Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho) | Eduardo França Paiva

“Quem chama quem de quê? Como cada qual se define e define o outro?” A partir dessas interrogações, o historiador Eduardo França Paiva instiga a leitura e nos aproxima das problemáticas que norteiam sua nova obra “Dar nome ao novo”. Neste novo trabalho, o uso de vocabulários, de expressões, de léxicos são fios que conduzem o leitor para pensar sobre os usos de definições, categorias ou hierarquizações ao longo de três séculos. O objetivo está em levar quem lerá a obra a uma intensa compreensão das nomeações e descrições que marcavam, separavam e hierarquizavam os agentes históricos pelas dinâmicas biológicas e culturais das mestiçagens.

É importante destacar, para o maior entendimento da obra, o processo histórico entendido pelo autor como parte das “dinâmicas de mestiçagens”. Afinal, esse é um conceito elaborado recentemente, e permeia as dimensões históricas resultantes de mesclas, interseções, de mobilidades e de trânsito, no plano das representações e dos discursos, que geraram sociedades e produtos mestiços e não-mestiços (índios, brancos, negros, pretos e crioulos).

Ele permite perceber a integração dos agentes de diversas qualidades ao universo mestiço, levando a compreender, definir e identificar os construtores não-mestiços de sociedades mescladas biológica e culturalmente. Em quadros sociais, nas regiões ibero-americanas, principalmente nas mais urbanizadas, de então de Eduardo França Paiva. O objetivo é estudar por meio desses espaços, em uma perspectiva comparada e conectada, as dinâmicas de mestiçagens e de seus agentes, partindo, especificamente, da relação de termos e expressões que identificaram, classificaram e distinguiram os tipos e grupos sociais em qualidades, condições, nações, castas e raças, consideradas pelo autor como as grandes categorias taxonômicas da época (p. 171).

Esse trabalho é feito com uma dimensão espacial extensa denominada pelo autor de Íberoamérica que, em linhas gerais, corresponde às áreas sob domínio das coroas portuguesa e espanhola no Novo Mundo, extensas do norte do continente até o seu extremo sul. Esse ponto é importante, e é tido no prefácio da obra pela professora emérita de Paris-Ouest Nanterre La Défense como um dos pontos originais, a totalidade do mundo ibero-americano, os reinos de Portugal e de Espanha e permite comparar o vocabulário da mestiçagem do século XVI ao XVIII.

O período abordado é também bem amplo, como pode ser percebido. A escolha de um tempo longo desafia o autor a entender as variações de sentidos o qual “o léxico das mestiçagens, associadas às formas de trabalho se iniciou, se desenvolveu e se consolidou” (p.25).

Sem dúvida, para um historiador que ainda não possui a experiência de Eduardo Paiva é de se estranhar a amplitude pretendida pelo autor. Talvez, uma resposta lógica venha por três direcionamentos: o primeiro pela biografia e a trajetória com o tema; o contato de Eduardo Paiva com uma documentação de natureza variada; e, por fim, o seu contato com a historiografia dos clássicos e a aproximação com a história comparada.

Do primeiro aspecto, Eduardo França Paiva é professor de História na Universidade Federal de Minas Gerais, lá dirige o Centro de Estudos sobre a Presença Africana no Mundo Moderno (CEPAMM) e é um dos coordenadores da Rede de Grupos de Pesquisa Escravidão e Mestiçagens (RGPEM). Além disso, o autor faz parte do Fórum Permanente Universitário Portugal e Brasil: conexões e problemáticas dos mundos moderno e contemporâneo – Fórum PB e lidera, desde 2005, o Grupo de Pesquisa Escravidão, Mestiçagem, Trânsito de Culturas e Globalização séculos XV a XIX (CNPq / UFMG). Essa experiência reflete as opções conceituais, metodológicas e historiográficas propiciadas na relação com pesquisadores e estudantes do grupo.

Outro fator importante para a escrita dessa obra está nas contribuições acadêmicas adquiridas no desenvolvimento do estágio pós-doutoral entre 2006 e 2007 na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris) e na Escuela de Estudios Hispano-Americanos (Sevilha). Nessas instituições, o autor percebe o mestiço de outra forma na História e também o fez aproximar da história em perspectiva comparada. Nela se caracteriza a escolha espacial e temporal dessa obra.

A história comparada neste trabalho trata de estabelecer relações que se difundem em preceitos culturais histórico-antropológicos que “valorizam as historicidades das experiências e do ocorrido” (p. 42). Nesse sentido, necessário a compreensão de versões sobre eles, que buscam relativizar processos e resultados produzidos da dinâmica das mestiçagens.

