Os estudos em torno da Nova História Cultural têm proposto interessantes abordagens sob a perspectiva da mediação e circulação de ideias entre espaços culturais, simbólicos e nacionais, ao longo do século XIX. A partir desta ótica, as complexas transformações socioculturais, que ocorreram devido ao intenso desenvolvimento técnico, têm sido alvo de revisão historiográfica, sobretudo com grupos temáticos de pesquisa que visam responder às grandes questões em torno dos eventos ocorridos ao longo desta extensa centúria. Este é o exemplo do Seminário Internacional Estado, Cultura e Elites (1822-1930) realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa em 2014 e que resultou na obra Cultura e Poder entre o Império e a República – Estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930) organizada por Ana Beatriz Demarchi Barel (Universidade Estadual de Goiás) e por Wilma Peres Costa (Universidade Federal de São Paulo) e lançada em 2018 sob o selo da editora Alameda.
A obra reúne uma série de pesquisas, inseridas no campo da micro-história, que tentam compreender a construção do Estado Nacional, encampada pela elite intelectual, e a constituição da identidade brasileira ao longo século XIX no Brasil, período que abrange a Independência em 1822 até a Revolução de 1930, evento que depôs o presidente Washington Luís (1869-1957) e pôs fim à Primeira República. O objetivo principal da obra é elencar ideias e valores conduzidos e orientados pela elite letrada que ajudaram a formar o imaginário brasileiro. Nesse sentido, os artigos evidenciam e problematizam a produção letrada e visual de indivíduos inseridos, ou não, em grupos institucionais que pensaram a Nação a partir do repertório cultural nacional. Organizada em duas partes, há de se dizer que a primeira traz estudos orientados por objetos de pesquisa pertencentes ao universo da escrita e a segunda às artes visuais, ambos em crescente circulação, uma vez que houve, especialmente a partir do último quartel do século XIX, expressivo aprimoramento das questões técnicas, aumento demográfico e evolução técnica do suporte impresso, o que favoreceu significativamente a disseminação das ideias.
A série de textos é iniciada com instigante artigo, “Espaço público, homens de letras e revolução da leitura”, assinado pelo historiador francês Roger Chartier quem busca explicar as noções presentes nos artigos da obra: o espaço público, o homem de letras e intelectual e a revolução da cultura. O autor reflete sobre o espaço público a partir do uso crítico da razão, proposta já enunciada pelo filósofo Immanuel Kant (1724- 1804), no século XVIII, e abordadas por aqueles que se debruçaram em compreender o denso pensamento daquele intelectual prussiano ao longo do tempo, a exemplo de Jürgen Habermas (1929-) e Michel Foucault (1926-1984) cujos trabalhos não mediram esforços em repensar Kant, promovendo reflexão sobre a socialização no espaço privado, algo não abordado pelo filósofo prussiano. Segundo Chartier, há uma continuidade entre o uso crítico da razão e a política moderna, porém a relação entre o homem de letras e o intelectual é ainda mais complexa. O autor parte da definição de Voltaire (1694-1778), seguindo pelas alterações ocorridas no final do século XIX, momento em que o escritor Émile Zola (1840-1902) proferiu críticas ao caso Dreyfus por meio do famoso texto J’Accuse, o que inaugurou o debate público em torno da defesa de uma causa, fator decisivo para a formação do homem intelectual. Por fim, essas transformações também estão ligadas sobremaneira com a revolução da leitura marcada por sua mudança, qual seja: intensiva à extensiva. É fundamental destacar que as evoluções técnicas do suporte e a alfabetização dos leitores mostraram-se elementos indispensáveis para a disseminação da palavra escrita e, por sua vez, o estabelecimento de novas práticas de leitura.
Na primeira parte, há análises de escritos historiográficos e culturais produzidos por homens de letras inseridos em grupos ou Instituições que tinham por meta a criação de projetos de definição do espaço brasileiro e do ideário nacional. O artigo de Luiz Montez, “O relato de viagens como objeto de autorreflexão historiográfica de alemães entre os séculos XVIII e XIX”, apresenta a possibilidade de trabalhar com os relatos de viagem como objetos da história da cultura e da literatura, além de promover alerta aos historiadores os quais devem estar atentos à análise do objeto, colocando-o à frente das condições históricas, como é comumente realizado pelos pesquisadores. O autor alerta para a prática discursiva do texto, incluindo a complexidade da tradução, que pode revelar importantes interpretações de manifestações culturais e políticas. É a partir deste pressuposto que Montez mostra, brevemente, as possíveis relações científicas entre a Alemanha e o Brasil a partir de estudo de um conjunto de manuscritos, a saber, anotações, trechos de cartas, fragmentos de diários do zoólogo Johann Natterer (1797-1843), integrante da expedição científica austríaca no Brasil entre 1817 a 1835.
