Cultura das bordas: edição, comunicação, leitura – FERREIRA (VA)

FERREIRA, Jerusa Pires. Cultura das bordas: edição, comunicação, leitura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2010, 192p. Resenha de: GUIMARÃES, Valéria. Varia História. Belo Horizonte, v. 27, no. 45, Jan. /Jun. 2011.

Todo mundo conhece Zé do Caixão. Globalizado, o personagem de cine trash Coffin Joe passou a compor o imaginário do terror internacional. O que nem todos sabem é que vários dos roteiros de filmes, histórias em quadrinhos, programas de TV e fotonovelas de José Mojica Marins, seu criador, são assinados por Rubens Lucchetti, figura bem menos conhecida que seu parceiro.

Ilustração EM CARTAZ Lucchetti

Ouvi falar dele nos anos 90 lendo HQs das produções O Estranho Mundo de Zé do Caixão. Anos depois, seu nome aparece, para a minha surpresa, em pleno ambiente acadêmico, onde estes mauvais genres demoraram a ser considerados dignos de estudo. A responsável pela façanha foi a professora Jerusa Pires Ferreira, realizadora de uma longa pesquisa sobre Lucchetti. Devorei o texto que resultou de tão interessante encontro e soube, enfim, de quantas rocambolescas facetas esse Ponson du Terrail brazuca era capaz.

Hoje, o grande público pode se deliciar com estas e outras histórias no livro Cultura das Bordas – edição, comunicação, leitura, obra recém-lançada pela Ateliê Editorial na qual Jerusa nos brinda com sua leveza de estilo ao se movimentar pelos altos e baixos das práticas culturais.

Seu livro vem compor o panorama das pesquisas sobre a edição popular, que tem se expandido nos últimos anos. Está dividido em dez capítulos, que por sua vez são organizados em três partes: Um autor singular e os Almanaques; Leituras e Enigmas e Palavras e Ofícios: Editores e Edição Popular. Pioneira, a autora faz parte de uma rede de pesquisadores que se dedica a pensar a lógica das práticas letradas com olhar inovador.

O livro se abre com Lucchetti e seus mais de 300 livros, suas “vidas passadas” e seus inúmeros heterônimos. Nascido em 1930 e ainda em atividade, ele é decifrado frente à rede a que pertence, o da cultura popular, de massa, da margem… ou melhor, das bordas. Literatura policial, esotérica ou de terror, Lucchetti é popular na origem, chegando ao cult de inclinação britânica – as tais vidas passadas reencarnadas em Theodore Field, no francês Urbain Laplace ou nas autoras Margareth Rice, Mary Shelby ou Madame Vera Waleska, o que parece ser alusão à mais famosa ocultista dos tempos modernos, Madame Blavatsky. E muitos outros, que se autoreferem tendo, inclusive, um “tradutor”, outro heterônimo, o T.G. Novais.

E assim Jerusa nos apresenta outros reis do pulp. O Livro de São Cipriano – o Legítimo Capa Preta é um exemplo – e estaria muito bem num filme de Zé Mojica, aliás. De certo modo esteve, pois o almanaque cristãoibérico-afro-mágico, cujas inúmeras edições se espalham pelo mundo, incluindo o Brasil, também teve versões de Lucchetti.

Mergulhada na biblioteca deste mago das palavras, a autora percorre o mundo dos almanaques para situá-lo neste assemblage mítico e na tradição enciclopédica do saber popular: agricultura, fases da lua, esoterismo, bulas de remédio, piadas, literatura, receitas, curiosidades, magia, espiritismo etc. etc.

Na parte II, entra com tudo nos livros de alta e baixa magia, analisandoos muito além do bem e do mal. Por trás deles brotam referências aos autores reciclados e ao substrato comum que compõe a “cultura das bordas”, definida pela autora como aquela que é “contígua à grande indústria de massas”. O conceito recusa a visão engessada do folclorista, que a tudo classifica e higieniza encarando a cultura popular como estanque e a ser interpretada pela lógica da cultura erudita.

Ela detalha o trajeto antropológico da pesquisa e as dificuldades de se conseguir em livrarias as tais fontes interditas, assim como a ausência desta literatura maldita nos acervos. Todo este conjunto provindo de práticas culturais remotíssimas, percorrido em movimentos ousados, compõe um universo fáustico que não raro fora legitimado por uma suposta autoria cristã.

Usa das fontes orais do sertão, passeia na periferia da grande cidade e decifra enigmas das re-reciclagens de referências que para o leitor comum se perderam, mas que sua sólida erudição permite recuperar: “é preciso lembrar que nada daquilo foi simplesmente inventado. Não se trata de uma pura forjação de temas, ao contrário, tudo tem aí sua profunda razão de ser” (p.66).

Passa também pelos Livros dos Sonhos, cujas práticas divinatórias se entrelaçam num mecanismo complexo com o jogo do bicho, loteria, charadas e decifração. A importância das obras que tentam interpretar os sonhos na cultura popular é vista como espaço possível da realização utópica, recorrência a “depósitos míticos” (p.77) que nem mesmo Freud dispensara, usando-os em sua conhecida teoria.