Nesta pesquisa, a história da formação do léxico das mestiçagens associadas às formas de trabalho foi resultado de dinâmicas sociais similares e, muitas vezes, única, que se espraiaram pela extensa área sob os domínios lusitanos e castelhanos nas Américas (p.25).

É nessa comparação que o livro não é apenas uma história do Brasil, mas também da América espanhola, pois, nessa pesquisa como concebe o escritor, a história da América Portuguesa do período delimitado é “concebida em conexões com a América Espanhola e vice-versa, pois o tema central não se restringiu a uma ou a outra dessas regiões, ao contrário, suplantou fronteiras geopolíticas”, sendo elas demarcadas ou imaginadas e não presa a rígidos limites linguísticos (p. 25).

Além dessa perspectiva, esse trabalho se inscreve em contribuições de estudos clássicos e pioneiros como Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire e das obras Raízes do Brasil e Visão do Paraíso de Sérgio Buarque de Holanda. Elas auxiliaram o autor na proximidade das práticas nominativa nos domínios ibéricos, além, de certa medida, auxiliarem no entendimento da circulação tanto do imaginário, de gente entre as regiões, como a relativa circulação de, entre as áreas portuguesa e espanhola, das culturas, línguas e linguagens. Essas aproximações são contribuições também dessas obras pioneiras.

Por fim, dessas caracterizações tem-se o arcabouço documental. Muito variado, de diversos tipos, compõe-se de documentos antigos (e a textos antigos) em arquivos brasileiros e no exterior, sobretudo à Nova Espanha, produzidos durante três séculos, reunidos ao longo da carreira acadêmica do autor.

Algumas delas são transcrições documentais, publicadas ou não, e obras consultadas online. Essencialmente, os manuscritos correspondem a cartas, plantas, editais, relatos de viajantes e de autores, quadros de castas, documentos cartoriais. Além disso, o acervo iconográfico coletado enriquece cada página do livro. Outras são antigos dicionários, vocabulários, léxicos importantíssimos na construção do primeiro capítulo no qual pensará “os mais variados significados, derivações e usos antigos que identificariam, classificariam e hierarquizariam gente no Novo Mundo” (p.24).

Partindo dessas fontes, as discussões da obra foram divididas em cinco capítulos. No primeiro Do léxico consolidado ao início de tudo: uma história de trás para frente, o autor propôs iniciar o estudo no fim do século XVIII. Uma história em sentido contrário à sequência histórica tradicional do ponto de início até o fim do seu recorte temporal, de trás para frente.

O desafio colocado partia do interesse do autor de pensar os usos do léxico compartilhado pelos agentes históricos, mesmo não escrito e/ou publicado, da necessidade de comunicação cotidiana entre europeus, índios, africanos e seus descendentes em classificar e identificar as categorias dos agentes históricos para a fruição das relações sociais. Nesse viés, pessoas de “qualidades” e “condições” distintas operavam um léxico específico que integrava o agente histórico ao léxico do mundo do trabalho e das mesclas biológico culturais nas áreas ibero-americanas.

No segundo capítulo, Formas de trabalho compulsório e dinâmicas de mestiçagens – naturalização da associação no Novo Mundo, como anunciou no fim do capítulo anterior, a cronologia foi retomada em seu sentido sequencial e mais usual. Nele, o autor estuda as relações históricas entre as dinâmicas das mestiçagens biológicas e culturais e as formas de trabalho compulsório e livre no Novo Mundo, especialmente o trabalho escravo de índios, negros, crioulos e mestiços de vários tipos. Assim, ao tratar das associações ocorridas entre essas duas dimensões, embora categorias distintas, elas se associaram e se transformaram em suporte recíproco. É estudado também a formação das elites pelo papel desempenhado pela linhagem mestiça e de grupos sociais legítimos e poderosos das sociedades ibero-americanas, principalmente na América espanhola.

Em Os “colonizadores” negros do Novo Mundo e a “africanização” do trabalho, Eduardo França Paiva dá sequência a análise das mestiçagens associadas ao mundo do trabalho. Nela, o destaque maior está, particularmente, nas misturas ocorridas com negros e criolos, os quais, desde o século XVI, se observaria nos domínios espanhóis e, mais tarde, nos portugueses na atuação como “colonizadores” (construtores, povoadores, defensores e exploradores). Para ele, desde as primeiras entradas no século XVI, “os africanos fomentaram as dinâmicas de mestiçagens biológicas e culturais incrementando o grande crisol americano” (p. 93).

