Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe | Gilberto Hochman e Diego Armus
O livro Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe, formado de 14 capítulos, é apresentado e introduzido por textos de seus organizadores. Segundo Gilberto Hochmann – pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz (Brasil) – e Diego Armus – professor do Swarthmore College (EUA), a idéia inicial que motivou a organização da coletânea ora apresentada era oferecer ao leitor brasileiro uma obra que instigasse à reflexão “sobre as relações entre saúde, doença e sociedade na América Latina em perspectiva histórica, espelhando o estado da arte neste campo emergente e constituindo uma referência, e mesmo um livro-texto para profissionais, professores e estudantes das áreas de história, saúde coletiva, medicina, ciências sociais e humanidades em geral” (p.09). Porém, a coletânea apresentada certamente extrapolará os objetivos territoriais de seus organizadores, na medida em que traz informações e reflexões importantes para todos aqueles que, de um modo ou de outro e independentemente da nacionalidade, estão envolvidos com o campo temático, especialmente se for levado em conta que o livro contém textos já publicados – alguns dos quais já consagrados como referências, tanto no Brasil quando no exterior –, adaptados ou atualizados, e textos inéditos, encomendados especialmente para esta publicação.
Autores da América Latina e da América do Norte, de diferentes tradições disciplinares e pertencentes a instituições acadêmicas diversas, apresentam assim suas reflexões sobre o campo de estudos da saúde e da doença na América Latina e no Caribe. Tais reflexões, segundo os organizadores, apesar de suas diferenças – em torno de objetos, metodologias, estilos narrativos, ênfases… –, “partem de três entendimentos fundamentais que se entrecruzam: que a saúde e a enfermidade são algo mais que fenômenos biológicos, de que em torno dos cuidados, dos mecanismos de controle e das curas estão dimensões relevantes da história da saúde e da doença na América Latina e no Caribe; que o processo saúde-doença diz respeito não apenas à salubridade ou insalubridade de nossos países, mas é revelador, constituinte e formador de aspectos cruciais da modernidade e da história social, política, intelectual e cultural latino-americana.” (p.17).
O artigo que abre a coletânea, da professora da Universidade Nacional Autônoma do México Ana Maria Carrillo, intitula-se Profissões da saúde e lutas de poder no México, 1821-1917. Trata-se de uma reflexão sobre o processo de institucionalização e profissionalização da medicina naquele país, a partir da historicização de um longo período, que vai do pós-independência (1821) ao final do processo revolucionário (1917) que levou à promulgação da Constituição até hoje vigente no país. Segundo a autora, o modelo médico forjado durante este período “foi determinante do conjunto de relações que os profissionais médicos estabeleceram com o Estado, com a população e com os outros saberes médicos” (p.50).
O artigo seguinte – Febre amarela e a instituição da microbiologia no Brasil -, do historiador e pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz (Brasil), Jaime Larry Benchimol, discute as controvérsias em torno da etiologia microbiana da febre amarela e o processo de legitimação da teoria pasteuriana no Brasil do final do século XIX, considerando a complexidade das negociações necessárias à construção e institucionalização do conhecimento científico numa dada sociedade. A pretensão do autor consiste em “mostrar que a ciência dos micróbios converteu-se no pólo mais dinâmico da medicina brasileira em larga medida por obra de postulantes de teorias que acabaram sendo desqualificadas nos fóruns internacionais.” (p.59).
No terceiro artigo do livro, Luta antialcoólica e higiene social na Colômbia, 1886-1948, o professor Carlos Ernesto Nogueira, da Universidade Pedagógica Nacional (Colômbia), reflete sobre o processo histórico de construção – pelo corpo médico colombiano, apoiado por governantes do país – da associação entre alcoolismo e pobreza, falta de higiene, atraso e violência. Neste processo, as populações camponesas e indígenas – consumidoras de uma bebida ancestral chamada chicha – foram definidas como portadoras daquela enfermidade social que era preciso extirpar. Na luta higienista – em que as campanhas contra o consumo da chicha foram pontos fortes – mesclaram-se, segundo o autor, “argumentos científicos, morais, políticos e econômicos, revelando-se de passagem o papel da classe médica no cenário social da primeira metade do século XX na Colômbia”. (p. 120).
