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Crítica da razão negra | Achille Mbembe

Tomemos de empréstimo ao texto de Achille Mbembe uma passagem que nos servirá de ponto de partida para este comentário sobre sua obra Crítica da razão negra, recém-publicada no Brasil:

Há nomes que carregamos como um insulto permanente e outros que carregamos por hábito. O nome “negro” deriva de ambos. Por fim, mesmo que determinados nomes possam ser lisonjeiros, o nome “negro” foi, desde sempre, uma forma de coisificação e de degradação. Seu poder era extraído da capacidade de sufocar e estrangular, de amputar e de castrar. Aconteceu com esse nome o mesmo que com a morte. Uma íntima relação sempre vinculou o nome “negro” à morte, ao assassinato e ao sepultamento.1

É o itinerário dos usos e apropriações desse nome, bem como o de suas potencialidades para um projeto de construção de futuro, que constitui o fio que costura as diferentes partes da reflexão de Achille Mbembe em Crítica da razão negra. Se “negro” é originalmente um insulto e um nome vinculado à morte e à degradação da humanidade, em que medida, e sob que condições, ele também pode ser ressignificado para enunciar um projeto utópico e universalista de regeneração do mundo? Como seria possível que a morte se convertesse em início de nova vida? Esse é, em linhas gerais, o problema central de que se ocupa a obra.

Crítica da razão negra foi publicado originalmente no ano de 2013 na França e ganhou em 2018 uma edição brasileira pelas mãos da editora n-1 edições. É preciso ressaltar que o texto não é propriamente desconhecido do público brasileiro: existe, desde 2014, uma tradução do livro para o português pela editora portuguesa Antígona, a qual já circulava em cursos de graduação e pós-graduação no Brasil. A edição brasileira, cuja publicação foi apoiada pelo Institut Français do Brasil, apresenta uma nova tradução do texto original para o português e facilita o acesso do público brasileiro à obra de Achille Mbembe. Realizada pelo especialista em sociologia do continente africano Sebastião Nascimento, essa nova tradução apresenta um oportuno arsenal de notas comentando alguns conceitos filosóficos específicos com os quais Mbembe dialoga, além de trazer algumas opções de tradução divergentes da edição portuguesa. Um exemplo significativo é o termo revenant (noção central do quinto capítulo da obra), que a edição portuguesa traduz por “fantasma” e que Nascimento, por sua vez, verte para o termo “espectro”. A solução, embora evoque talvez um sentido negativo estranho à maneira como Mbembe define o conceito, tem o mérito de evitar a ambiguidade com a noção lacaniana de “fantasma” que também é empregada pelo autor em sentido diverso.

Achille Mbembe é um intelectual camaronês em atividade que tem ganhado destaque crescente no pensamento social contemporâneo. Alguns de seus conceitos mais difundidos, como os de “estética da vulgaridade”, “necropoder” ou “afropolitanismo”, têm sido incorporados à pauta do pensamento político e social no século XXI, não apenas para pensar os contextos africanos, mas também no âmbito da reflexão sobre a contemporaneidade global. Nascido em 1957, obteve sua formação inicial em estabelecimento de ensino missionário dominicano em Otélé (na porção de colonização francesa dos Camarões). Na Universidade de Yaoundé, obteve mestrado em História com dissertação a respeito da resistência anticolonial no sul dos Camarões. Em 1989, finalizou seu doutorado em História na Universidade de Sorbonne, na França, sob orientação de Catherine Coquery-Vidrovich, aprofundando as temáticas de sua dissertação. Desde então, sua produção tem se voltado para o tema das culturas políticas no continente africano e para problemáticas ligadas ao pensamento negro. Mbembe foi secretário executiva da CODESRIA2 entre 1996 e 2000, e atualmente leciona na Universidade de Witwatersrand, na África do Sul.3

Crítica da razão negra, seu sexto livro autoral, consiste em uma reflexão eminentemente filosófica sobre os discursos estruturados em torna da raça – seja os discursos raciais urdidos por europeus e norte-americanos no contexto da dominação colonial do continente africano e da segregação racial nas Américas, seja os discursos de afirmação racial elaborados por intelectuais e ativistas negros envolvidos nas lutas antirracistas e anticoloniais. Esse conjunto de elaborações intelectuais que têm a raça como ponto de articulação constituem aquilo que o autor denominou “razão negra”. Ao analisar essas correntes de pensamento, Mbembe retoma ideias presentes na produção filosófica africana das últimas décadas do século XX, que tem apontado continuidades e cumplicidades entre algumas ideias do pensamento negro antirracista e dos discursos raciais e coloniais europeus, sobretudo no que toca à premissa compartilhada da diferença racial entre brancos e negros.4 Para além dessa crítica ao pensamento negro do século XX, interessa a Mbembe pensar uma possível ressignificação da raça como uma identidade que não esteja mais baseada na diferença, mas que aponte para na direção de um novo humanismo universalista.

