– Há muito que lhe queria dizer isto, Mwadia Malunga:
você ficou muito tempo lá no seminário, perdeu o espírito
das nossas coisas, nem parece uma africana.
– Há muitas maneiras de ser africana.
– É preciso não esquecer quem somos.
– E quem somos, compadre Lázáro, quem somos?
– Você não sabe?
A epígrafe que abre o dossiê traz um fragmento da obra “O outro pé da sereia” do escritor angolano Mia Couto (2009, p. 113), Dela destacamos a frase de Mwadia Malunga: “Há muitas maneiras de ser africana”. Para Mia Couto o conceito de africanidade não é o exótico e nem a folcorização da identidade, “mas antes, significa revalorizar as temáticas históricas e antropológicas; considerar os problemas éticos e explorar as tendências linguísticas do continente” (D’ANGELO, 2013, p. 197).
Nessa perspectiva a literatura ocupa um espaço singular. Carmen Lucia Secco (2003), por exemplo, destaca o ensaio como um gênero de grande importância, principalmente “no que se refere ao universo cultural africano, pois se oferece como espaço discursivo capaz de repensar a África, permitindo a recuperação de vozes e histórias do passado obliteradas ao longo do processo colonial” (SECCO, 2003, p. 273).
Historicamente podemos situar o recorte temporal (1920-1950) como o despertar da “consciência negra” veiculada pelo “Renascimento Negro” norte-americano, pelo Indigenismo Haitiano, pelo Negrismo cubano, pela Negritude de língua francesa. É nesse período, segundo Carmen Lucia Secco (2003, p. 274), que acorre uma significativa produção discursiva de vertente ensaística na área da filosofia, história, sociologia e política que se insurge contra a ordem colonial que oprimiu, por séculos, os negros do continente africano e os obrigou à diáspora.
No campo historiográfico contemporâneo observa-se um avanço na perspectiva da descolonização da História da África. Fato que reforçou novos vieses interpretativos. A novidade é a difusão de uma “antropologização” dos conceitos historiográficos. Além disso, aponta Muryatan Santana Barbosa (2008) que numa perspectiva africana, autores como Akinjogbin et al. (1981), vêm postulando uma ressignificação conceitual de categorias como poder e território, que passam a ser estabelecidas segundo seu sentido cultural nativo: akan, ibo e Joseph Ki-Zerbo. Boubou Hama (1980), no mesmo sentido, reclama pela compreensão singular de história e fazer histórico das próprias sociedades africanas (BARBOSA, 2008).
Nessa perspectiva, concluímos com outra passagem do escritor angolano.
Às vezes pergunto-me. De onde vem à dificuldade em nos pensarmos como sujeitos da História? Vem, sobretudo, de termos legado sempre aos outros o desenho de nossa própria identidade. Primeiro, os africanos foram negados. O seu território era a ausência, o seu tempo estava fora da História. Depois, os africanos foram estudados como um caso clínico. Agora são ajudados a sobreviver no quintal da história (COUTO, 2009, p. 31-2).
Fazemos também nossas as inquietações de Mia Couto.
No Dossiê “Cultura(s) e as diásporas africanas nas Américas” publicamos estudos realizados em regiões nas duas margens do Atlântico com a intenção de contribuir para o conhecimento das culturas afro-atlânticas.
Abre o dossiê o artigo ”Entre africanidades y africanismo: fiestas publicas en Cartagena de Indias, Colombia” da autora colombiana Laura de la Rosa Solano. Nesse artigo ela aborda as transformações das manifestações culturais negras nas festas públicas em Cartagena de Índias, cidade que foi por muito tempo o maior porto do tráfico atlântico de escravos. O artigo investiga os blocos afros que desfilam na Festa da Independência e analisa as referências de matriz africana na questão identitária.
O segundo artigo apresentado por Dernival Venâncio Ramos e Márcio Araújo de Melo, intitulado “Edouard Glissant e a narrativa da descolonização” aborda a relação entre a narrativa negra caribenha e o processo de descolonização do Caribe nas décadas de 1950 e 1960. Nas obras do autor martinicano situa-se a legitimação da narrativa do processo de descolonização política das colônias europeias nas Antilhas.
No próximo artigo atravessamos o Atlântico até Angola. Cássio Santos Melo analisa em “Castro Soromenho e seus contos na Lunda do final da década de 1920” a fase inicial da obra do escritor angolano Castro Soromenho. O texto encaminha a discussão da relação entre literatura e etnografia, pois as obras analisadas dizem respeito a essa narrativa cuja temática se refere à cultura dos povos da Lunda, onde o autor viveu final da década de 1920.
