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Dar nome aos documentos: da teoria à prática | Danielle Ardaillon

Como nomear adequadamente documentos de arquivo dotados de diferentes linguagens, suportes, técnicas de registro e formatos e que, muitas vezes, resultaram de atividades que não correspondem a atos de caráter jurídico e administrativo familiares aos arquivistas? Eis a complexa e fulcral questão discutida durante o seminário Dar nome aos documentos: da teoria à prática, promovido, em 2013, pela Associação dos Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP) e pela Fundação Fernando Henrique Cardoso (FHC). Após pouco mais de dois anos, desde a realização deste evento que reuniu renomados pesquisadores do Brasil e do exterior, seus organizadores disponibilizaram gratuitamente, em formato de e-book, os textos apresentados pelos palestrantes, bem como os comentários da plateia presente na ocasião.

Dispostos conforme a sequência das apresentações e debates com o público, os capítulos revelam ao leitor distintos e instigantes pontos de vista acerca dos desafios enfrentados pelos arquivistas e profissionais de diferentes áreas na correta nomeação dos documentos custodiados por arquivos institucionais e pessoais. Quanto a esta última modalidade, para além das dificuldades impostas pela emergência de documentos produzidos em meio eletrônico e digital, os problemas conceituais e terminológicos resultam das especificidades dos documentos produzidos e acumulados por qualquer pessoa física, durante sua vida profissional, civil, familiar e afetiva, os quais, na maioria das vezes, fogem das estruturas e fórmulas típicas de documentos de arquivos institucionais.

No entanto, em que pese a indiscutível relevância para a organização e a descrição de arquivos, a tarefa de nomear apropriadamente os documentos é comumente negligenciada. Assim, com o intuito de “frear” aquilo que Danielle Ardaillon, curadora do acervo da Fundação FHC e organizadora da edição, definiu como “criatividade vernacular, nem sempre positiva, dos profissionais desamparados” (Ardaillon, 2015, p. 9), os autores da coletânea apresentam suas contribuições, assentadas nos esforços reflexivos de pesquisa e da prática profissional de cada um, a fim de elucidar este que é o problema comum a todos os capítulos do e-book.

Nesse sentido, em Sobre espécies e tipos documentais, Ana Maria de Almeida Camargo, professora da Universidade de São Paulo (USP), parte de sua experiência com o tratamento da documentação custodiada pela Fundação FHC para apresentar algumas propostas de descrição adotadas frente à complexidade daquele acervo, todas elas calcadas em uma criteriosa identificação de espécies e tipos documentais. Reconhecendo que muitos dos equívocos observados na nomeação dos documentos resultam de problemas que envolvem a compreensão dos conceitos de suporte, técnica de registro, formato e gênero, a autora elenca alguns exemplos inusitados e, ao mesmo tempo, elucidativos, como o pau-de-chuva, instrumento de percussão feito de bambu que imita o som da chuva, ou um diploma registrado em estrutura de metal aplicado em base de acrílico. Conforme sublinha Camargo (Ardaillon, 2015, p. 23), “a solenidade do suporte não pode obscurecer a natureza do documento, cuja linguagem e fórmula não deixam margem a dúvidas”.

Por sua vez, detendo-se sobre os desafios que o advento da era digital coloca para os arquivistas incumbidos da missão de dar nome aos documentos, Bruno Delmas, professor emérito da École Nationale des Chartes, apresenta, no capítulo Por uma diplomática contemporânea: novas aproximações, um percurso analítico que vai desde as origens dos estudos diplomatistas na Europa seiscentista até a proposição de uma diplomática especialmente orientada aos documentos em base digital. Apontando para os problemas que os documentos em meio digital impõem à apreensão exata da natureza de sua ação, o autor afirma que, para ser científica, a nomeação dos “novos documentos” não pode se limitar a um único termo. Nessas circunstâncias, afirma Delmas (Ardaillon, 2015, p. 40), a definição diplomática “precisará ser uma expressão que concilie o estatuto jurídico, a função e a ação – e, muitas vezes, a natureza do suporte”.

Aprofundando as reflexões de Delmas sobre a ampliação da metodologia diplomatista, o diretor do Arquivo Municipal de Toledo Mariano García Ruipérez discorre no capítulo La denominación de tipos, series y unidades documentales, sobre a importância da tipologia documental na composição do título de documentos de arquivo, bem como das séries e subséries. Ao enfatizar que a “adequada identificação das unidades documentais, e das agrupações nas quais se integram, só é possível se tivermos claros os elementos que utilizamos para sua denominação”, Ruiperéz (Ardaillon, 2015, p. 68, tradução nossa) traça um detalhado panorama histórico das discussões em torno do conceito de tipo documental, ocorridas no âmbito dos arquivos públicos espanhóis desde a década de 1960. Ademais, as concepções dos diferentes níveis de agrupações documentais são discutidos pelo autor a partir do exame das distintas e por vezes conflitantes normas de descrição vigentes na Espanha (notadamente a Norma española de descripción archivística – Neda e as suas adaptações regionais, Norma de descripción archivística de CataluñaNodac e Norma galega de descripción archivística – Nogada).

