Cultura digital e educação | Educar em Revista | 2020
A presente temática deste dossiê é resultado das nossas discussões, debates e pesquisas sobre os desafios atuais, tanto nas políticas públicas como nas práticas institucionais, que apontam a emergência do uso das tecnologias digitais na educação presencial e a distância, em todos os seus níveis. Emergência esta, aumentada e multiplicada a partir de 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde declarou o surto de uma pandemia provocada por um vírus. Os efeitos mundiais da pandemia foram muitos e continuam aumentando. Entre estes efeitos destaca-se o fechamento de escolas e universidades em pelo menos 115 países, que afetam bilhões de pessoas envolvidas nas comunidades educacionais: professores, estudantes, gestores, pais, etc.
As instituições de ensino foram orientadas a aproveitarem em ampla escala as ferramentas de tecnologias educacionais e muitas destas encaminharam-se para a ação se colocando numa Educação Online. No entanto, as instituições não pararam para refletir sobre o que já existe de pesquisa sobre tecnologias na educação, sobre como seria um web-currículo, quais competências e habilidades professores e alunos devem ter em uma modalidade que pressupõe o uso das tecnologias na Educação Online Não houve tempo para reflexão, pela urgência imposta, e muito do improviso levou as escolas a utilizarem as metodologias da Educação a Distância (EaD) de forma apressada. Segundo Costa (2010, p. 18) isto reforça o preconceito em relação a EaD, na qual “o maior problema consiste no fato de que, historicamente, a EaD ser tratada como modalidade de ensino utilizada como panaceia para todos os males da educação brasileira”.
Esta urgência imposta lançou a “escola” para uma busca real com o objetivo de entender a cultura digital que é
Um termo novo, atual, emergente e temporal. A expressão integra perspectivas diversas vinculadas às inovações e aos avanços nos conhecimentos, e à incorporação deles, proporcionados pelo uso das tecnologias digitais e as conexões em rede para a realização de novos tipos de interação, comunicação, compartilhamento e ação na sociedade (KENSKI, 2018, p. 139).
Mesmo tendo possibilidades tecnológicas digitais e o desenvolvimento de metodologias de aprendizagem mais adequadas a educação online, percebemos que os elementos da cultura digital como os novos tipos de interação, comunicação, compartilhamento e ação na sociedade no primeiro semestre de 2020 foram considerados de forma parcial. E isto levou ao aumento de antigos problemas verificados anteriormente na educação presencial. Muitas escolas, no presencial, vinham insistindo nas práticas obsoletas, se mantendo à distância e alheias ao “fluxo de vida que transborda à sua volta, corriam o risco de se tornarem irrelevantes” (PERÉZ GÓMEZ, 2015, p. 29) e continuaram mantendo esta caraterística nos ambientes virtuais.
Verificamos também um aumento na oferta de artefatos tecnológicos, kits milagrosos para salvar a escola, e as instituições adquiriram estes artefatos, mostrando o seu não entendimento do que é tecnologia na educação. Brito (2006) afirma que há uma grande necessidade de se desvincular o entendimento do termo tecnologia de objeto, de um simples instrumento tão difundido pela sociedade capitalista que cultua a mercadoria como principal meio de ascensão. E estas tecnologias estão sendo utilizadas para manter os antigos modelos de educação que insistem em apenas fornecer informações.
Para Peréz Gómez (2015) a escola deve redefinir o fluxo de informações e
Nós docentes, devemos nos dar conta de que não é aconselhável apenas fornecer informação aos alunos, temos que ensiná-los como utilizar de forma eficaz essa informação que rodeia e enche suas vidas, como acessá-la e avaliá-la criticamente, analisá-la, organizá-la, recriá-la e compartilhá-la (PERÉZ GOMÉZ, 2015, p. 29).
Os alunos que estão hoje nas escolas e nas universidades, devido a pandemia de 2020, estão vivenciando esta nova realidade ainda não pensada e não projetada. Sendo assim, é mister que o professor esteja com os olhos no presente, porém com um olhar para o futuro, impulsionando os alunos para esta realidade que se apresenta ou se apresentará nas instituições de ensino. A partir desta constatação, é imprescindível que, junto aos conhecimentos específicos da educação que qualquer professor deva ter ao exercer sua profissão, seja desenvolvida a competência digital.
O termo competência digital refere-se a um conjunto de estratégias, atitudes, conhecimentos, habilidades e capacidades específicas para a utilização de tecnologias de informação e comunicação (TIC) – e mais especificamente as tecnologias digitais de informação e comunicação (TDIC) -, seja nas práticas cotidianas, seja nas atividades no contexto profissional (NEVES, 2018, p. 107).
