O que se imprime e o que se lê?
Oportuna é a proposta deste dossiê da Temporalidades de evidenciar reflexões que privilegiem o diálogo temático da cultura impressa com a perspectiva de análise historiográfica que busca na leitura dos objetos o caminho instrumental da compreensão histórica. Os elementos materiais da cultura – como prefiro nominar o que normalmente se chama de “cultura material” – apresentam-se ao historiador como documentos de realidades sociais. Não são apenas simples reflexos da construção social, mas, repertórios de objetos criados e feitos pelo homem e integrados em sua constituição histórica. Os artefatos não são, ainda, simples detentores de sentidos sociais deslocados de seus usos: são enunciados que dão sentido às realidades, atribuem valor às coisas dos homens, induzem e instrumentalizam as práticas sociais.
Tenho escrito essa assertiva acima em algumas reflexões que faço no meu cotidiano de leitura da vida passada e, cada vez mais, sinto a necessidade de a verticalizar teoricamente. Não é o que farei aqui, simples apresentação de um conjunto de textos temáticos que valorizam a leitura dos artefatos da inteligência humana.
“Objetos criados e feitos pelo homem”: foi o que escrevi logo acima como síntese de que as coisas do homem partem da sua inteligência e realizam-se com o saber-fazer de suas mãos. As mãos sabem e, por isso, fazem! Portanto o corpo humano, estrutura material mais intrínseca do ser, expressa-se como saber, como inteligência; os artefatos criam-se, inventam-se como instrumento dos gestos do corpo e da inteligência. As coisas do homem são inteligência humana.
A tradição historiográfica dos últimos 100 anos tem evidenciado bem o que ela denomina de “cultura material”, tratando os objetos como a parte não humana do humano; como os feitos do homem; como reflexo do pensamento humano. Em raros momentos tem compreendido os artefatos como parte dessa inteligência, como o próprio homem. Como quer Marcelo Rede, o “espetáculo de produção, circulação e consumo” [1] encantou os pensadores sociais no século XIX e a historiografia insistiu nessa permanência interpretativa, no diálogo com uma antropologia do consumo, refletindo “consumo como ato social criador de sentidos” [2], sob a influência da dimensão semiológica dos estudos sobre a cultura material. Dessa forma, evidenciou, feitos, conquistas, técnicas e instrumentos tecnológicos, produção econômica, invenções, transformações do mundo físico, sociabilidades, rituais, protocolos, intervenções no meio etc.
Uma nova antropologia do consumo nos ajudou a pensar, como Daniel Miller, que as coisas não apenas representam o homem, mas o constituem.[3] Para ele, estamos denegrindo as coisas materiais para exaltarmos a nossa inteligência | pensamento e, então, “dessa altura, reivindicamos uma espiritualidade inteiramente divorciada de nossa própria materialidade e da materialidade do mundo em que vivemos.” [4] Miller nos sugere que, ao invés de naturalizarmos os artefatos, nos mergulhemos “de volta na algazarra da vida cotidiana e na gloriosa confusão de contradição e ambivalência que ali se encontram.” [5] Tal proposta nos exige a abertura para uma nova perspectiva de olhar e de ler os produtos materiais da inteligência humana nessa algazarra cotidiana.
Há propostas metodológicas de decifração dos textos em sua condição de construção material. Refletidas por historiadores, sociólogos, antropólogos e vários outros profissionais ligados à restauração e conservação, à história da circulação de livros e de leituras, dentre outros, elas arejam ainda mais a compreensão da vida social a partir da escrita e de seus produtos em vários suportes. Márcia Almada, pensando o texto como artefato, [6] vê duas vertentes gerais vigentes de se trabalhar o artefato presentes nos estudos acadêmicos: tomá-los como tema de estudo ou como fonte de investigação. Lembra-nos de como os textos foram hierarquizados como documentos de pesquisa privilegiados pelos historiadores, afastando-os das fontes ditas materiais[7] A autora remete à Bibliography & the sociology of texts, de Donald MacKenzie. Ele busca fazer uma associação entre a ação de escrever um texto e a atividade de tecelagem. [8] Escrever é tecer. Com isso percebe o texto (a própria etimologia latina da palavra remete ao verbo tecer) como uma teia, uma tela, uma rede e, assim, nos facilita a percepção de sua condição material de construção.
A associação de texto ao têxtil, nas palavras de Roger Chartier, são “proximidades metafóricas ou materiais”, dentre as “numerosas metáforas que designam a escrita”, desde os antigos. [9] As metáforas poéticas da Antiguidade clássica grega aproximam o fazer poético do artesanato têxtil, com a inspiração se distinguindo do artesanato e a poesia sendo pensada como um discurso que se enreda em uma tela. Dessa forma, vão se aproximando e se distinguindo, paradoxalmente, a inspiração e a materialidade, no ato da escrita.[10] O texto como tela, tecida com arte (art – artesanato) e com inteligência.
Óbvio que, ao longo da história da humanidade, o suporte onde esse texto-teia se constrói é parte intrínseca dele, quer componha manuscritos, mapas, impressos, livros, gravuras, partituras musicais, quer sejam apresentados em filmes, vídeos ou informação digital. Como parte a ser compreendida e que vai além do conteúdo escrito, essa construção textual viabiliza leituras incorporadoras da atitude autoral e englobam vários materiais, técnicas e pessoas envolvidas nessa construção.
