Cultura e barbárie: o mundo em tempos extremos | História Revista | 2021
“a seus olhos (isto é, aos olhos do historiador crítico) a obra do passado não é acabada” ‐ Walter Benjamin
“[…] De tudo ficou um pouco. E de tudo fica um pouco. […] o insuportável mau cheiro da memória. Mas de tudo, terrível, fica um pouco, e sob as ondas ritmadas e sob as nuvens e os ventos e sob as pontes e sob os túneis e sob as labaredas e sob o sarcasmo e sob a gosma e sob o vômito e sob o soluço, o cárcere, o esquecido e sob os espetáculos e sob a morte escarlate e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes e sob tu mesmo e sob teus pés já duros e sob os gonzos da família e da classe, fica sempre um pouco de tudo. Às vezes um botão. Às vezes um rato.”
‐ Resíduo, Carlos Drummond de Andrade
“Tudo o que era guardado a chave, permanecia novo por mais tempo… Mas meu propósito não era conservar o novo e sim renovar o velho. […] E se ilude, privando‐se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho.”
‐ Walter Benjamin
Procuramos, neste dossiê, reunir trabalhos de abordagens teórico‐metodológicas históricas, historiográficas e/ou epistemológicas que tomam por objetos os tempos, os espaços, as memórias e as experiências culturais em sua posição testemunhal da barbárie, sobretudo, por seu movimento temporal, “como relação espiritual viva do presente ao passado, do passado ao presente” (GAGNEBIN, 2008, p. 80). Diante de um escopo mais amplo, os textos se apresentam com perspectivas interdisciplinares que dialogam com estas abordagens, especialmente, pensando a “contemporaneidade de tempos extremados”. São nestes termos que foram selecionados os 15 artigos que compõem o presente dossiê.
Quanto ao uso do binômio cultura & barbárie, automaticamente, remetemo‐nos aos textos do filósofo frankfurtiano Walter Benjamin, sobretudo As teses sobre o conceito de História. Benjamin, a partir do qual expõe a concepção dialética da cultura e atenta‐nos a não considerar as obras do passado como substâncias imutáveis, mas como reservas de sentidos, muitas vezes, encobertas e esquecidas, porém, carregadas de possibilidades de resistência e transformação; cabe ao presente reencontrá‐las a contrapelo. Assim, como aponta Gagnebin (2008), a cultura não é uma relação de posse e de acumulação (restrição à condição de bens culturais), mas uma relação viva ancorada numa certa ética da transmissão. Cabe, então, ao historiador problematizar a imagem engessada da tradição e da cultura e procurar nas interferências, fissuras e brechas do tempo, do passado e do presente, os signos de outra história cotejada sob o espectro do possível, mais que uma senda de hipótese, trata‐se de atos que materializam a “retomada” daqueles que foram obliterados em meio aos escombros dos jogos temporais (passado e presente).
Walter Benjamin via na pauperização moderna dos processos de preservação da memória, bem como na manipulação estética da política, o avançar do inimigo que não cessava de vencer: “não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie” (BENJAMIN, 2005, p. 70). Disso decorre o ceticismo em relação à história e àqueles que a escreveram. O que nos leva, imediatamente, ao apelo por uma ética da memória que seja capaz, mesmo que, gestualmente, ler a história à contrapelo. Nesses termos, a cultura é viva e plural e, por conseguinte, sua opositora complementar é a barbárie, especialmente, por sua dimensão negativa e destrutiva que tende a suprimir sujeitos e processos históricos no campo político da cultura.
A reafirmação da violência, no mundo contemporâneo, aponta para a presença da barbárie como senhora indelével do cotidiano da relação entre cultura e sociedade e, por conseguinte, leva‐nos à reflexão sobre derrota, violência, crueldade e destrutividade humana perante a constatação da diferença e do estranhamento, como se tivéssemos que viver sob o imperativo da igualdade, onde o estranho tende a ser dizimado pela força bruta e a dissolução do debate de ideias. Mas, sob a égide da resistência que ainda lampeja pelas brechas e nos entremeios do tempo, a dialética entre cultura e barbárie suscita o desejo de reencantamento do mundo. Entendemos que na contemporaneidade estamos vivenciando processos que têm assolado, elidido sujeitos e produzido negacionismos das tradições, especialmente almejando o desmanche do patrimônio cultural. Atualmente, em várias partes do globo, governos ultraconservadores, de extrema direita e reacionários, encobertos pela emergência da pandemia provocada pelo Covid‐19, realizam o desmonte dos bens públicos que garantem uma transmissão ética e crítica da cultura nos moldes definidos por Benjamin.