Para Behar et al. (2013, p. 38) “as competências do sujeito psicológico para ensinar e aprender em qualquer modalidade da educação (presencial, mista e a distância) vão além do que das faculdades tradicionais de ensino e aprendizagem”. E concordamos com a autora quando esta afirma que temos que enfrentar os desafios que
as transformações sociais provocadas pela tecnologia em todas as esferas de relações (familiar, profissional e escolar) ensejam o desenvolvimento da sociedade conectada. Essa sociedade é configurada para utilizar as TIC de forma não apenas quantitativa, mas também qualitativa, em que a comunicação, proporcionada por elas, permite a interação, a colaboração, a cooperação e a autoria (BEHAR et al., 2013, p. 38).
Nestes tempos de cultura digital assumir uma aprendizagem cooperativa, com todos os elementos apresentados por Behar et al. (2013) nos abrem muitas possibilidades, mas maiores são os desafios para que ela seja oportunizada. Scherer e Brito (2014) afirmam que
Assumir-se habitante de ambientes virtuais é um dos maiores desafios para professores e alunos vivenciarem processos de aprendizagem cooperativa. Aliada a esse desafio está a necessidade de o professor conhecer e dispor-se a aprender ao longo de sua profissão as características especificas do ensino e da aprendizagem na educação a distância (SCHERER; BRITO, 2014, p. 75).
Portanto, neste dossiê apresentamos reflexões e práticas de educadores pesquisadores brasileiros, portugueses, espanhóis e chilenos que explicitam os seus desafios enfrentados nesta Cultura Digital. Estes realizam suas pesquisas nos diversos níveis e modalidades de ensino e trazem como objeto de pesquisa questões sobre o uso de tecnologias digitais, com a preocupação de mostrar o estado da arte e as perspectivas para o futuro da educação e da sociedade atual.
No artigo – Tecnologias digitais de informação e comunicação e Hierarquia Social dos Objetos no campo da Educação: testes empíricos – os autores trazem o relatório de uma investigação empírica sobre a produção científica em Educação e, para isto, utilizam dados bibliométricos e cientométricos analisados com base em conceitos criados por Pierre Bourdieu para a sociologia da ciência com o auxílio de um referencial histórico e filosófico. Testaram empiricamente a afirmação acerca da pesquisa em Educação de que houve a perda do objeto de pesquisa em Educação na pós-modernidade e a importância em termos de capital científico das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação.
Em seguida temos 6 artigos que imbricam Ensino Superior e tecnologias nos seus diversos aspectos. No primeiro deles – Las competencias digitales docentes en entornos universitarios basados en el Digcomp – encontramos uma proposta para adaptar os descritores sugeridos pela União Europeia através do DigComp para as áreas de habilidades de informação e comunicação para professores universitários. No entanto, nos alertam que os resultados apresentados podem ter sido influenciados pela crise da Covid-19 que obrigou a digitalização das atividades de ensino em sala de aula em um curto período de tempo.
No artigo – A virtualização do Ensino Superior: reflexões sobre políticas públicas e Educação Híbrida – somos convidados a entendermos de que maneira essa sociedade virtualizada pode assegurar, por meio das ações do Estado, a inserção das tecnologias digitais em seu cotidiano, podendo ser propagadas por métodos e prática pedagógicas inovadoras, como é o caso do uso do ensino híbrido. No artigo – Coreografias didáticas e inovações pedagógicas contemporâneas para uma educação emancipadora – as autoras buscam refletir sobre o uso de metodologias ativas na Educação Superior. Ao trazerem, ao debate, o modo de viver o currículo e a prática educativa na atualidade, (re) pensam e propõem ações pedagógicas, na perspectiva de uma didática implicada, intercomunicativa e multidimensional, que enfatize a mediação partilhada e leve em conta as dimensões integrativas, formativas e tecnológicas do processo de aprendizagem.
No artigo seguinte, – De lo presencial a lo virtual, un modelo para el uso de la formación en línea em tiempos de Covid-19 – nos é apresentado um modelo de como enfrentar a formação virtual em tempos de crise, de como passar do presencial para o virtual, integrando o potencial que as tecnologias digitais nos fornecem para gerar ambientes que promovam a aprendizagem de qualidade nos alunos. Em – Didática da História no Ensino Superior enriquecida com tecnologias audiovisuais e o seu impacto na promoção do autoconceito de competência – podemos entender a utilização do cinema em cenários para o desenvolvimento de competências no Ensino Superior como uma estratégia muito adequada para revitalizar a experiência educacional na disciplina de didática da história do Ensino Superior.
