Cultura Material, Arqueologia e Patrimônio | Memória em Rede | 2020
Memória apresenta duas facetas, a individual e a social, interlaçadas, mas diferentes. Em termos individuais (ἴδιος = dele), ou próprios (αὐτός = auto, próprio) a cada um, a lembrança é algo efêmero, seletivo, sujeito a contingências biológicas, além das psicológicas. As enfermidades podem alterar ou mesmo impedir as lembranças, a mostrar a sua base na fisiologia cerebral. Além disso, as recordações estão sujeitas à seletividade psicológica, a impulsos ou afetos, no sentido proposto pelo filósofo Bento de Espinosa (1632-1677) (Ética, 3,3,3,), de modo que qualquer impressão do passado é sempre uma invenção no presente, em constante mutação. Invenção vem de “eu encontro” (inuenio), sempre experiência objetiva e subjetiva, daí descoberta/invenção, a cada momento. A cerimônia de casamento, a primeira experiência no mundo do trabalho ou na escola, são reinventadas, a depender da época e das circunstâncias.
A utilização do mesmo termo, memória, para referir-se à lembrança social parte de uma transposição metafórica do indivíduo para o coletivo (Halbwachs 1950). Convém refletir um pouco sobre o sentido mesmo da palavra: a raiz -men, mente, pensamento, desejo, remete à vontade e, daí, à mente. Lembrança e prazer, parceiros insuspeitos. Se não há memória biológica, à diferença daquela de um indivíduo, como ela se manifesta na sociedade? Outro conceito, desta vez do hebraico, talvez possa jogar luz sobre isso: Zikaron, dispositivo de memória (da mesma raiz de “zakhor” = lembrar), de , zécher = resto.
Êxodo 12, 14 . , ד י : י , י יד E seja este dia para vós memorial e o mantereis como festa para Iavé pelas gerações, mandamento para sempre festejarão.
(tradução nossa)
“Conservareis a memória daquele dia, celebrando-o com uma festa em honra do Senhor: fareis isso de geração em geração, pois é uma instituição perpétua.”
Êxodo, 12 – Bíblia Católica Online
Zikaron refere-se, em geral, a um objeto que incita a lembrança, que aponta para algo que excita (raíz zkr, = pilar, falo), leva à ação, ao futuro. Isso leva-nos à materialidade que induz à ação (Nora 1993). Memória (μνήμη, mneme) e Memorial (μνῆμα, mnema) implicam-se e explicam-se, o enunciável e o visível, o que se pode dizer e o que se pode ver (Foucault 1963: 97). As relações de micropoder manifestam-se na materialidade, no centro da disciplina Arqueologia e deste dossiê.
Memória e memorial levam à questão da relação entre presente, passado e futuro (Cantinho 2011). A lembrança das supostas semelhanças no passado justificaria o presente e antecipariam um futuro conforme ao que veio antes (Funari 1996). Já a lembrança do passado como diferença permite questionar o presente, em busca de um devir diverso (Foucault 1983: 449). Vivemos sob o signo do presente, do efêmero, do momento. As redes sociais contribuem para tudo evanescer em pouco tempo. François Hartog (2003) viria a caracterizar o nosso tempo, a partir do final do século XX, como o predomínio do momentâneo, despreocupado pelo passado, mas também por um futuro que pudesse ser diferente. Francis Fukuyama (1992) viria a expressar algo comparável, com seu Fim da História, a partir de ponto de vista bem diverso. Os grandes ausentes são o passado e o futuro, o que foi e o que há de ser. Mas, o que é o presente, sem passado e futuro?
Essa inquietação tem sido cada vez mais frequente, face à omnipotência do efêmero. O século XXI tem testemunhado, das formas mais variadas e contraditórias, essa busca por passados, por narrativas míticas que podem ser regressivas, ou prospectivas. O retorno às origens narrativas idealizadas pode conduzir, como tem sido o caso em toda parte, a políticas discriminatórias, intolerantes, excludentes e aspirantes a um futuro regressivo, a um passado que nunca existiu. Mas, também têm surgido aspirações a outras possibilidades, de modo que o passado sirva a inspirar novas possibilidades.
