por outro lado, Darnton apresenta um pensamento provocador e convincente para a redefinição da noção de opinião pública. Ele critica o tratamento desta última pela perspectiva sociológica de Habermas ou pela nominalista de Foucault. Em sua opinião, é possível conceber um público discutindo assuntos políticos e criticando os governantes mesmo antes do aparecimento do referido termo. Numa França sem periódicos, patrulhada pela censura oficial, as canções e versos atuavam como se fossem jornais cantados ao fazer a sátira da monarquia e seus delegados, bem como a crônica dos principais acontecimentos políticos. Por exemplo, “Qu’une bâtarde de catin”, canção surgida na corte para detratar Madame de Pompadour, amante de Luís XV, ganhou as ruas e transformou-se ao sabor dos interesses e intervenções de seus difusores. Muitos de seus versos foram modificados e novos assuntos acrescentados a ela. Em algumas de suas versões, foram comentadas as negociações de paz da Guerra de Sucessão Austríaca, as últimas disputas intelectuais de Voltaire ou a resistência a um novo imposto. De origem cortesã, muitos versos e músicas podiam deixar os salões da nobreza e depois retornar a eles com acréscimos das ruas. Não é por menos que Luis XV considerasse em certa medida as opiniões de seus súditos. Ainda que projetos revolucionários e propostas para derrubar a monarquia não fizessem parte de tais canções, Darnton demonstra com profundidade como estas últimas delineavam uma espécie de esfera pública numa sociedade fortemente marcada pela oralidade.
O historiador é bastante arguto ao interpretar esse material e estimar seu impacto. As canções, como ele destaca, veiculavam mensagens e eram igualmente eficazes em fixar seus conteúdos, uma vez que atuavam como poderosos instrumentos mnemônicos. Em meio às poesias e versos encontrados, especialmente em cancioneiros, Darnton notou indicações das melodias que deveriam acompanhá-los. Seguindo essas pistas, ele localizou uma série de partituras destinadas a reproduzi-las. Na Paris revolucionária, a poesia oral era cantada nas ruas com o apoio de violinos, flautas, elementos que aumentavam sua eficácia no processo comunicativo. O livro de Darnton chegou a ser criticado pela suposta inadequação de seu título, dado que este se propõe a estudar poesia, mas envereda pela análise de músicas.6 Crítica injusta, pois a poesia oral, em sua maioria, é cantada.7 Outro elemento que merece destaque em sua análise é a identificação das canções no interior de seus respectivos gêneros. Entre elas, emergem jogos de palavras, baladas populares, piadas, contos de natal burlescos, diatribes. Trata-se de observação fundamental, pois as formas das histórias narradas e comentadas nas letras, e não apenas seus ritmos e tons, eram componentes fundamentais na definição de seus sentidos.
Darnton questiona-se ainda sobre a recepção dessas músicas pelos seus ouvintes. Em busca de respostas, ele analisou memórias e diários (como o do Marquês d’Argenson, irmão do Conde d’Argenson, o encarregado-mor da repressão no Caso dos Quatorze) referentes àquele período, e pôde confirmar não apenas a origem cortesã de muitos dos poemas satíricos, como também os incômodos que tais versos podiam causar à monarquia. Em sua análise da recepção, contudo, Darnton não consegue avançar satisfatoriamente, uma vez que os sons, fugazes como o são, deixam poucos traços nos arquivos. De modo a suprir essa lacuna, ele estabeleceu parceria com a cantora francesa Hélène Delavault, a qual procurou reinterpretar algumas das referidas canções, de modo a oferecer uma ideia de como elas eram veiculadas nas ruas no passado – com direito a anexos e hiperlink que disponibiliza tais músicas gratuitamente aos leitores. Evidentemente, tal material não tem valor de prova na argumentação do autor; entretanto, possui o mérito de conferir ainda mais sabor à sua narrativa, um forte elemento de persuasão.