Em – Formação de professores na cultura digital por meio da gamificação – temos o resultado de uma investigação empírica, de cunho qualitativa e na perspectiva da intervenção pedagógica, que teve como objetivo analisar como a formação docente utilizando a estratégia da gamificação possibilita a compreensão do fazer docente.
No artigo – Integração de tecnologias digitais ao currículo: diálogos sobre desafios e dificuldades – as autoras trazem uma investigação dos processos de integração de tecnologias digitais ao currículo escolar, identificando desafios e dificuldades que emergem de práticas pedagógicas em processos de integração com professoras dos anos iniciais, professores do Ensino Médio, e um terceiro processo desenvolvido em uma disciplina de graduação, no Ensino Superior. Continuando com a discussão sobre Educação Básica, em – Narrativas dos professores nas redes: o percurso dos professores da Educação Básica – tem uma análise do percurso realizado por professores da rede pública da Educação Básica, na construção das narrativas digitais em blogs, páginas com domínio próprio e redes sociais, que nos trazem a percepção dos professores da sua capacidade de influência nas redes.
E continuando a questão de rede, as autoras no artigo – Ciberfeminismo e multiletramentos críticos na cibercultura – nos convidam a compreender como a atuação de mulheres ciberativistas no combate à violência discursiva praticada por homens em redes sociais pode ser mobilizadora de multiletramentos críticos da cibercultura e contribuir com processos formativos feministas na universidade. E em – Educação OnLIFE: a dimensão ecológica das arquiteturas digitais de aprendizagem – nos é apresentado um contexto no qual emerge uma nova cultura relacional, ecológica, ligada a indicadores e critérios de sustentabilidade, o que nos permite falar de uma Educação OnLIFE, numa realidade hiperconectada, na qual o “real” e “virtual” se (con)fundem, instigando instituições, professores e estudantes a repensar o sistema educativo, enquanto ecossistema.
As questões tratadas nos diversos artigos são extremamente atuais e devem provocar os leitores para uma tomada de posição frente aos desafios que se colocam para a área de educação em tempos de uma pandemia mundial.
Referências
BEHAR, Patricia Alejandra et al. Competências conceito, elementos e recursoso de suporte, mobilização e evolução. In: BEHAR, Patricia Alejandra (org.). Competências em Educação a Distância. Porto Alegre: Penso, 2013. p. 20-39. [ Links ]
BRITO, Glaucia da Silva. Inclusão digital do profissional professor: entendendo o conceito de tecnologia. ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAS, 30., Caxambu, 2006. Papers […]. Caxambu: ANPOCS, 2006. Disponível em: http://anpocs.org/index.php/encontros/papers/30-encontro-anual-da-anpocs/gt-26/gt24-14/3475-gbrito-inclusao/file. Acesso em: 29 maio 2020. [ Links ]
COSTA, Maria Luisa Furlan. Educação a distância no Brasil: Perspectiva Histórica. In: COSTA, Maria Luisa Furlan; ZANATTA, Regina Maria. (org.) Educação a distância no Brasil: aspectos históricos, legais, políticos e metodológicos. 2. ed. Maringá: Eduem, 2010. p. 11-20. [ Links ]
KENSKI Ivani M. Cultura Digital. In: MILL, Daniel. Dicionário critico de Educação e tecnologias e de educação a distância. Campinas, SP: Papirus, 2018. p. 139-144. [ Links ]
NEVES, Isa. Competência digital. In: MILL, Daniel. Dicionário critico de Educação e tecnologias e de educação a distância. Campinas, SP: Papirus, 2018. p. 107-109. [ Links ]
PERÉZ GÓMEZ, Ángel I. Educação na era digital: a escola educativa. Tradução de Marisa Guedes. Porto Alegre: Penso, 2015. [ Links ]
SCHERER, Suely; BRITO, Glaucia da Silva. Educação a distância: possibilidades e desafios para a aprendizagem cooperativa em ambientes virtuais de aprendizagem. Educar em Revista, Curitiba, n. 4, p. 53-77, 2014. (Edição Especial). Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-406020140008&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 29 maio 2020. [ Links ]
Organizadores
Glaucia da Silva Brito – Universidade Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Educação. Curitiba, Paraná, Brasil. E-mail: glaucia@ufpr.br – https://orcid.org/0000-0003-3874-4323
Maria Luisa Furlan Costa – Universidade Estadual de Maringá. Programa de Pós-Graduação em Educação. Maringá, Paraná, Brasil. E-mail: luisafurlancosta@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-4286-5892
Referências desta apresentação
BRITO, Glaucia da Silva; COSTA, Maria Luisa Furlan. Apresentação. Cultura digital e educação: desafios e possibilidades. Educar em Revista. Curitiba, v. 36, 2020. Acessar publicação original [DR]