A esta síntese de culturas relegadas (p.80) corresponde um resgate da importância desta literatura para o leitor, o que lhe permite uma “participação iniciática” nas forças ocultas. Um pacto que é lido pelo viés da semiótica e do conceito de fascinação, onde o signo é deflagrador da magia que a palavra impressa perdera.

As artimanhas da performance oral-impresso-oral transformam o narrador contemporâneo em transmissor do momento extático, responsável por inserir toda a tradição da cultura popular no contexto da cultura midiática. Para além da discussão sobre a dissolução das dicotomias entre cultura popular e cultura de elite, entre centro e periferia hoje bem esmiuçada por autores diversos e da qual a autora foi também pioneira, o que este trabalho traz de mais inovador é o levantamento das fontes e dos caminhos por elas tomados, o que requer um esforço hercúleo de erudição.

Tais práticas culturais são vistas como “gestada(s) e produzida(s) no âmbito desta cultura das bordas” (p.93), cujo elemento residual compõe o repertório comum.

Lembremos de Chartier, que revisa a idéia de que o “popular” esteja ligado à determinada “classe social” e de que seja uma fonte reveladora da visão de mundo de um grupo social específico, defendendo a existência de uma recepção dos artefatos culturais impressos por toda a sociedade.

Caminhando tranquilamente entre as estruturas imutáveis do imaginário tradicional e a historicidade das narrativas nos novos meios de comunicação em que re-aparece, evoca nosso grande Sérgio Porto (Stanislaw Ponte-Preta) e seu “samba do crioulo doido” para precisar com humor o resultado das tramóias da ficção para o grande público.

A terceira e última parte é dedicada a uma editora popular dos anos 20, a Editora João do Rio, de Savério Fittipaldi, ele próprio uma mistura de empresário com visionário. A imprensa teve grande importância na composição do imaginário deste imigrante italiano, a começar pelo nome de sua editora, João do Rio, um dos grandes jornalistas e escritores da época.

Assim, temas também presentes no jornal como faits divers de crimes sensacionais, grandes golpes e falsários internacionais, tragédias, a Guerra, fenômenos fantásticos e sobrenaturais, além do repertório folhetinesco e da literatura de sensação (erótica/pornográfica), compunham o catálogo deste editor naïf e autodidata, como eram muitos de sua geração. A autora mostra como as práticas do editor definiam uma pauta que, a julgar por seu sucesso de vendas, estava em sintonia com seu público.

O sobrinho de Savério, uma espécie de Savério Fittipaldi “segundo”, também editou de tudo. Seu sucesso foi tão amplo que para de publicar o Livro de São Cipriano por “desvirtuar a mente”. Nos anos 70 também interrompe a publicação de outros títulos, como Carlos Magno ou O Conde de Monte Cristo, mas por motivo diverso: a função de entretenimento migrava definitivamente do livro popular para a TV.

No fabuloso depoimento de Savério Fittipaldi Sobrinho, que a autora tem a sensibilidade de reproduzir na íntegra, são desvendadas as engrenagens das fases da edição popular, sua lógica de publicação e venda e suas “pesquisas de mercado”, feitas diretamente com o público: “A minha filosofia sempre foi fazer tiragens maiores para vender mais livros por um preço menor”, diz ele (p.143). E aí se multiplicam as coletâneas de cartas de amor, livros de piadas, eróticos, de simpatias, de sonhos etc. Um de seus autores? Rubens Lucchetti, claro, que escrevia livros esotéricos, de terror e policiais.

Com a Luzeiro, editora que é tema do último capítulo, os cordéis entram na era da comunicação de massas, revisitados pela prensa moderna e acompanhados pelos mesmos tipos de títulos que se repetem nas editoras populares em geral. Os interditos, sempre os mesmos, como o Livro de São Cipriano, resistem pelo poder de venda que possuem. Este mesmo livro ainda aparece no catálogo de outra editora citada, a Edições O Livreiro que, a despeito de não ter uma linha para esotéricos, publica-o em resposta à fabulosa demanda.

Finalizando o livro em grande estilo, um caderno de imagens é aberto por uma alegoria bicromática de Rubens Lucchetti, cujo manto negro à la Zé do Caixão parece querer revelar o que de há de oculto por trás do mundialmente ilustre Coffin Joe. Seguem reproduções de capas de livros e almanaques citados na obra, cuja estranha uniformidade nota-se principalmente nos títulos de grande corpo, no uso de intensas cores, na temática popular e nas fartas ilustrações que indicam serem publicações “Para Todos”.

Desde já o livro Cultura das Bordas compila material precioso antes disperso em artigos e suscita questões pertinentes aos estudos da história cultural do livro e da leitura, situando esta produção entre o massivo e o popular, em um lugar pouco definido e que parece sempre estar no limiar entre mundos diversos: nas bordas.

Valéria Guimarães – Doutora em História Social pela USP,Pesquisadora do COS-PUCSP (Fapesp) e do CHCSC-UVSQ. valeriaguimaraes@terra.com.br.

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