Da Monarquia à República: questões sobre a escrita da história / História da Historiografia / 2009

A passagem é conhecida: “a pesquisa histórica no Brasil nasceu com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”. José Honório Rodrigues, o autor dessas palavras, utilizou-a para introduzir a segunda parte de seu livro publicado originalmente em 1952, tendo por título A pesquisa histórica no Brasil. Sua evolução e problemas atuais. O ano de 1838, data da fundação do IHGB, assim como a obra principal de Francisco Adolfo de Varnhagen, História geral do Brasil (1854-57), aparecem recorrentemente como marcos constituintes do saber histórico brasileiro. O fato é plenamente compreensível e proveitoso pelo volume de conhecimento sobre o tema produzido. Mas por conta disso, é possível notar uma relativa disparidade na quantidade de estudos dedicados, de um lado, a investigar o cânone, seja para reafirmá-lo, seja para desmistificá-lo, e de outro, os estudos ocupados com momentos distintos mas igualmente importantes: em uma ponta, a historiografia “brasílica” do século XVIII e aquela produzida no contexto conturbado e rico da independência política; na outra, a historiografia de fins do regime monárquico e primeiros passos da república instaurada no país (ainda que haja ali uma vasta produção nos campos da história literária e do pensamento social brasileiro).

Na última década, contudo, notou-se uma considerável amplitude, tanto quantitativa como qualitativamente falando, das pesquisas que tematizavam as “margens”, por assim dizer, da historiografia imperial. Quer seja pela publicação de livros e artigos, quer seja pela elaboração de dissertações e teses que, mesmo com as dificuldades próprias do formato, acabam por circular entre os pesquisadores, os momentos à montante e à jusante do “núcleo” da historiografia oitocentista vêm sendo problematizados de forma persistente e revigorada, por conta das novas possibilidades de pesquisa que se abrem com a sistematização de outros corpus documentais e também com as mudanças de perspectiva que abordagens variadas têm permitido.

A elaboração deste dossiê temático procura se inserir no contexto de renovação e expansão dos estudos por que passa a história da historiografia no âmbito acadêmico brasileiro. A própria existência da revista que acolhe os textos ora publicados é um sinal eloquente dos tempos. Dessa maneira, os artigos que seguem procuram vislumbrar formas distintas de se encarar o tema da escrita da história no Brasil, compreendida não apenas em seu nível discursivo, já que a noção de “escrita” é aqui utilizada num sentido amplo que procura dar conta das formas particulares de inscrição do conhecimento histórico em determinada cultura, no caso, aquela situada no período de transição social e política que caracteriza as décadas finais do século XIX e primeiros anos do XX. Seria forçoso, obviamente, afirmar que tal transição teria implicado rupturas permanentes nas formas pelas quais a história era escrita naquele período; o que é certo, entretanto, é que os atores ali envolvidos descortinaram novos problemas diante dos quais era preciso se colocar, e que implicaram relações com o passado distintas das que até então eram assumidas.

Nesse sentido, Isis Pimentel de Castro, analisando a pintura histórica no século XIX, discorre sobre as relações entre o olhar e a palavra, ou seja, sobre as “marcas de enunciação” que perpassam as formas de representação pictórica do passado nacional. Rodrigo Turin, por sua vez, voltando a atenção particularmente para a obra de Silvio Romero, delineia um certo deslocamento do “ethos do historiador oitocentista” justamente num momento de agudas críticas à historiografia romântica nos trópicos. Já Maria da Glória de Oliveira investiga o constante diálogo que Capistrano de Abreu manteve com a obra de Varnhagen, apontando, não apenas o desenvolvimento da crítica e do método histórico no final do dezenove, mas também o lugar do historiador como leitor crítico da história. No texto seguinte, esboço algumas notas sobre a “retórica do olhar” utilizada por Euclides da Cunha, a qual fundamenta as relações entre observação e narrativa na escrita de Os sertões. Finalmente, Hugo Hruby analisa o lugar da discussão religiosa dentro do IHGB nas primeiras décadas da república no Brasil, sinalizando para a complexidade dos debates entre “fé e razão” na produção do conhecimento histórico dentro daquela instituição, precisamente quando o ideal republicano colocava a religião como um problema política e epistemologicamente sensível.

Todos os artigos são reelaborações de reflexões produzidas inicialmente como parte de estudos de pós-graduação, tanto em nível de mestrado quanto de doutorado. O fato denota, uma vez mais, o momento em que se encontram as pesquisas historiográficas no Brasil. Não menos significativo é o dado fundamental que perpassa todos os trabalhos apresentados: o profícuo diálogo que se mantém entre os autores e que, esperamos, possa ser estendido aos leitores interessados nos temas aqui tratados.

Fernando Nicolazzi – DEHIS / UFOP


NICOLAZZI, Fernando. Apresentação. História da Historiografia, Ouro Preto, v.2, n.2, mar., 2009. Acessar publicação original [DR]

Acessar dossiê

Itamar Freitas

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