O texto “Notas sobre a História da escravidão em Goiás”, por Allysson Fernandes García, discute as teses da escravidão benigna ou escravidão violenta em obras de referência sobre o tema da escravidão em Goiás, situando-as dentro das grandes linhas interpretativas sobre a escravidão.
No penúltimo artigo do dossiê, “Breve balanço da questão fundiária das comunidades Negras brasileiras”, Adelmir Fabiani faz um balanço da situação fundiárias das comunidades quilombolas brasileiras, bem como as lutas pelo seu reconhecimento. O autor discute a ambiguidade da posição do Estado que reconhece as comunidades, por um lado, mas não entrega os títulos das terras às comunidades, deixando-as fragilizadas quanto a problemas como pobreza.
Dois artigos sobre manifestações culturais e religiosas afro-brasileiras encerram esse dossiê. “Comunidade quilombola Lagoa da Pedra, Arraias (TO), e seu patrimônio imaterial” de Wolfgang Teske que aborda, através da Folkcomunicação, o modo como as populações quilombolas ressignificam suas práticas culturais, no caso a Roda de São Gonçalo, ao serem impactados por mensagens midiáticas.
O artigo “Os antigos que trabalhavam perfeitamente morreram: a memória da Umbanda em Araguaína – TO” de Sariza Oliveira Caetano Venâncio e Mundicarmo Ferretti aborda o significado da memória da “comunidade de santo” para os primeiros dirigentes dos terreiros, além de trazer uma história da Umbanda na região revelando suas conexões com os processos migratórios para a Amazônia a partir de 1960.
Na sessão de artigos livres, o texto “Compadre, sábado nós vamos lá no rio: espaço e natureza através de memórias dos ribeirinhos no Araguaia”, por Monise Busquets e Marina Haizenreder Ertzogue, aborda a memória de ribeirinhos do assentamento Falcão, (Araguatins–TO) e a relação de pertencimento com o rio Araguaia diante da construção de usinas hidrelétricas.
Em “O sertão de Goiás na Literatura de viagem” Daiany Ribeiro Teixeira investiga, através dos relatos de viajantes europeus no século XIX, a representação de sertão no imaginário dos viajantes que percorreram parte do território do Tocantins que pertencia à Goiás.
O artigo “Festas do Divino Espírito Santo em Portugal e Além-mar”, de Poliana Macedo de Sousa, estuda as festas religiosas em Portugal e sua difusão no Brasil e especificamente na cidade de Natividade, Tocantins, numa abordagem histórica e cultural da festa e de seus personagens.
No artigo que finaliza esse número da revista: “O sujeito virtual nas mídias sociais: contribuições da análise do discurso para a compreensão dos Fake”, Plábio Marcos Martins Desidério trata da categoria: “sujeito virtual” e analisa os fakes nas mídias sociais procurando contribuir para o conhecimento do modo como os discursos circulam nas mídias sociais.
Incluso nessa edição, a resenha de Gihane Scaravonatti da obra “O leão e a joia” do escritor nigeriano Wole Soyinka, relacionada com o tema do dossiê apresentado nesse número.
Referências
COUTO, Mia. O outro pé da sereia. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
______. E se o Obama fosse africano? E outras intervenções. Lisboa: Caminho, 2009.
BARBOSA, Muryatan Santana. “Eurocentrismo, História e História da África.” Sankofa 01, Revista de História da África e de estudo da diáspora africana. São Paulo, NEACP / USP, Junho de 2008. https: / / sites.google.com / site / revistasankofa / sankofa-01 / eurocentrismo-historia-e-historia-da-africa. Acesso em 06 / 08 / 2013.
D’ANGELO, Biagio. “Como recuperar o tempo pedido?” Todas as Letras. São Paulo: v. 15, n.1, 194- 204, 2013.
SECCO, Carmen Lucia Tindó Ribeiro. “O entre-lugar do ensaio no contexto literário africano de língua portuguesa.” Scripta, Belo Horizonte, v. 7, n. 13, p. 272-285, 2º sem. 2003.
Dernival Venâncio Ramos
Marina Haizenreder Ertzogue
Editores deste número
RAMOS, Dernival Venâncio; ERTZOGUE, Marina Haizenreder. Editorial. Revista Mosaico. Goiânia, v.6, n.1, jan. / jun., 2013. Acessar publicação original [DR]
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