Da adversidade vivemos! | MODOS. Revista de História da Arte | 2017
Da adversidade vivemos! – assim finalizou Hélio Oiticica, em tom de alerta e revolta, o manifesto de apresentação da exposição Nova Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro em abril de 1967. A mostra contou com a participação de 40 artistas, entre os quais nomes emblemáticos da geração concretista e neoconcretista e recém ingressantes no circuito das artes, além de alguns convidados, entre eles dois cineastas (Antonio Carlos da Fontoura e Arnaldo Jabor). A maioria absoluta das obras expostas colocava em questão os códigos artísticos e institucionais tradicionais, bem como criticava o poder efetivo de transformação social atribuído à arte abstrata até o final dos anos 1950. Trazia para o centro do debate a questão da participação do espectador e o potencial revolucionário do objeto de arte no campo da ética, da política e do social.
Nova Objetividade Brasileira marcou um momento decisivo para a arte brasileira na proposição de um comprometimento político dos artistas, críticos e agentes culturais, bem como na tentativa de reformulação do conceito estrutural de obra de arte e de sua relação com o público. Inserida em um conjunto de exposições do período que promoviam um diálogo crítico com a realidade nacional, tais como Opinião 65, Propostas 65, Opinião 66, Propostas 66, Jovem Arte Contemporânea e Do Corpo à Terra, ela incitou a uma reflexão sobre um conceito crítico de vanguarda, que fosse operacional em um país “subdesenvolvido”.
Em seu texto-manifesto, “Esquema Geral da Nova Objetividade”, Oiticica discorre sobre as “múltiplas tendências” vanguardistas então em curso no Rio de Janeiro e em São Paulo, procurando “agrupá-las culturalmente” e criando o que Paulo Reis chama de súmula de um programa de vanguarda da arte nacional comprometida com seu tempo. Na avaliação de Rodrigo Naves, esta foi uma das “primeiras intervenções teóricas desse tipo de um artista brasileiro” (Naves, 2002: 8). Para outros autores, este texto será “seminal para a arte contemporânea, e não apenas a brasileira” (Freire, 2006: 20).
Oiticica acreditava que o fenômeno da vanguarda no Brasil dos anos 1960 “não [era] mais uma questão de um grupo provindo de uma elite isolada, mas uma questão cultural ampla, de grande alçada, tendendo às soluções coletivas”. Reconhece que a partir dos anos de 1964-65 ocorrera um extravasamento das fronteiras artísticas para o domínio do político e acreditava que todo artista deveria tomar consciência de seu papel social. De modo semelhante a Ferreira Gullar, perguntava-se ainda “como, num país subdesenvolvido, explicar o aparecimento de uma vanguarda e justificá-la, não como uma alienação sintomática, mas como um fator decisivo no seu progresso coletivo? Como situar aí a atividade do artista? O problema poderia ser enfrentado com uma outra pergunta: para quem faz o artista sua obra?
Celebrando o cinqüentenário da mostra, este dossiê buscou reunir textos que analisassem seu significado ou que tratassem do campo da arte e da cultura nas décadas de 1960 e 1970, a partir de duas perguntas-chave: qual o papel da arte de vanguarda e da contracultura em países sob ditadura? Quais as brechas de uma experimentação artística e de costumes em regimes repressivos e violentos? Visamos, com isso, não apenas realizar um exercício historiográfico e contextual como também propor vetores capazes de traçar novas questões relacionadas à exposição, ao momento cultural e político brasileiro e sul-americano, às pesquisas artísticas experimentais no Brasil e no exterior e aos diálogos entre grupos de vanguarda e entre arte de vanguarda e sociedade. Para tanto, convidamos especialistas no assunto e que muito nos honraram com sua participação. Suas contribuições abordam, entre outros temas, as mudanças no imaginário artístico nessas duas décadas; as conexões entre ética, política e estética; a relação entre vanguarda e revolução operante nos países sul-americanos; a emergência do corpo como espaço de agenciamento das atividades artísticas e a ênfase no coletivo e nos aspectos comportamentais; as variações de resistência cultural como estratégia de luta contra a ditadura.
Abrem o dossiê os textos diretamente ligados à exposição: “Nova Objetividade Brasileira – posicionamentos da vanguarda”, de Paulo Reis, que trata das questões de ordem cultural, artística e política da exposição; o “Depoimento de Frederico Morais a Fernanda Lopes”, importante testemunho do crítico que esteve inicialmente ligado à exposição e é referência inescapável para a arte brasileira a partir dos anos 1960; “Nova objetividade e nova subjetividade: Hélio Oiticica rumo ao coletivo”, de Paula Braga, que estabelece nexos entre as estruturas ambientais de Oiticica e as estruturas conceituais de pensadores como Jacques Rancière, Gilles Deleuze e Toni Negri; e “Da exposição Nova Objetividade Brasileira ao evento do Corpo à terra” de Marília Andrés Ribeiro, que discute as relações entre as duas manifestações mencionadas.
O contexto cultural, artístico e vivencial dos anos 1970, bem como as transformações conceituais ocorridas na virada da década são examinados nos artigos “A contracultura, entre a curtição e o experimental” de Celso Favaretto e “Anos 1970: da vanguarda a pós-vanguarda”, Ricardo Nascimento Fabbrini. Ambos os autores analisam a produção artístico-cultural brasileira e internacional após o fim das vanguardas, discorrendo sobre o extensivo processo de invenção do período à margem das políticas oficiais e dos espaços institucionais, processo este que incluía a reelaboração, em outras chaves de leitura, de experiências anteriores.
Os dois textos seguintes – “Território de Juan Carlos Romero. Crônicas da violência”, de Maria Angélica Melendi e “Vanguardia y Revolución como ideias-fuerza en el arte argentino de los años sesenta”, de Ana Longoni – discorrem sobre situações e ações similares da vanguarda na Argentina, transportando assim algumas das ideias que nortearam a realização da exposição Nova Objetividade Brasileira para o contexto crítico sul-americano. Pode-se com isso perceber o quanto o compromisso social do artista tornou-se um tema inevitável nos países da região.
Com o intuito de fomentar a reflexão sobre a expansão do sistema expositivo no Brasil, focando-se, em especial, no caso dos salões realizados fora do eixo Rio-São Paulo durante a década de 1960, Renata Zago traz um estudo de caso revelador das transformações e tensões culturais do período, por ela estudado anteriormente: “Os Salões de Arte Contemporânea de Campinas durante a década de 1960”. Miliandre Garcia, por sua vez, em “Entre o palco e a canção: afinidades eletivas entre a Música Popular Brasileira (MPB) e o teatro engajado na década de 1960”, defende ter havido no Brasil dos anos 1960 um movimento de aproximação entre diversos artistas e movimentos artísticos, das mais variadas linguagens e formas de expressão, que se deu no âmbito político e também estético.
Um dossiê organiza-se também e sempre por seus esquecimentos e eventuais omissões. E é nesses espaços de falta que ele também se constrói, incentivando a novas discussões ou a outras leituras possíveis de uma década tão complexa e definidora do país. Boas leituras!
Referências
FREIRE, Cristina. Arte conceitual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
NAVES, R. “Um azar histórico: desencontros entre moderno e contemporâneo”, Novos Estudos – Cebrap, São Paulo, nº 64, novembro de 2002, pp. 5-21.
Organizadores
Maria de Fátima Morethy Couto
Paulo Reis
eferências desta apresentação
COUTO, Maria de Fátima Morethy; REIS, Paulo. Apresentação. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v.1, n.3, p.93-96, set./dez. 2017. Acessar publicação original [DR]