Neste contexto, a História assume papel de relevo particular, usado para justificar as maiores iniquidades, ou para inspirar os anseios pelo respeito ao outro ou, no limite, pela máxima tão importante: amar (ou respeitar, tratar) o outro como a si mesmo. Todos ganham ao ouvir o outro e a materialidade pode contribuir para pensar e agir sobre o passado, o presente e o futuro. Melhor será quanto mais carregado das experiências do passado, tendo em vista um futuro de respeito à diversidade e de convivência das diferenças.
Temas de ressonância hoje, e de capital importância para o futuro, são discutidos no dossiê, a começar pelo estudo e reflexão sobre a diferença. Paul Veyne (1976) ressalta que a História é o inventário das diferenças, como David Lowenthal (1985) e sua proposta do passado como um país estrangeiro. Racine (1639-1699), muito antes, já dizia que visitar o passado era como ir a um país distante. Derrida (1967) enfatizaria o distanciamento, o lapso de espaço e tempo, à raiz da diferença, pelo que criaria até um neologismo (em português, seria diferir, frente a diferenciar). A diferença como critério de humanidade, de possibilidade de compartilhamento do mundo, mesmo e com a participação ativa do outro, pode constituir a grande contribuição da História para a convivência humana.
É a partir de tais discussões que apresentamos, então, os artigos que compõem o presente dossiê, os quais, a partir de objetos e abordagens teórico-metodológicas variadas, procuram ampliar e aprofundar os horizontes de análise aqui abordados.
Começamos com uma entrevista com Cornelius Holtorf, cujo trabalho inovador no âmbito dos estudos patrimoniais em âmbito internacional apresenta aos jovens pesquisadores brasileiros e latinoamericanos reflexões desafiadoras para suas carreiras.
A partir daí apresentamos três textos de autoria de pesquisadores estrangeiros, cujas análises de importantes objetos trazem discussões de grande interesse em âmbito nacional. Em primeiro lugar, apresentamos o texto de André Teixeira, Íris Fragoso e Leonor Medeiros sobre abordagens em Arqueologia Pública no icônico bairro da Mouraria, Lisboa, seguido da discussão de autoria de Ricardo Roque e Lúcio Sousa, acerca da abordagem arqueológica de objetos sagrados timorenses, em contexto colonial português. Em terceiro lugar figura o texto de autoria de Neil Brodie, em língua inglesa, que vem trazer uma discussão de grande impacto no mundo contemporâneo, acerca de comércio de antiguidades, justiça restaurativa, direitos autorais e da restituição de acervo arqueológico.
Na perspectiva de análise de bens arqueológicos e arquitetônicos em cenário nacional apresentamos quatro textos. O primeiro, de autoria de Eduardo Romero de OLIVEIRA e de Tainá Maria SILVA, versa sobre bens industriais paulistas, enquanto o texto de Walkiria Maria de Freitas MARTINS, que tem como pano de fundo o reconhecimento do “Conjunto Urbanístico de Brasília” e do “Conjunto Moderno da Pampulha”, o de Diego Vasconcellos Vargas e de Martin Jayo, sobre a consagração dos arcos do Bixiga, e o de Débora RIOS e de Maria Amália Silva Alves de OLIVEIRA sobre a patrimonialização dos remanescentes das antigas Docas de D. Pedro II, complementam esse eixo de análise que aborda importantes marcos patrimoniais e identitários brasileiros e analisa as disputas que circunscrevem seus processos de patrimonialização.