Em Atribuir nomes a tipos, séries e unidades documentais: dialogando com Mariano Garcia Ruipérez, a professora da Universidade Estadual Paulista (Unesp) Sonia Troitiño retoma algumas das principais considerações formuladas pelo professor espanhol, balizando seus comentários em torno de quatro aspectos: o conceito de tipo documental; os modelos de análise de tipos e séries documentais; as unidades documentais simples e compostas; o papel da descrição e o impacto das normas internacionais e regionais. Sobre este último tópico, Troitiño observa que, embora as normas internacionais e suas adaptações nacionais e regionais sejam importantes, enquanto instrumentos voltados à consolidação de parâmetros descritivos uniformes, as imprecisões e confusões terminológicas comumente encontradas acabam, na maioria das vezes, dificultando ainda mais o trabalho do arquivista.

Sob o olhar da linguística aplicada, em O discurso eletrônico-digital, o professor da Universidade Vale do Rio Verde, de Três Corações, Sérgio Roberto Costa retoma a discussão sobre o impacto da era digital na ciência da informação, enfatizando a necessidade de o profissional da área se familiarizar com o novo código discursivo inaugurado com as tecnologias digitais da informação e comunicação (TDICs), cujos desdobramentos acarretam a conformação de uma linguagem “essencialmente multissemiótica/multimodal” (Ardaillon, 2015, p. 201). Contudo, se a linguística pode contribuir para a resolução dos problemas advindos da dificuldade de nomear adequadamente os documentos, a leitura do capítulo revela os diferentes pressupostos teórico-metodológicos que separam linguística e arquivologia, a exemplo da forma diversa que a primeira concebe os conceitos de gênero e de suporte. A partir das diferenças essenciais de definições e abordagens, em Gêneros textuais emergentes do/no discurso eletrônico digital: um balanço crítico, de Sérgio Roberto Costa, Johanna Smit, professora da Universidade de São Paulo (USP), problematiza as ponderações de Costa sob o viés da arquivologia e apresenta uma sistematização dos novos documentos em meio digital, ressaltando que “documento arquivístico é documento arquivístico, independentemente de suporte ou tecnologia” (Ardaillon, 2015, p. 242).

Diante de considerações ao mesmo tempo complexas e enriquecedoras, em Uma base terminológica consensual: limites e possibilidades, a professora da Universidade de São Paulo (USP) Heloísa Liberalli Bellotto recupera as principais questões tratadas por cada um dos autores a fim de estabelecer uma “plataforma de entendimento”. Diante dessa perspectiva, a autora discute como o desafio de dar nomes apropriados aos documentos de arquivo assume contornos ainda mais problemáticos, quando o debate ocorre no campo dos arquivos pessoais. Acrescenta, ainda, as dúvidas quanto à melhor nomenclatura a ser dada aos documentos em meio digital. Embora reconheça os limites de uma base terminológica consensual entre os profissionais da área de arquivo, Bellotto defende a formulação de um entendimento que resulte do trabalho prático, bem como das discussões teóricas a respeito dos novos documentos.

À guisa de conclusão, Ana Maria Camargo apresenta uma Síntese dos principais temas e discussões, apontando para as convergências e divergências de ideias que perpassam os capítulos que compõem o livro. De forma precisa e clara, a autora delimita conceitualmente, sob a perspectiva da arquivologia, as noções de espécie, tipo documental e gênero, além de demonstrar com rigor as especificidades do tratamento dos documentos de arquivos pessoais. Destacando a necessidade de se amadurecer a discussão sobre os diferentes aspectos apresentados por cada um dos autores, Camargo (Ardaillon, 2015, p. 293) reforça que uma “das maneiras mais eficientes de preservar este elo de origem [do documento de arquivo] é nomeá-lo adequadamente, a partir da espécie por meio da qual se exerce determinada função”.

De fato, a tarefa de dar nome aos documentos pouco convencionais exige um esforço reflexivo constante. Nesse sentido, o debate oportunizado pelo seminário realizado em 2013, cujo conteúdo agora é amplamente difundido em formato e-book, oferece um importante aporte teórico-metodológico aos arquivistas empenhados na identificação dos tipos documentais que fogem dos padrões normatizados de produção. Ao reunir eminentes pesquisadores do Brasil e do exterior, a obra se distingue por oferecer ao leitor diferentes pontos de vista sem deixar de reafirmar alguns dos princípios basilares da arquivologia. Trata-se, portanto, de mais uma importante contribuição oferecida à comunidade arquivística, resultante dos esforços conjuntos da Associação dos Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP) e da Fundação Fernando Henrique Cardoso, com vista ao aprimoramento conceitual e prático dos profissionais da área.


Resenhista

Renato de Mattos – Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal Fluminense (UFF).


Referências desta Resenha

ARDAILLON, Danielle (Org.). Dar nome aos documentos: da teoria à prática. São Paulo: Fundação Instituto Fernando Henrique Cardoso, 2015. Disponível em: http://fundacaofhc.org.br/files/dar_nome_aos%20documentos.pdf. Acesso em: 9 set. 2016. Resenha de: MATTOS, Renato de. A difícil tarefa de dar nome aos documentos. Acervo. Rio de Janeiro, v. 30, n. 1, p. 265-268, jan./jun. 2017. Acessar publicação original [DR/JF]

Itamar Freitas

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