Suas técnicas de sedução, sua elevada qualidade de pesquisa e de interpretação, sem esquecer a estimada reputação do autor e o sedimentado interesse pela história francesa, talvez ajudem a explicar a boa recepção deste livro sobre poesia política no Brasil. Para efeitos de comparação, vale a pena destacar que o historiador irlandês Vincent Morley publicou trabalho muito parecido em 2002. Nessa obra de pouquíssima repercussão no país, o autor se dedica a investigar os impactos do processo de independência das colônias norte-americanas entre 1760 e 1783 na opinião de diversos setores da sociedade irlandesa. Morley demonstra como as notícias sobre o conflito que cruzavam o Atlântico e eram publicadas nos principais jornais irlandeses logo adentravam o universo da oralidade, sendo transformadas em música e versos em língua vernácula.8 Seu conhecimento de gaélico permitiu-lhe traduzir essas composições e perceber como a grande massa da população católica e analfabeta, outrora considerada passiva e despolitizada, acompanhou de perto os acontecimentos na América do Norte e apoiou a resistência dos norte-americanos ao domínio britânico, algo a que também aspirava, transformando figuras como George Washington em heróis populares.9 Não se trata aqui de diminuir a originalidade de Darnton, mas apenas de situar seu trabalho numa tendência mais ampla. Ademais, tal exemplo nos leva a refletir sobre as condições de circulação de conhecimento historiográfico, ou melhor, sobre os aspectos que levam um determinado assunto ou abordagem a receber atenção e reconhecimento entre historiadores.
De qualquer maneira, as análises e conclusões de Darnton contribuem não apenas para a história francesa do século XVIII. Elas também sugerem fecundos caminhos de pesquisa em diversas outras sociedades e períodos. No caso brasileiro, Sílvio Romero, em trabalho de folclorista, afirmava no final do século XIX que seria importante investigar a relação da poesia popular com nossos movimentos políticos e sociais. Em seu trabalho de compilador, ele notou a ausência de composições tratando das guerras de Independência, dos Farrapos, dos Cabanos, dos Balaios e do Paraguai, lacuna que em sua opinião poderia ser preenchida.10 Além disso, é de amplo conhecimento a presença de figuras políticas nos versos da literatura de cordel, especialmente vigorosa na região nordeste, o que também chama a atenção para a importância do estudo da poesia política de caráter oral no período republicano. O método sugerido por Darnton instiga a historiografia brasileira a encontrar e analisar esse gênero de sons do passado, e inseri-los nos debates travados em torno do tema da oralidade fortemente desenvolvido nos últimos anos. Seu livro deve interessar também aos estudantes da área de humanidades e comunicação, bem como ao público não especializado em geral.
1Dois exemplos significativos no Brasil: CABRAL, Luís Felipe. Darnton, Robert. Poetry and the Police: communication networks in eighteenth-century Paris. Rev. Bras. de Hist., v. 34, n. 68, p. 333-338, 2014; MATTOS, Yllan de; DILLMAN, Mauro. Darnton, Robert. Poesia e polícia: redes de comunicação na Paris do século XVIII. Anos 90, Porto Alegre, v. 22, n. 41, p. 357-362, 2015. O primeiro, baseado no texto original, faz uma boa descrição do conteúdo da obra e comentários elogiosos a ela. O segundo, apoiado na tradução, segue o mesmo caminho, apesar de apontar problemas no texto em português, como a utilização do termo “Velho Regime” em vez de “Antigo Regime”, além de notar a ausência de diálogo do autor com trabalhos importantes que já haviam tocado no tema por ele estudado.
2FINNEGAN, Ruth. Oral poetry: its nature, significance, and social context. Bloomington and Indianapolis: Indiana University Press, 1992, p. 201-210.
3Ibidem, p. 58-70.
4Ibidem, p. 217-222.
5ZUMTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010, p. 307-308.
6SHAW, Matthew. Robert Darnton. Police and Poetry: communication networks in eighteeth-century Paris. Cambrige: Belkap Press, 2010. European History Quarterly, vol. 43, n. 2, p. 348.
7FINNEGAN, Ruth. Oral poetry: its nature, significance, and social context, op. cit., p. 118.
8MORLEY, Vincent. Irish opinion and the American Revolution (1760-1783). Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 97-107.
9Ibidem, p. 281.
10ROMERO, Sílvio. Estudos sobre a poesia popular no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1977, p. 263.
Jefferson Queler – Doutor em História pela Universidade Estadual de Campinas. Professor adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, MG, Brasil. E-mail: jeffqueler@hotmail.com.
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