A trajetória que envolve o debate sobre cultura material é extensa, complexa e multidisciplinar. Nos domínios da História, este debate tem como ponto de partida a vida material proposta por Fernand Braudel (1960/70), passando pelos trabalhos de Daniel Roche (1980/90), que procuraram congregar concomitantemente as contribuições da História Social e da História Cultural. Em geral, até o terceiro quartel do século XX, era tema e objeto de pesquisa específicos da Arqueologia e da Antropologia.
No Brasil, destacam-se alguns precursores que se reportaram aos objetos e procuraram, a partir deles, compreender como a materialidade e suas imagens poderiam auxiliar no entendimento do passado. É preciso lembrar que tais autores não tiveram a finalidade de inquirir diretamente a cultura material e, por isso, seus estudos tornaram-se, hoje, fontes de pesquisa ─ inspiradores, pela natureza de seus trabalhos ─, mas não um referencial metodológico. Com perspectivas e recortes temporais diferentes, suas análises estudaram fenômenos de caráter cultural e, em particular, levantaram questões ligadas à vida material, como é o caso de Sérgio Buarque de Holanda em Caminhos e Fronteiras (1957). Quando a historiografia francesa ainda dedicava pouca atenção ao tema, Gilberto Freyre (1933 e 1936) e Alcântara Machado (1929), por exemplo, já estudavam as moradias dos senhores de engenho, os sobrados citadinos, os mucambos, a alimentação, o mobiliário, a vestimenta e a atitude diante da morte.
Um dos pontos que distingue a historiografia atual dos estudos tradicionais é o fato de que a cultura material deixou de ser compreendida como um “rol de artefatos” e passou a ser analisada em simbiose com a sociedade que a criou, com a economia que a produziu, com o mercado que a distribuiu e com a cultura que permitiu sua existência estética, morfológica e funcional. Os artefatos passaram a ser discutidos, no tempo e no espaço, como invenções e criações de grupos sociais nos quais homens e mulheres de diferentes etnias estavam inseridos.
Outro fator que assinala os estudos contemporâneos, além da intersecção com outras áreas de conhecimento, reside no fato das pesquisas atuais investigarem os objetos para além das esferas dedicadas ao mercado, ao consumo e à economia. Há, ainda, autores que preconizam a cultura material como vetor de relações humanas e conformadora de práticas sociais, a exemplo da abordagem adotada por Ulpiano Toledo Bezerra de Meneses.
Os textos apresentados neste dossiê refletem concomitantemente a transdisciplinaridade das abordagens metodológicas, bem como a diversidade dos temas e objetos comtemplados nas respectivas pesquisas. Do mesmo modo, os textos demonstram que a cultura material pode ser estudada para além da sua materialidade, contemplando imagens reais ou, também, aquelas evocadas pela narrativa histórica. Vejamos, a seguir, os principais assuntos, questões e fontes estudados nos nove artigos, agora, em destaque.
André Gonçalves Figueiredo busca problematizar a imagem de José Joaquim Xavier, o Tiradentes, que circulou na cidade de São Paulo no semanário humorístico, A Platéa, em 1889. O texto contribui não só com a historiografia sobre a representação de personagens e imagens do passado colonial, mas também sobre apropriações, dissimulações e/ou pastichos presentes na História e na cultura visual.
Maria Aparecida de Menezes Borrego e Igor Alexandre Silva Cassemiro analisam as marcas d’água localizadas nos documentos setecentistas da capitania de São Paulo. O papel impresso, utilizado como suporte da escrita, é pensado como um artefato, um produto do trabalho humano, inserido nos circuitos comerciais e administrativos. Segundo os autores, as imagens refletidas nas marcas d’água se “convertiam em suportes de informações privilegiados para a comunicação entre as várias partes do império Português”.
Isabel Drumond Braga estuda os discursos imagéticos e textuais difundidos principalmente pela revista Fémina, nos primeiros anos do século XX. O foco das análises recai sobre a entrada gradual dos eletrodomésticos nos lares portugueses e como o comportamento da(o)s usuária(o)s foi moldado pelas ideias de higiene, de economia e eficácia. Ainda no âmbito doméstico, o artigo de Luciana Silva nos reporta aos domicílios setecentistas da capitania de Minas Gerais. A partir de um conjunto de inventários post-mortem, discute a presença dos móveis de dormir e da rouparia de cama numa economia marcada pela desigualdade e mobilidade dos grupos sociais.
Por meio de perspectiva interdisciplinar, utilizando-se de aportes da etno-história e da arqueologia, os vestígios materiais oriundos do Valle de Uspallata/Argentina e do sítio arqueológico Mato Seco, em São Gonçalo do Abaeté/Minas Gerais, foram estudados em dois artigos. O primeiro, de Vanina Victoria Terraza e Andrés Darío Auteri, prioriza a biografia cultural dos artefatos com o objetivo de entender as relações sociais em consonância com a produção das cerâmicas, no contexto da dominação Inca. Já o texto de Natália Gomes Turchetti aborda o processo ocupacional em território mineiro e a constituição identitária brasileira por meio dos vestígios cerâmicos da cultura Jê.
Os três últimos artigos têm a fotografia como mediador da cultura material, da cultura visual e da narrativa histórica. O texto de Sarah Lima Mendes investiga os álbuns de fotografias pertencentes aos concluintes do Jardim de Infância Modelo, em Natal/Rio Grande do Norte. Mendes explora habilmente “as memórias dos sujeitos que compõem aquele espaço, dos saberes produzidos na escola, assim como, reflet(e)ir o lugar que ocupa a criança no referido espaço educacional”, em meados da década de 1950- 1960. Por outro lado, o texto de Rogério Ivano problematiza a produção dos álbuns fotográficos de três fotógrafos que registraram imagens do norte do Paraná. As fotografias selecionadas, entre as décadas de 1930 e 1960, permitiram identificar três formas de narrativa histórica: antiquária, heroica e cômica. Por fim, o artigo de Solange Ferraz de Lima e Eric Danzi Lemos analisam “as primeiras experiências de processo de reprodução mecânica engendrados pela fotografia”. Entre as muitas questões abordadas, avaliam o impacto dos processos fotomecânicos na cultura visual, bem como a produção, circulação, consumo e formas de apropriação dos produtos visuais.
Enfim, a diversidade teórica e a complexidade metodológica dos temas apresentados demonstram que, além de um campo consolidado de pesquisa, a cultura material apresenta-se como uma ferramenta útil e profícua para o entendimento das sociedades do passado e da contemporaneidade.
Desejamos a tod@s uma boa e profícua leitura dos textos que compõem o dossiê: Cultura Material: objetos, imagens e representações!
Organizadora
Cláudia Eliane P. Marques Martinez
Referências desta apresentação
MARTINEZ, Cláudia Eliane P. Marques. Apresentação. Domínios da Imagem. Londrina, v. 14, n. 27, p. 3-5, jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]
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