Os dois artigos seguintes abordam a temática do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, fundado em 1838, sob a responsabilidade de D. Pedro II e estruturado em ideias iluministas e concepções filosóficas e políticas das academias europeias do século XVIII. Lucia Maria Paschoal Guimarães em “História e poder: as experiências do passado, o domínio do presente e as possibilidades futuras do Estado Imperial (1838-1850)” debruça-se sobre a escrita da história dos membros do Instituto. Trata-se de evidenciar como a historiografia do IHGB voltou-se para a exaltação do Estado-Nação com o objetivo de legitimar a Monarquia, uma vez que, embora houvesse certa tensão entre os membros, todos buscavam honrarias e a fidelidade ao Imperador. Para a proteção e garantia da memória nacional criou-se a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, periódico estudado por Ana Beatriz Demarchi Barel. A intenção da autora em “A revista do IHGB e a construção do cânone literário do Império no Brasil” é a de mostrar que a RIHGB foi um projeto transatlântico, fruto das trocas e encontros culturais entre o Brasil e a França que já se estabelecia desde a Independência em 1822.
Já o artigo “As ideias sobre a música no mecenato imperial” de Avelino Romero Pereira traz interessante análise sobre a música nos teatros e como essa criação artística, também sob a proteção do Imperador, foi usada para a construção do projeto nacionalista. Observado como um jogo de tensões, o autor mostra como a proteção, apoio e patrocínio, ou seja, como o mecenato imperial foi indispensável às atividades culturais, o que ajudou a constituir uma relação complexa acerca das expressões artísticas divergentes. Procurando revisitar os estudos sobre a música no Segundo Império, Pereira baseia-se em estudo sobre as artes visuais e procura analisar obras até então relegadas ao esquecimento pela historiografia. A partir destas críticas, o autor também propõe o levantamento de debates sobre as narrativas do romance e da ópera, que igualmente constituíram-se de objetos artísticos também portadores de discursos nacionalistas a partir do uso da História.
Wilma Pereira Costa em “Taunay, Taunays: territórios, imaginários e escrita da nação” estuda a formação intelectual e o papel do franco-brasileiro Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-1899) na constituição do imaginário nacional brasileiro. A autora explora detalhadamente as diversas obras de Taunay sem inseri-las entre os grandes gêneros da produção intelectual, mas na tentativa de experimentação, como bem demonstrou a autora, ou seja, a observação de várias formas de escrito que seguiam três grandes raízes: a narrativa de viagem, o romance de formação e a autobiografia. As experiências familiares, os espaços, as sociabilidades e o contato com a cultura francesa são pressupostos importantes na formação intelectual de Taunay.
O último artigo da primeira parte, “Joaquim Nabuco, historiador e homem de letras: confluência das práticas culturais no IHGB e na ABL”, também trata sobre a formação de um intelectual engajado em elaborar projetos de nação. Ricardo Souza de Carvalho analisa a figura de Joaquim Nabuco em duas instâncias de poder do final do século XIX: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e a Academia Brasileira de Letras. O autor narra a trajetória política e literária e o limite estabelecido entre ambas as carreiras de Nabuco e, ainda, apresenta as ideias do político-escritor, prestigiador da Monarquia e crítico da jovem República, opiniões que marcaram uma tensão nos espaços em que circulava e pelas quais ficou bastante conhecido.
Na segunda parte do livro, evidenciam-se trabalhos que tomam como objeto de pesquisa as artes visuais e que têm como propósito examinar se nestas manifestações culturais foi possível verificar simbologias de cunho nacionalista e espaços de memória coletiva. Carlos Lemos, no primeiro artigo, “O Estado e a memória da sociedade”, estuda a arquitetura do chão de taipa que foi utilizada ao longo de 200 anos. Somente no século XIX, é importante dizer, que se manifestou outra construção, originária em Minas Gerais, além do estilo Neoclássico francês. Estas arquiteturas residenciais conviveram no Vale do Paraíba e criaram um estilo eclético e próprio. Apesar de a região conservar essas ricas construções, que exibem a opulência e o luxo e que se fazem importantes fontes para o historiador, o Vale ainda é lembrado pela sua prosperidade econômica em torno do café. Sobre este tema, Ana Luiza Martins no texto “Representações da economia cafeeira: os barões aos ‘Reis do café’” tem o propósito d e mostrar a importância da produção do café no imaginário brasileiro entre 1890 e 1930, período próspero do mercado econômico brasileiro que sofreu significativo abalo quando da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque (1929). Para cumprir a proposta do artigo, a autora utilizou não apenas a iconografia, mas inventários, testamentos e fontes literárias.