O texto de Renata Senna Garraffoni apresenta um ponto de reflexão importante neste Dossiê, na medida em que propõe a construção de uma cartografia poética do centro histórico de Curitiba e que nos brinda com uma análise que relaciona poesia, arquitetura e recepção dos Clássicos na cidade. Finalmente, fechamos este conjunto de análises com dois textos que exploram a arte rupestre da Serra da Capivara, este importantíssimo parque arqueológico nacional. O primeiro texto, intitulado “O papel das mulheres ancestrais nas pinturas rupestres do parque nacional Serra da Capivara – PI, Brasil” da autoria de Cristiane de Andrade Buco, Gabriel Frechiani de Oliveira, Michel Justamand, Vitor José Rampaneli de Almeida, Antoniel dos Santos Gomes Filho, e de Vanessa da Silva Belarmino e o segundo “Os caçadores da Préhistória nas pinturas rupestres do parque nacional Serra da Capivara – Piauí, Brasil” de autoria de Michel Justamand, Gabriel Frenchiani de Oliveira, Vitor José Rampaneli de Almeida, Valdeci dos Santos Júnior, Albérico Nogueira de Queiroz, Vanessa Belarmino da Silva e Antoniel dos Santos Gomes Filho podem ser lidos como análises complementares que ajudam os pesquisadores em arqueologia do país a terem uma visão mais aprofundada desse conjunto patrimonial de grande valor nacional e internacional.
Este volume conta ainda com os artigos “Memória como meio de produção de conhecimentos históricos”, de Cyntia Simioni França, “Aplicação do Método da Valoração Contingente (MCV): Estudo de Caso do Mural AS PROFISSÕES de Aldo Locatelli um patrimônio da UFRGS”, de Roberto Limía Fernandes, Judite Sanson de Bem e Moisés Waismann, “O Monumento aos Bandeirantes em Goiânia e o mito fundador da nova capital”, de Jordanna Fonseca Silva, e “Transformando imaterial em tangível: o caso da exposição Lutas: Patrimônio Cultural da Humanidade”, de Leandro Paiva, Michel Justamand, Canmilla Mousse, e Deise Lucy Montardo, com o ensaio visual “Butiazais – Paisagem Cultural do Rio Grande do Sul” de Adriana Aparecida Felin, Cleusa Maria Gomes Graebin e Sérgio Augusto de Loreto Bordignon e com a resenha ao icônico texto “Espaços da Recordação: formas e transformações da memória cultural”, de Aleida Assmann da autoria de Patricia Posch e que juntos complementam as importantes análises que pretendemos apresentar ao público neste volume.
Esperamos, assim, contribuir com o horizonte das discussões que circunscrevem os estudos em Cultura Material, Arqueologia e Patrimônio, especialmente em contexto nacional, levando os leitores a se desafiarem em abordagens inovadoras e provocativas que possam contribuir para o aprofundamento das discussões teórico-metodológicas sobre os campos em questão.
Referências
CANTINHO, Maria João. “Walter Benjamin e a história Messiânica. Contra a visão histórica do progresso”. Revista Philosophica, n. 37, Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa, Lisboa, Ed. Clibri, 2011.
DERRIDA, J. L’écriture et la différence. Paris: Seuil, 1967.
FOUCAULT, M. “Structuralisme et poststructuralisme”. In: Dits et écrits II. 1976-1988. Paris: Quarto Gallimard, 2001 (1983).
FOUCAULT, M. Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical. Paris: Presses universitaires de France (PUF), 1963.
FUKUYAMA, F. The end of history and the last man. Nova Iorque: Free Press, 1992.
FUNARI, P. P. A. Consideracões Em Torno das ‘Teses Sobre A Filosofia da História’ de Walter Benjamin. Critica Marxista (São Paulo), v. 1, n.3, p. 45-53, 1996
HALBWACHS, M. (1950). La mémoire collective. Paris: Albin Michel.
HARTOG, F. Régimes d’historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Seuil, Coll. « La Librairie du XXIe siècle », 2003.
LOWENTHAL, D. The past is a foreign country. Cambridge, England: Cambridge University Press, 1985.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, p.7-28, dez.1993.
VEYNE, P. L’inventaire des différences. Paris, Editions du Seuil, 1976.
Organizadores
Rita Juliana S. Poloni
Pedro Paulo A. Funari
Referências desta apresentação
POLONI, Rita Juliana S.; FUNARI, Pedro Paulo A. Editorial. Memória em Rede. Pelotas, v.12, n.23, p.1-6, Jul./dez. 2020. Acessar publicação original [DR]