Benigno Trigo, professor da Universidade Estadual de Nova Iorque (EUA), analisa no artigo seguinte – Anemia, bruxas e vampiros: figuras para governar a colônia – os esforços dos intelectuais criollos, em Porto Rico, nas últimas décadas do século XIX, para construir uma identidade diferenciada, tanto em relação aos ocupantes estrangeiros quanto em relação a outros segmentos da população porto-riquenha, os negros. Os esforços centrados na identificação da anemia como uma doença endêmica e como problema nacional que demandava cuidados, assistência e cura – pois atingia corpos brancos –, visava, sobretudo, demonstrar que os corpos brancos dos letrados não constituíam ameaça aos colonizadores, pois a verdadeira ameaça estava nos corpos negros, que deviam ser vigiados e reprimidos.
Em Fragmentos de um mundo oculto: práticas de cura no sul do Brasil, quinto artigo do livro, a professora da Universidade Federal de Santa Maria (Brasil), Beatriz Teixeira Weber, mostra a existência de diversas práticas de cura convivendo com a medicina diplomada e suas instituições, no estado brasileiro do Rio Grande do Sul nas décadas finais do século XIX e primeiras do século XX. Segundo a autora, o objetivo de seu texto é inventariar e analisar “um universo que se manteve vivo e atuante enquanto as práticas científicas eram afirmadas como as únicas capazes de oferecer a cura”: práticas disseminadas em terreiros de batuques e rituais afro-brasileiros, seitas radicais de imigrantes europeus, benzedeiras, curandeiros, espíritas, parteiras, entre outros que, para Weber, revelam “diversas concepções de mundo, mais que apenas da saúde e da doença”. (p.159).
No sexto artigo da coletânea, Saúde imperial e educação popular: a Fundação Rockefeller na Costa Rica em uma perspectiva centro-americana, 1914- 1921, o professor da Universidade de Windsor (Canadá), Steven Palmer, apresenta o encontro – ocorrido no período mencionado no título – entre as campanhas de combate à ancilostomíase, promovidas pela Fundação Rockefeller, e as políticas nacionais de educação e saúde da Costa Rica. O autor demonstra no texto como intelectuais e instituições costarriquenhos apropriaram-se, utilizaram-se e redesenharam os esforços deflagrados pela campanha da fundação americana, em prol da consolidação de um projeto de saúde pública já existente na Costa Rica.
Poder, ideologia e saúde no Brasil da Primeira República: ensaio de sociologia histórica, do professor Luiz Antonio de Castro Santos, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), tem como tema o processo de reforma sanitária no Brasil, que, segundo o autor, foi geograficamente diversificado e impregnado de uma ideologia de construção nacional, durante o período conhecido como Primeira República (1889–1930). Comparando processos de reforma dos serviços sanitários em alguns estados brasileiros (São Paulo, Pernambuco, Bahia, Paraíba, Ceará), através de variáveis como a política de imigração de trabalhadores, preservação e reprodução de mão-de-obra nas agendas das elites, a dinâmica político-partidária e a tradição médico-sanitária, o autor explica os diferentes tempos, ritmos e resultados das experiências estaduais e constrói um quadro do sanitarismo brasileiro.
É de Marcos Cueto, professor da Universidade Peruana Cayetano Heredia, o oitavo artigo do livro, Tifo, varíola e indigenismo: Manuel Núñez Butrón e a medicina rural em Puno, Peru. Segundo o autor, essa região do altiplano peruano foi palco, na década de 1930, de “um experimento que combinou crenças médicas nativas e métodos ocidentais de saúde pública”, fruto de “abordagens holísticas no entendimento e no controle de doenças que refletiam a influência que as idéias sociais exerciam sobre a medicina, a permanência da cultura indígena e a criatividade de alguns indivíduos” (p.297), como o médico Manuel Núñez Butrón. O resultado, discutido no artigo, foi o envolvimento comunitário e de povos indígenas em campanhas de educação, de combate ao tifo epidêmico e de vacinação antivariólica.
Nancy Leys Stepan, professora da Universidade de Columbia (EUA), é a autora de Eugenia no Brasil, 1917-1940, artigo que discute a configuração da eugenia brasileira e seus projetos de aprimoramento racial, considerando a influência dos movimentos eugênicos internacionais, mas principalmente sua ancoragem numa realidade nacional marcada – segundo seus críticos – pelo subdesenvolvimento, pela miscigenação, pela pobreza, pela doença. Segundo a autora, o estudo da eugenia brasileira revelou – como em outros países latino-americanos –, entre outras coisas, que o receituário duro e pessimista da eugenia anglo-saxônica foi suplantado por formas mais positivas e brandas de aprimoramento racial e social a partir de políticas governamentais.