Heloisa Barbuy em “Os inícios da galeria de retratos da Faculdade de Direito de São Paulo em meados do século XIX” analisa um objeto importante da vida social, qual seja: os retratos. A autora narra a trajetória dos usos dos retratos a óleo nos espaços privados e públicos da São Paulo do século XIX, bem como a representação dos retratados no cotidiano social. No contexto da Faculdade de Direito, os retratos da galeria garante a problematização acerca da exibição doo próprio engajamento do estabelecimento, quando é possível observar que os retratados, em pinturas a óleo ou em bustos esculpidos, tratavam-se dos professores que representavam a construção nacional.
Dos retratos a óleo à fotografia, Claúdia Beatriz Heynemann traça o perfil de um fotógrafo pouco conhecido da historiografia em “De Berlim às capitais do Império: a experiência fotográfica em Alberto Henschel”. A autora não tem a pretensão de simplesmente narrar a trajetória deste judeu e o desenvolvimento de suas atividades no Brasil, onde chegou em 1866 e viveu por 16 anos até sua morte no Rio de Janeiro, mas compreender a importância da fotografia para a vida da comunidade judaica. Elementos da cultura europeia estavam presentes em trabalhos do fotógrafo, a exemplo de a “Vendedora de Frutas”. A imagem que nos recorda uma pintura sobre tela foi feita em estúdio e retrata uma escrava sentada sob um guarda-sol rodeada de frutas com bela paisagem tropical ao fundo, elementos que nos remetem a uma cena cotidiana da rua. Para a autora, a fotografia representa uma característica marcante nos trabalhos de Henschel, evidências também assinaladas no quesito imagem no final século XIX, quando da transição da pintura para a composição fotográfica.
O artigo que encerra a obra organizada por Barel e Costa é “O caso do pintor Estevão Silva e a crise da Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro no final do século XIX” de autoria de Letícia Squeff. Para a autora, a recusa do prêmio da Academia pelo artista negro Estevão Roberto da Silva (1845-1891), ocorrido em dezembro de 1879, foi um episódio que pode mostrar o início da decadência da instituição do ponto de vista do mérito e do ensino de artes. O ocorrido também foi marcado pela Questão Artística de 1879, quando a pintura histórica do Segundo Reinado foi alvo de críticas. É importante mencionar também que a autora relaciona os acontecimentos com a crise social em torno dos processos da abolição da escravatura (1888).
Os artigos, em sua maioria parcelas de trabalhos mais amplos, analisam de modo preciso artefatos culturais constituídos por homens de letras ou intelectuais, levando em conta a definição de alguns especialistas, que possuíam ampla rede de sociabilidade e estavam inseridos em esferas de poder, principalmente em instituições monárquicas sobre a proteção imperial. Por isso, foram produções políticas, literárias ou artísticas que revelaram a elaboração de projetos de nação, sobretudo interessados na disseminação de ideias que sustentassem a manutenção da Monarquia, uma vez que era esse Regime que encabeçou e financiou os trabalhos. Na maioria dos artigos esboçam-se escritos que descrevem lugares como espaço de memória, que se fundem com memórias da vida social e intelectual, como é o caso de Taunay e sua crônica Floresta da Tijuca. Tratam-se da elaboração de um pensamento histórico que evidenciou símbolos, espaços e cotidianos comuns e compartilhados, elementos indispensáveis a pena dos historiadores contemporâneos, tão preocupados em entender a divulgação da cultura em âmbito internacional, além de, como bem destacou Lúcia Maria Paschoal Guimarães, compreender que o século XIX foi o século da história, mas essa história foi a história da formação do Estado-Nação.
Resenhista
Helen de Oliveira Silva – Licenciada em História pela Unesp. Mestranda no programa de pós-graduação da UNESP, Câmpus de Assis, com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. E-mail: hdeosilva@gmail.com
Referências desta Resenha
BAREL, Ana Beatriz Demarchi; COSTA, Wilma Peres. (Orgs). Cultura e poder entre o Império e a República: estudos sobre os imaginários brasileiros (1822-1930). São Paulo: Alameda, 2018. Resenha de: SILVA, Helen de Oliveira. Homens de letras, homens de poder e projetos de nação ao longo do oitocentos no Brasil. Fênix – Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, v. 16, n. 2, p.261-266, Jul./dez. 2019. Acessar publicação original [DR]
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