Refletir sobre as práticas alimentares na história é entender a alimentação e seu processo de construção histórica como uma linguagem que expressa vocábulos, gramáticas, sintaxes e retóricas, apresentando-os, respectivamente, em produtos, receitas, cardápios e comportamentos (Montanari, 2009, p.11). Fazer história sobre os processos que envolvem a alimentação – a necessidade, o gosto e os artefatos – é reconhecer no ato de alimentar e em todo o aparato material e simbólico que lhe dá conformação histórica, não apenas as representações de pessoas e de sociedades, mas a própria constituição do humano.
A alimentação é ato de sobrevivência, mas é, também, uma invenção. É necessidade instrumentalizada por artefatos facilitadores. É gosto, fruto de instintos, de percepções sensoriais, e, sobretudo, de construções históricas. As coisas que o homem inventa e torna úteis no ato de comer, participam de sua experiência e atendem às suas necessidades exigindo dele manipulações. Como todas as suas invenções! Elas tornam-se instrumentos de sua vivência e dele requerem gestos artesanais. As coisas da alimentação e o próprio alimento são importantes parcelas da materialidade da cultura, mas, também, são constituídas de valores que vão além de sua concretude. Os elementos materiais de nossa cultura e a relevância de seus significados são objeto de reflexão das disciplinas humanas, em geral e da História, em particular.
O presente dossiê da Vária História, Culturas alimentares, práticas e artefatos, apresenta textos que, dentro do universo da cultura material, apreendem a alimentação e o espaço das práticas alimentares, refletindo, em suma, sobre realidades físicas e simbólicas, práticas e conceituais, em torno dessa banalidade da atividade humana: comer e cozinhar para comer. A alimentação como documento de realidades, não se apresenta aqui apenas como simples reflexo da construção social, mas como repertório de elementos integrados em sua constituição histórica. Os artefatos da alimentação, também, não são apenas fetiches ou simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais.
Este dossiê temático apresenta ao leitor interpretações sobre as práticas alimentares no mundo americano, em vasta temporalidade. Os textos que o compõe trazem criativas articulações metodológicas, utilizando tipos documentais diversos que denotam materialidades amplas em espaços díspares. Conformam, a despeito dessa diversidade, um repertório reflexivo de unidade inequívoca: materialidades e simbologias, além de políticas públicas e práticas cotidianas, conformando vivências humanas e nos permitindo a compreensão delas.
Quando praticamos a compreensão histórica a partir da perspectiva da cultura material temos necessariamente de ficar atentos aos artefatos. Podemos nos ater a eles, tomando-os, a exemplo do que fundamentalmente fizeram a arqueologia e a antropologia do século XIX e parte do XX, como objetos que denotam a construção da cultura e que pela avaliação dessas disciplinas apresentam a evolução técnica do homem e o desenvolvimento social (progresso). Seria, como nos diz Marcelo Rede, o “espetáculo de produção, circulação e consumo (Rede, 2012, p.134) que encantou os pensadores do “oitocentos” e que os diferenciou “dos organizadores dos “gabinetes de curiosidades” do século anterior: estes últimos interessados no “exótico”, enquanto o homem de ciência social oitocentista centrado no artefato para construir uma taxonomia e um padrão cultural para a classificação dos povos e das culturas, aos modos dos cientistas naturais. Se seguíssemos essa tradição, poderíamos fazer uma “arqueologia” dos grupos sociais em uma “perspectiva difusionista”, onde os instrumentos e as técnicas, vistos através da análise dos objetos, nos mostrariam a sua história evolutiva. Certamente que essa perspectiva seria simples e simplificadora; pobre sob a perspectiva da História. Desde os anos de 1960, uma Nova Arqueologia já se distanciou desta perspectiva, aproximando-se da Antropologia, negando a ideia de registro material do sítio e buscando a compreensão do funcionamento do agrupamento social naquela materialidade. Ainda hoje, no entanto, nós, historiadores, antropólogos e arqueólogos insistimos nessa diferenciação (como eu o faço aqui), o que denota, ainda, a necessidade de romper com certa incompreensão sobre o valor da cultura material para nossos estudos.
A antropologia do consumo (“consumo como ato social criador de sentidos”) (Rede, 2012, p.139) desenvolvida a partir dos anos 1980, sob a influência da dimensão semiológica dos estudos sobre a cultura material, nos dá uma contribuição fundamental para os estudos históricos. Interessante que, ao pensarmos uma nova antropologia do consumo, necessariamente, temos de referenciar Daniel Miller que, em vários estudos trata o consumo (1987; 1998), não como algo a distinguir camadas sociais, mas como um fenômeno gerador de sentidos para a compreensão das sociedades modernas e contemporâneas e em discussão muito crítica à perspectiva semiótica, por tratar as coisas como “simples trecos inanimados” ou como “meros servos” da representação do homem (2013, p.22). Em Miller as coisas não apenas representam o homem, mas o constituem. Para ele
(…) denegrir coisas materiais, rebaixá-las, é uma das principais maneiras de nos fazer subir em aparentes pedestais. E, dessa altura, reivindicamos uma espiritualidade inteiramente divorciada de nossa própria materialidade e da materialidade do mundo em que vivemos (Miller, 2013, p.230).
A dificuldade que temos, de acordo com Miller, é devida a que os “Trecos têm uma capacidade notável de se desvanecer diante de nossos olhos, tornam-se naturalizados, aceitos como pontos pacíficos, cenário ou moldura de nossos comportamentos.” (Miller, 2013, p.228). Sugere que mergulhemos nossas abstrações teóricas “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram” (Miller, 2013, p.230).