No quarto capítulo, as “grandes” categorias de distinção e os grupos sociais no mundo ibero-americano, o trabalho do autor está em nos aproximar de uma série de expressões e categorias sobre como pensar o tema da mestiçagem nas dinâmicas culturais e do mundo do trabalho. Grandes categorias sociais ou categorias gerais, como “qualidade”, “condição”, “cor”, “nação”, “raça” e “casta”, assim como as designações “índio”, “branco”, “negro”, “preto”, “crioulo”, “mestiço”, “mameluco”, “caboclo”, “mulato”, “pardo”, “zambo”, “cabra”, entre outras, aparecem problematizadas pelo autor. Nesse capítulo, o autor acentuou o enfoque comparativo para melhor compreender a forte circulação de vocábulos e expressões do nosso léxico na Íberoamérica entre os séculos XVI e XVIII, e estudar alguns termos restritos a algumas regiões.

E o último, O léxico das “qualidades”: aportes históricos sobre usos de termos selecionados, na impossibilidade de estudar todas elas, o autor optou de selecionar a partir das que apareciam nas fontes examinadas, para tratar dos usos que foram feito delas, assim como dos significados atribuídos a elas (p.28). Soma-se ao capítulo anterior, mas em destaque “as principais “qualidades” às quais foram associados grupos sociais e pessoas, termos que nomearam os “tipos” humanos produzidos”. A partir daí, Eduardo Paiva aprofunda a análise do léxico para pensar temas relativos à escravidão, às diversas formas de trabalho compulsório e às mestiçagens biológicas e culturais, dimensões não desconexas, mas que se conectam na história íberoamericana (p. 173).

Surge daí, no fim dos capítulos, uma história americana conectada, pensada em perspectiva comparada, que coloca em evidência o que fomos e de que fomos, demarcando nos dias de hoje, alterações e rupturas importantes ocorridas, e proporcionadas a partir dessa diferenciação de nossos antepassados e as dinâmicas biológicas e culturais apresentadas.

É essa uma das grandes contribuições desse estudo de Eduardo Paiva, o estudo das palavras, dos seus sentidos, da taxonomia e o léxico do passado coloca em evidência a necessidade de refletirmos sobre as ausências de análises dessas categorias, que influenciam consideravelmente de como olhamos à nossa história e como nos relacionamos com o outro. A ausência ou a simplificação dessas classificações ou hierarquizações podem levar-nos a procedimentos generalizantes, simplificadores e anacrônicos, adotados, muitas vezes em um olhar simplista da nossa história. Voltar à perspectiva para a história do léxico das mestiçagens associadas ao mundo do trabalho é nos aproximar de realidades plurais e complexas, que nos permitem compreender quem nós somos e a diversidade social e cultural que nos formou e ainda nos circunda.


Resenhista

Adson Rodrigo Silva Pinheiro – Licenciado em História pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), atualmente é Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e com especialização em andamento em História do Brasil pela Universidade Vale do Acaraú (UVA). Tem experiência na área de História, com ênfase em História do Brasil Colônia, atuando principalmente com os seguintes temas: Inquisição, Família, Cotidiano, Casamento, Igreja Católica, População, Sociedade, Sexualidade, Cultura, Ceará no século XVIII; também atua na área de Políticas Públicas, na área do Patrimônio Cultural. Foi tutor do curso de Educação de Jovens e Adultos na Diversidade do Instituto UFC Virtual. É membro do grupo de pesquisa História do Ceará Colonial: economia, memória e sociedade da UFC, membro do grupo de pesquisa PRAETECE (Prática de Edição de Textos do Estado do Ceará), membro do Grupo de Extensão HISMOV e membro do grupo Gênese Documental Arquivística da UFF. É também Gerente da Célula de Gestão em Pesquisa e Educação Patrimonial da Coordenadoria de Patrimônio Histórico e Cultural da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR). E-mail: adson.rodrigo@gmail.com.br


Referências desta Resenha

PAIVA, Eduardo França. Dar nome ao novo: uma história lexical das Américas portuguesa e espanhola, entre os séculos XVI e XVIII (as dinâmicas de mestiçagem e o mundo do trabalho). Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. Resenha de: PINHEIRO, Adson Rodrigo Silva. Reflexões sobre a mestiçagem: Nomear e categorizar as dinâmicas biológicas e culturais. Revista Ultramares. Maceió, n.7, v.1, p. 217 – 221, Jan./Jul. 2015. Acessar publicação original [DR]

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