As assertivas de Chartier, de Almada e de MacKenzie, me lembram Robert Darnton em A importância de ser bibliógrafo. Darnton inicia seu texto analisando a construção de escritos atribuídos a Shakespeare e de como chegam aos tempos posteriores a ele, “adulterados” em suas edições por um “tipógrafo (…) particularmente negligente”.[11] As análises do texto e do caminho de suas impressões por um profissional que “melhorava” a compreensão das edições anteriores tomadas de base, acabam por construir um “Shakespeare muito contaminado”.[12] O historiador, então, conclui que não basta ser crítico literário para ler o texto shakesperiano ou pseudoshakesperiano. É preciso ser bibliógrafo ou entender bastante de bibliografia “descritiva” e “analítica” para compreender textos do teatrólogo inglês. Desvelar as fontes materiais trabalhadas pelo tipógrafo “negligente” faz o estudioso conhecer um texto, outro texto, mais outro, tessituras de textos vários, incorporações, traduções, traições, a construírem um William Shakespeare.
Darnton nos brinda ainda com outro ensaio instigante sobre o jornal e o papel suporte dos textos jornalísticos e o risco de se perder a história ao relegar o arquivamento destes textos a microfilmes ou em meios digitais. Inspirado e motivado por Nicholson Baker, em seu Double Fold, que transforma em vilões os bibliotecários descartadores de papéis após a digitalização dos conteúdos textuais, o historiador americano escreve Em louvor do papel. Aí, numa resenha crítica a Baker e tomando seu livro como um j’accuse que não funciona bem na perspectiva da história, mas, contudo, percebendo que “o massacre do papel se espalhou para os livros”, Darnton concorda: “Nossa cultura está sendo destruída por seus guardiões”. [13]
Ressaltando uma série de temáticas nos estudos dos historiadores que não seria possível sem a leitura dos jornais diários, o autor de O Grande Massacre de Gatos lamenta o desaparecimento dos jornais das prateleiras das bibliotecas e arquivos porque:
Microfilme não serve, não apenas por estar repleto de problemas e lacunas, mas também por não conseguir transmitir a textura da página impressa – a forma como manchetes, diagramação, toques de cor e qualidades táteis do jornal standard e do tabloide orientam o leitor e conduzem o olhar através de blocos significativos de material impresso.[14]
Os dois textos de Robert Darnton referidos acima reforçam o valor da materialidade da escrita e de sua compreensão para se ler os textos como objetos autorais (mesmo considerando incorporações, composições, traduções), portanto de homens em tempos e em espaços específicos, cujas compreensões em uma totalidade histórica seriam acrescidas de sofisticação analítica, ao se usar os sentidos da visão, do tato, do olfato e até da audição na leitura textual. Ou seja, o tratamento do “texto como artefato” é instrumental de primordial importância para aprimorarmos nossa leitura.
***
Fique claro: esse dossiê não foi proposto para cumprir estratégias instrumentais prévias e, assim, não exigiremos dos textos do Cultura Material e Impressa na construção da História a perspectiva de análise propugnada acima. São textos livres das amarras teórico-metodológicas que se apresentam para a crítica do leitor. Eles, no entanto, nos remetem à reflexão sobre a construção material de textos impressos, em suas formas distintas de suportes e de condições de construção (social, histórica, ideológica), de publicização, de circulação entre leitores, também eles, os leitores, em várias temporalidades e espacialidades de leituras.
Diálogos culturais e políticos, objetos de interesses díspares, construções simbólicas de sociabilidades expressos em manifestações identitárias de cultura, suportes propagandísticos de valorização de sentimentos de nação, tudo isso, em materialidades da escrita e dos artefatos dos quais ela tematiza, os quatro textos deste dossiê, em suas especificidades nos apresentam reflexões em padrões distintos. Tal diversificação atende ao leitor da Temporalidades e o convida a refletir sobre um diálogo que a historiografia cada vez mais, valoriza: os elementos materiais da cultura e a impressão de textos e circulação de ideias que eles veiculam. Os artefatos e o texto; o texto-artefato; o suporte material do texto; o texto suportando ideias.
Boa leitura.
Notas
1. REDE, Marcelo. História e Cultura Material. In: CARDOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo (orgs.) Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus | Elsevier, 2012, p. 134.
2. Idem, p. 139.
3. MENESES, José Newton C. Apresentação. In: VARIA HISTÓRIA. Vol. 32, n. 58, Dossiê “Culturas alimentares, práticas e artefatos”, jan | abr, 2016, p. 15-20.
4. MILLER, Daniel. Trecos, Troços e Coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 230.
5. Idem, p. 230.
6. ALMADA, Márcia. Cultura material da escrita ou o texto como artefato. Belo Horizonte: Mimeo, s | d.
7. Idem, p. 2.
8. MacKENZIE, Donald F. Bibliogrphy & the sociology of texts. Port Chester, N.Y.: Cambridge University Press, 1999.
9. CHARTIER, Roger. Inscrever e Apagar. Cultura escrita e literatura. São Paulo, Editora UNESP, 2007, p. 20.
10. Idem. Ver Capítulo 6, O texto e o Tecido, p. 232.
11. DARNTON, Robert. A importância de ser bibliógrafo. In: DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 147.
12. Idem. p. 148.
13. DARNTON, Robert. Em louvor do papel. In: DARNTON, Robert. A questão dos livros: passado, presente e futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 126. O livro de Nicholson Baker referido é Double Fold: Libraries and the Assault on paper. [Dobradura dupla: Bibliotecas e o ataque ao papel], segundo Darnton, “um j’accuse direcionado à profissão de bibliotecário” (p. 126).
14. Idem, p. 134.
José Newton Coelho Meneses – Professor Associado do Departamento de História | FAFICH – UFMG.
MENESES, José Newton Coelho. Apresentação. Temporalidades. Belo Horizonte, v.10, n.3, set./dez. 2018. Acessar publicação original [DR]
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