Diego Armus, um dos organizadores do livro, é o responsável pelo décimo artigo do mesmo: ‘Queremos a vacina Pueyo!!!’: incertezas biomédicas, enfermos que protestam e a imprensa – Argentina, 1920-1940. Neste texto, apontando as principais perspectivas contemporâneas sobre a relação história x enfermidades, o autor revisa “a suposta passividade dos enfermos na forma como foi assumida em algumas das narrativas sobre enfermidade, saúde e medicina” (p.398). Discutindo três tipos de protestos coletivos capitaneados por tuberculosos, desvela o protagonismo de sujeitos que, vivendo a experiência da doença, lutam por atenção, alívio e cura, através da provisão pública de uma vacina contra a tuberculose.
O décimo primeiro artigo do livro é de autoria do professor do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Brasil), Sérgio Carrara. Em Estratégia anticoloniais: sífilis, raça e identidade no Brasil entre-guerras, o autor analisa a “construção sócio-histórica do Brasil através da sífilis, do sexo, da raça e vice-versa”. Discutindo as mudanças nas concepções sobre a difusão da sífilis e sobre o comportamento sexualmente excessivo do povo brasileiro, no período entre-guerras, o autor pretende “contribuir para o estudo da ‘engenharia’simbólica por meio da qual cientistas identificados a grupos sociais estigmatizados ou nações periféricas reagiram às teorias científicas que os estigmatizavam ou inferiorizavam.” (p. 429), buscando construir identidades novas e valorizadas.
Ann Zulawski, professora do Smith College (EUA), é a autora de Doença mental e democracia na Bolívia: o Manicômio Pacheco, 1935-1950. Nesse artigo a autora examina os registros de um hospital psiquiátrico boliviano – o Manicômio Pacheco –, bem como escritos de médicos que nele trabalharam, com o intuito de conhecer “quem era considerado mentalmente doente”, quais eram os tratamentos psiquiátricos, qual o impacto das políticas democráticas e populistas vigentes no período nas práticas psiquiátricas e, por fim, qual a influência de atributos de classe social, raça/etnia e gênero no diagnóstico e tratamento dos internos. A autora evidencia que tais atributos, que definiam posições hierárquicas na sociedade boliviana, reproduziam-se no manicômio e nas práticas médicas.
De uma parceria entre Nísia Trindade Lima, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (Brasil) e Gilberto Hochman, outro dos organizadores da coletânea, resultou o texto “Pouca saúde e muita saúva”: sanitarismo, interpretações do país e ciências sociais. Neste texto, os autores discutem o papel relevante desempenhado por registros e textos médico-higienistas e pelo movimento político de saneamento do Brasil, na reconstrução da identidade nacional, nas primeiras décadas do século XX, a partir da identificação da doença como elemento distintivo da condição de ser brasileiro. Sublinham, outrossim, a forte presença desta “imagem” em textos fundamentais da chamada fase de institucionalização das ciências sociais, em especial os dedicados aos temas do trabalhador rural, do campesinato e das questões agrárias no Brasil.
Fechando o livro encontra-se o artigo de Paul Farmer, professor da Universidade de Harvard (EUA), Mandando doença: feitiçaria, política e mudança nos conceitos da Aids no Haiti rural. A partir de falas extraídas de entrevistas seriadas, realizadas com habitantes de uma aldeia haitiana e portadores de HIV/Aids, ao longo da década de 1980, o autor discute o papel estruturante da cultura na construção de narrativas e representações de doenças, evidenciando como elas surgem, como se alteram ao longo do tempo, que realidades organizam e constituem, como as novas representações se relacionam com as estruturas existentes e como são significantes para a experiência da doença.
O conjunto dos textos que compõem o livro Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe, ainda que não esgote a discussão, constrói um interessante e significativo mosaico de interpretações sobre saúde e doença – especialmente nos séculos XIX e XX e nesta ampla região das Américas – apontando não só para novas perspectivas de entendimento sobre tais processos e experiências relativas, em suas inter-relações com as sociedades, os saberes, movimentos, políticas institucionais e diferentes culturas, mas também para novas possibilidades de compreensão da experiência histórica mais ampla.
Resenhista
Yonissa Marmitt Wadi – Doutora em História Social. Professora do Centro de Ciências Humanas e Sociais e do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional e Agronegócios. Universidade Estadual do Oeste do Paraná. E-mail: yonissamw@uol.com.br yonissa@unioeste.br
Referências desta Resenha
HOCHMAN, Gilberto; ARMUS, Diego (Orgs.). Cuidar, controlar, curar: ensaios históricos sobre saúde e doença na América Latina e Caribe. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2004. Resenha de: WADI, Yonissa Marmitt. Diálogos. Maringá, v.9, n.2, 217-222, 2005. Acessar publicação original [DR]