Da cidade e do urbano. Experiências, sensibilidades, projetos | Stella Bresciani
As questões urbanas, isto é, aquelas que dizem respeito às cidades e à vida de seus habitantes, são apenas um dos muitos assuntos urgentes que as sociedades contemporâneas enfrentam. Isso deriva de uma razão quantitativa: o século 21, como evidenciado pelos resultados do programa das Nações Unidas sobre assentamentos humanos, é o século das cidades. Decorre também do fato de que as cidades desempenham papéis centrais na vida dos seres humanos do ponto de vista simbólico, político, cultural, social, econômico e pessoal/individual. Este livro/coletânea que reúne textos da historiadora Maria Stella Bresciani introduz o estudo das principais teorias e linhas de interpretação da cidade, apresentando experiências, exemplos e oferecendo descrições que vêm da História e de outras disciplinas que lidam com o fenômeno urbano.
O objeto de estudo, como explicita o título do livro, é a reflexão Da cidade e do urbano, a partir de dezessete textos selecionados. Inicialmente, há uma preferência explícita por parte da curadoria em examinar os textos da autora levando em consideração suas reflexões a partir de uma vertente temática por sedimentação:
“Metrópoles…, Lógica e dissonância… e Cidade e território…, em torno do tema Cidade e técnica; Um poeta no mercado, La rue…, Literatura e cidade e Cidade das multidões… em torno do tema das Sensibilidades urbanas […] A partir disso, permaneceram liberados de qualquer tentativa artificial de classificação, alinhados mais ou menos de modo cronológico” (1).
Ressalto da coletânea o texto escrito em 2012, “Cidade e território: os desafios da contemporaneidade numa perspectiva histórica”, no qual a autora, ao anunciar a nova dimensão das problemáticas urbanas, supera o mito da cidade do século passado. Um texto de título análogo “La Città –Territorio: problemi dela nuova dimensione” (1964), escrito pelo então jovem arquiteto Manfredo Tafuri, reitera a mesma escala centrada na nova problemática dos centros históricos.
Guardadas as devidas proporções e a distância de quase cinquenta anos, os dois anunciam um “salto de escala”, embora a indagação sobre o futuro surja de forma diferente: no texto de Bresciani, ela aparece a partir de uma retrospectiva contundente, centrada na “permanência do campo conceitual formado no século 19”. No de Tafuri, o repensar crítico das estruturas urbanas, como o centro histórico, acontece a partir de uma plataforma complexa visando estabelecer a nova relação entre a história das áreas tradicionais e sua utilização na nova dimensão. Certamente, a partir de referências conhecidas e delineadas na segunda metade da década de 1990, das quais Bernardo Secchi é um dos protagonistas, o texto poderia superar as continuidades detectadas para explorar afinidades e descontinuidades de fatos aparentemente muito distantes entre si, centrando no binômio presente no primeiro texto da coletânea: “Permanência e ruptura no estudo das cidades” (1990).
Embora cientes de que devemos nos basear na ampliação dos horizontes disciplinares e coordenar os diversos estudos interdisciplinares voltados às cidades, como reforçado no texto “As sete portas da cidade” (1991), a pesquisa sobre a cidade e o urbano pressupõe uma cuidadosa coordenação e amálgama entre essas numerosas disciplinas, num esforço de análise, escolhas e síntese, que explicita a pluralidade de diálogo da autora com diferentes contribuições metodológicas e científicas, nas quais a história urbana aparece com diferentes ênfases.
De fato, essas estruturas não podem ser definidas de uma vez por todas, já que os diálogos têm geografia e temporalidades diferentes, dado o arco temporal trabalhado que cobre o nosso século urbano e desponta na contemporaneidade. Mas no conjunto dos textos, fica claro que, na realização de pesquisas, faz-se necessário, de tempos em tempos, identificar as ferramentas apropriadas de trabalho, ou seja, o tipo de fontes, e como estas devem ser aplicadas diferentemente de acordo com o território específico em análise.
Nota-se, claramente, que no intervalo de tempo enfocado pela coletânea, os textos respondem ao campo de investigação sobre a cidade, rejeitando limitarem-se à análise de um único objeto e perseguindo a análise de todo um conjunto urbano. O objeto cidade emerge na complexa estratificação de seus diferentes elementos constitutivos de “La rue” (1996), “Intervenções e projetos, e planos” (2001/2010). Nesse sentido, qualquer tentativa de subdivisão parece redutora, enquanto na sua totalidade há uma coincidência entre os campos da História Urbana, da História da Cidade, da História do Urbanismo e do Planejamento Urbano.
Quando nos debruçamos nas notas iniciais que explicitam as datas de publicação de cada texto, a trama do livro emerge entretecida por fios dos campos acadêmico ou científico, estruturados como um sistema de disposições geradoras de práticas transformadoras. Nesse contexto, fica fácil ver em seus textos significados diversos, pois demonstram individualmente a capacidade de reorientar conhecimentos e percursos, para propor novas práticas em um campo historicamente a ser estruturado e institucionalizado. Também fica fácil identificar aqueles fios do “campo”, formado pelas figuras e momentos históricos decisivos e que explora momentos da pesquisadora com o próprio tempo.
Mas, apesar da construção de uma biografia não ser o objetivo central da tripla curadoria, a trajetória formada pelos textos e, portanto, da autora, é elucidada não como fruto de uma ação programada ou de um intento preestabelecido. Nasce da concomitância com outros trabalhos típicos de um professor de universidade pública e não se ocupa somente do presente, mediante uma releitura de temas do passado. Essa trajetória revela-se num autêntico retrato de um território compartilhado com outros tantos pesquisadores, onde entram em jogo a forma como a história e a pesquisa histórica são concebidas naquele momento, a sedimentação e diferenciação de campos disciplinares, e também os mecanismos que regulam a política da criação de novos cursos de graduação e pós-graduação.
Nota
1CESAROLLI, Josianne. Cidade no plural, escolhas. In BRESCIANI, Stella. Da cidade e do urbano. Experiências, sensibilidades, projetos. 1a edição. São Paulo, Alameda, 2018, p. 24.
Resenhista
Adalberto da Silva Retto Júnior – Professor de Urbanismo da Unesp – Bauru e coordenador do Curso Internacional de Especialização lato sensu em Planejamento Urbano e Politicas Públicas: urbanismo, paisagem, território.
Referências desta Resenha
BRESCIANI, Stella. Da cidade e do urbano. Experiências, sensibilidades, projetos. Organização de Josiane Cesaroli, Marcia Naxara, Rodrigo de Faria. São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: RETTO JÚNIOR, Adalberto da Silva. Acerca da cidade e do urbano. Sobre o recente livro de Stella Bresciani. Resenha Online. São Paulo, n. 208, abr. 2019. Acessar publicação original [DR]