A ideia de barbárie, desenvolvida a partir da noção de estrangeiro, aponta para a repetição de desastres iguais ou semelhantes ao que o mundo viveu no século passado, como a experiência da segregação, xenofobia e a criação dos campos de extermínio, antes direcionados aos judeus, hoje destino pulverizado dos refugiados ou daqueles que afirmam a dimensão política e cultural da diferença.
Para István Mészáros (2011), a crise estrutural do capitalismo desmonta as expectativas que Marx identificou no capitalismo do século XIX e, ainda, que tal exaurimento deva‐se ao estágio atual da produção capitalista, é necessariamente a destrutividade realizada por este sistema a responsável por tal esgotamento, que incide sobre a totalidade da vida social e manifesta‐se visivelmente na barbarização que se generaliza nas formações econômico‐sociais tardo‐capitalistas. O escritor franco‐argelino, Albert Camus, assim como outros artistas analisam em suas criações, uma superação a este Estado de coisas por meio da revolta, pela insubordinação e luta por emancipação. Em O estrangeiro, romance de 1942, o escritor apresenta a revolta como possibilidade de superação do absurdo.
Apesar de todo o desenvolvimento cultural, a humanidade não conseguiu ainda dominar seus impulsos de agressão e autodestruição. O controle sobre a natureza que a raça humana adquiriu deixa mulheres e homens certos que podem levar ao aniquilamento de sua raça. “Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua ansiedade (FREUD, 2012, p. 49). Para Kosik (1996), o século XX que teria começado com tiros em Sarajevo (1914) terminou com tiros na mesma capital da Bósnia (1992‐1996), século que ele chama de século de Kafka, o que o teria descrito com uma época de alucinações fantasmagóricas.
Nós, porém, constatamos hoje, com espanto, a exatidão e a sobriedade das suas descrições. Kafka chegou à conclusão — e essa, a meu ver, é a sua descoberta mais significativa — de que a nossa época moderna é hostil ao trágico, trata de exclui‐lo, e em seu lugar institui o grotesco (KOSIKI, 2006, p. 23).
A análise que faz Kosikisobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo, mostra que a tragédia hoje virou desastre. As vítimas de uma tragédia são contadas pelo número de centenas, milhares, milhões de homens, mulheres e crianças mortas. No sentido original, a tragédia é provocada pela morte de um ser humano para configurar a zona do exemplar. O desmanche da cultura pode levar ao recrudescimento da barbárie, por isto é fundamental que a resistência a ela venha de toda a sociedade e cabendo aos intelectuais “lutar contra as formas de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber, da “verdade”, da “consciência”, do discurso” (FOUCAULT, 2004, p. 71).
Nestes termos, em Cultura e barbárie: dinâmicas do processo histórico, artigo que abre o dossiê, a partir do binômio cultura/barbárie, Rosangela Patriota discute a maneira pela qual o diálogo passado/presente se apresenta, a partir de temas e questões metodológicas atinentes à História Cultural e aos Estudos Culturais, trazendo para o centro do debate a obra de Simone Weil em diálogo com o poema épico Ilíada, de Homero. Em O passado no presente, Roger Chartier se dedica discutir as dimensões do tempo histórico, mais uma vez, nos oferecendo reflexões atinentes à relação dostempos da história com a dimensão da memória. O artigo Surfando à beira da falésia ou como o historiador navega e escreve em tempos de rede mundial de computadores, de Durval Muniz de Albuquerque Junior, nos convida a refletir sobre o ofício do historiador na contemporaneidade e propõe que abramos mão de qualquer ilusão em torno da existência de um solo firme para a produção do conhecimento histórico.
Em A Montanha Mágica Escalada por Walter Benjamin, Eduardo Gusmão Quadros nos convoca a pensarmos acerca dos imbricamentos da relação entre História e Literatura, tomando com base o romance A Montanha Mágica, escrito por Thomas Mann, lido em diálogo com asideias de Walter Benjamin acerca do tempo histórico. Rodrigo de Freitas Costa, em O teatro de Albert Camus como fonte de interpretação para o século XX: inspirações artísticas para uma época violenta, aponta para as peças teatrais escritas por Camus, ao longo de sua trajetória como escritor, a fim de compreender como a forma dramática foi importante para o autor se colocar publicamente frente aos temas que marcaram sua época. Além de recuperar os textos teatrais para a análise histórica, o autor busca compreender como Camus interpretou os autoritarismos de seu tempo que, ainda, em nós reverbera. Mariana Affonso Penna, em Utopias e Ucronias: usos políticos do tempo, trata das relações “cronotópicas” visando os entremeios entre cultura, história e sociedade, com ênfase especial a relação de indivíduos com o tempo por meio de duas dimensões: Utopias e Ucronias. Em “Revendo filmes antigos” com Siegfried Kracauer na formação do cinema moderno, Rafael Zanatto nos convoca a conhecer a hipótese que Siegfried Kracauer identifica em seus primeiros escritos sobre a história do cinema aspectos que estarão presentes na linguagem do cinema moderno.