Os textos que compõem o presente dossiê da Vária História, denotam essa riqueza de parâmetros na busca de compreensão da alimentação, das práticas alimentares, de suas simbologias e materialidades. Ultrapassando perspectivas semióticas e discursivas (a leitura da materialidade como um texto) Leila Mezan Algranti, Gregório Saldarriaga, Marjolaine Carles e Maria Aparecida de Menezes Borrego mergulham na “algazarra do cotidiano” do passado, tentando compreendê-lo em sua dimensão sócio-histórica. O fazem em um eixo que o arbítrio do organizador do Dossiê ordenou como da modernização social à prática dos usos de artefatos, passando pela distinção e diferenciação sociais à ação político-administrativa de autoridades municipais.
Em Alimentação e cultura material no Rio de Janeiro dos vice-reis: diversidade de fontes e possibilidades de abordagens, Leila Algranti discute fontes e abordagens para entender os artefatos das refeições, no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XVIII, como documentos das transformações dos modos à mesa, tidas como modernizadoras da sociedade europeia. Uso de talheres e atenção à etiqueta, perscrutados pela historiadora, evidenciam menor distância entre o que se pratica na Europa e na América portuguesa, contrariando uma tradição interpretativa fortemente arraigada nos estudos sobre a alimentação.
Gregório Saldarriaga mostra em seu artigo Comer y ser: la alimentación como política de la diferenciación en la América española, siglos XVI y XVII a alimentação como elemento diferenciador de camadas sociais. Os estamentos e a hierarquização da sociedade americana dimensionam-se em uma complexidade que incorpora principios europeus de raíz medieval e apresenta padrões novos e estruturas modernas que reforçam o antigo e dão dinâmica à realidade social na integração de espanhóis, criollos, mestiços e índios.
O texto de Marjolaine Carles, Eaux du domaine public (Brésil colonial) : le cas de Vila Rica, 1722-1806 (Minas Gerais), analisa o patrimônio hídrico público em Vila Rica, buscando compreender o abastecimento das fontes públicas, a apropriação das águas pelos particulares, e a ação camarária no âmbito do domínio público desse bem de consumo primordial para a organização da sociedade. Enfatiza na análise o orçamento municipal na efetivação dessa apropriação e busca relacionar o uso da água e a ocupação da terra sob aspectos sociais e jurídicos.
Já Maria Aparecida Borrego nos apresenta em Artefatos e práticas sociais em torno das refeições (São Paulo, séculos XVIII e XIX), sua interpretação sobre práticas vivenciadas pela sociedade paulista em torno das refeições e de sua mesa, tomando os artefatos como constituintes de uma transformação das sociabilidades em vivências interiorizadas no ambiente doméstico. Analisa-os na dimensão de objetos em seus lugares de escolhas para servir à experiência social e, assim, os compreende em uma dinâmica de hierarquias e de poderes.
Ao historiador que busca a compreensão de realidades sociais passadas através da dimensão material da cultura, é necessária uma atenção desmedida e cuidadosa aos objetos que parecem naturalizar-se no uso. É a ele fulcral que dê complexidade ao óbvio em reflexão cognitiva. Nessa perspectiva, o primeiro passo é muito difícil: romper com o pensamento dualista que tende a opor materialidade e imaterialidade, valorizando o simbólico, o mental, o ideal, o abstrato e desvalorizando o material, o sensorial, o corporal. Como nos lembra Marcelo Rede (2012, p.143), inspirado em Bruno Latour (Nous n’avons jamais modernes), as considerações intelectuais hierarquizam os estudos na cadeia pensamento-comportamento-matéria. Em consequência, reforçam o dualismo de opor mente-pensamento-linguagem a corpo-prática-matéria. Essa oposição é falsa e, mais que isso, é ilusória e enganadora.
Vivemos um bom momento para relativizar criticamente essa hierarquia, quando os nossos valores atuais tentam exaltar o biológico e o ecológico e, com isso, valorizando a relação homem-ambiente, acabam por ajudar-nos, em certa medida, a desumanizar as ciências humanas percebendo os artefatos do homem na íntima relação que eles têm com o seu pensamento. É preciso, no entanto, não inverter o dualismo, supervalorizando a materialidade. É preciso entendê-la como Ulpiano Bezerra de Meneses que toma “cultura material” como o “segmento do meio físico que é socialmente apropriado pelo homem” (1983, p.112). É preciso, enfim e sobretudo, dar significação à materialidade.
Referências
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. A cultura material no estudo das sociedades antigas. Revista de História, n. 115, p.103-117, 1983. [ Links ]
MILLER, Daniel. Material culture and mass consumption. Oxford: Blackwell, 1987. [ Links ]
MILLER, Daniel (org.). Material cultures: Why some things matter. Chicago: The University of Chicago Press, 1998. [ Links ]
MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. [ Links ]
MONTANARI, Massimo. Introdução. In: MONTANARI, Massimo (org.). O mundo na cozinha. História, identidades, trocas. São Paulo: Estação Liberdade / SENAC, 2009. p.11-17. [ Links ]
REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus / Elsevier, 2012. p.133-150. [ Links ]
José Newton Coelho Meneses – Departamento de História, Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: jnmeneses@gmail.com
MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Varia História, Belo Horizonte, v.32, n.58, jan. / abr., 2016. Acessar publicação original [DR]
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