O artigo Realidade e imaginário nas imagens de Chernobyl, de Dunya Azevedo, propõe uma reflexão sobre a fotografia contemporânea voltada para os vestígios do acontecimento histórico, e procura compreender como a memória do trauma se inscreve nas imagens do projeto La Zone, do fotógrafo francês Guillaume Herbaut, feitas na zona radioativa de Chernobyl, 24 anos após o acidente nuclear de 1986, na Ucrânia. Petar Bojanic, em Última guerra ou a guerra para fazer o mundo seguro para a democracia, busca reconstruir os protocolos e referenciais de leituras de Hannah Arendt, especialmente de diferentes textos de filosofia política, dentro do contexto de seu pensamento sobre a relação entre violência e poder, força e lei. Em Rememorando traumas e memórias esquecidas da derrota política, Marcos Antonio de Menezes, discute as reverberações dos episódios sangrentos de 1848, na França, sobretudo no tocante ao aspecto revolução e seus desdobramentos, que se tornaram o tema central de O Cisne de Baudelaire – objeto de análise do autor.
Eliézer Cardoso Oliveira, no artigo Monumentos Catástrofes: Entre a Barbárie e a Cultura, trata da monumentalização de catástrofes, problematizando monumentos patrimoniais erguidos como “homenagem” às vítimas de uma tragédia. Inspirando‐se em Walter Benjamim, Oliveira considera esses monumentos como documentos da cultura. Em Nos limites da civilização: a invenção do conceito de vandalismo e sua disseminação em manifestos em defesa do patrimônio cultural na imprensa periódica (França, Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX), Diego Finder Machado problematiza o percurso histórico pontuado por momentos em que a palavra vandalismo serviu para delimitar um mundo que imaginou a si mesmo como civilização. Alma Rosa Sánchez Olvera, em Covid‐19 y la epidemia permanente en México: la violencia contra las mujeres, mostra como a sociedade têm lidado com a violência contra as mulheres, no contexto da pandemia de Covid‐19. O canto e a vida das quebradeiras de coco do Maranhão, artigo de Raimundo Lima dos Santos Lima dos Santos(por favor, confirmar este nome), se debruça sobre o universo sociocultural das “quebradeiras” de coco babaçu do Maranhão, através de uma coletânea de cantos (Canto e encanto nos babaçuais…), para tentar entender de outro prisma alguns elementos que compõem suas visões de mundo. Por fim, o artigo Religião, Educação Tradicional Bóe‐Bororo e Educação Escolar Indígena – Análise a partir do Método Transpermanência, de Paulo Augusto Mario Isaac e Benedito Pereira Junior Bakorokarw, encerra o dossiê. O artigo visa debater, por meio da etnohistória, as transpermanências que vem se processando na religião e religiosidade Bóe‐Bororo.
Assim, o dossiê Cultura e barbárie: o mundo em tempos extremos propõe discutir as experiências e as possibilidades do pensar e do agir na cultura pela dimensão histórica cravada nos vestígios do passado no presente, em uma relação performática, que o faz buscar a saída do encobrimento dos escombros que o permite sobreviver como lampejo entre tempos, como bem apontou Gagnebin (2008), num jogo entre o viver “a recepção e a transmissão” enquanto práxis e também devir.
Tenham uma boa leitura!
Referências
ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Anti‐semitismo: instrumento de poder. Rio de Janeiro: Documentário, 1975.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo, 2005.
CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 2017. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
FREUD, Sigmund. O Futuro de uma Ilusão: o mal‐estar na civilização. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Documentos da cultura: documentos da barbárie. Ide, São Paulo, v. 31, n. 146, p. 80‐82, 2008.
KOSIK, Karel. O século de Grete Samsa: sobre a possibilidade ou a impossibilidade do trágico no nosso tempo. Rio de Janeiro: UERJ, 1995.
MÉSZÁROS, István. Estrutura social e formas de consciência: a dialética da estrutura e da história. São Paulo: Boitempo, 2011.
Organizadores
Marcos Antonio de Menezes – Programa de Pós‐graduação em História – Universidade Federal de Goiás (UFG) e Universidade Federal de Jataí (UFJ); Rede de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo. E-mail: pitymenezes.ufg@gmail.com
Petar Bojanić – Universidade de Belgrado; Rede de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo. E-mail: bojanicp@gmail.com
Robson Pereira da Silva – Rede de Pesquisa em História e Cultura no Mundo Contemporâneo). E-mail: robson_madonna@hotmail.com
Referências desta apresentação
MENEZES, Marcos Antonio de; BOJANIĆ, Petar; SILVA, Robson Pereira da. Apresentação. História Revista. Goiânia, v. 26, n. 2, p. 1‐7, mai./ago. 2021. Acessar publicação original [DR]