Para isso, Mbembe enfatiza o caráter ambivalente do significante “raça”, em sua associação com a ideia de morte. Segundo o autor, a raça indicaria a alienação extrema e a violência exercidas pelo capitalismo moderno e colonial, tendo como resultado a produção sistemática da morte do corpo negro. Contudo, ao produzir a morte, a raça também aponta paradoxalmente para um prospecto redentor, abrindo a possibilidade de uma ressurreição, recriação da vida ou refundação de uma nova humanidade no século XXI.

Crítica da razão negra emprega uma linguagem essencialmente filosófica e figurativa, em que os termos e imagens que se sucedem na obra ganham uma espessura semântica própria a partir do acúmulo de significados. Por vezes alusiva, por vezes poética, a escrita de Mbembe incorpora a ambivalência dos próprios discursos e signos da modernidade colonial, construindo-se pela sobreposição de camadas de significação que convergem para um horizonte de reflexão – o qual, no entanto, permanece sempre em aberto. Mbembe chama essa estratégia textual de uma “escrita figural”, encadeada à semelhança de “uma complexa trama de anéis entrelaçados, oscilando incessantemente entre a vertigem, a dissolução e a dispersão, e cujas arestas e linhas se encontram no ponto de fuga”.5 É marcante também seu diálogo com a psicanálise, tanto para a análise das ambivalências da memória colonial como para seu projeto de “cura” psíquica de um sujeito racial cindido e alienado de sua própria autoimagem.

A introdução da obra, intitulada “O devir-negro do mundo”, retoma reflexões que haviam sido lançadas no ensaio Necropolítica, publicado originalmente em 2003.6 Mbembe propõe a instigante ideia de que a perda da centralidade da Europa na ordem mundial no final do século XXI, nos âmbitos político e cultural, não conduziu a um esvaziamento dos discursos raciais, mas antes à sua capilarização e universalização. As antigas fronteiras raciais que dividiam o mundo em espaços geográficos definidos dão lugar a uma nova lógica de territorializações fragmentadas, em que grupos humanos subalternos (imigrantes, refugiados, trabalhadores informais) são submetidos a regimes de segregação e desumanização antes reservados aos povos negros.

O primeiro capítulo, “O sujeito racial”, dedica-se a uma análise das diversas camadas que se sobrepõem na trama daquilo que Mbembe chama de “razão negra”. O autor distingue duas modalidades principais desses discursos. A primeira delas corresponde ao ato ocidental de atribuição de uma identidade racial ao Negro (tomado aqui como essencialização conceitual, e não como categoria empírica que descreva a multiplicidade dos povos negros concretos), o que Mbembe chama de “consciência ocidental do Negro”. Esse discurso representa o negro como vazio ontológico e como ausência de sentido. A segunda forma da razão negra é o que Mbembe denomina a “consciência negra do Negro”, uma “declaração de identidade” por parte de intelectuais africanos e afrodiaspóricos que visa negar o primeiro discurso e, assim, restituir ao sujeito negro uma identidade regenerada. Interessa a Mbembe ressaltar os vínculos e as continuidades entre esses discursos.

O segundo capítulo, “O poço dos fantasmas”, analisa a articulação entre os discursos ocidentais do Negro e as lógicas do poder colonial europeu e da modernidade capitalista ocidental. Mbembe critica a representação da modernidade europeia como era das liberdades, sugerindo que o colonialismo dividiu o mundo em territórios regidos pela aplicabilidade das noções ilustradas de lei e cidadania, por um lado, e zonas sem lei (das quais a “África” era mais significativa) regidas pelo uso discricionário da violência, por outro lado.7 Para o autor, o corpo negro seria o cadáver produzido por essa “violência noturna do capitalismo”. A fim de ocultá-la, a cultura metropolitana (sobretudo francesa) representava o negro por meio de uma lógica da frivolidade e do exotismo, criando imagens pueris disseminadas no primitivismo das vanguardas europeias do pós-primeira guerra. Tomando de empréstimo a noção grega da estátua mortuária que oferecia uma imagem idealizada do morto, Mbembe chama de kolossós essas representações exóticas e inocentes do corpo negro que travestem e ocultam a violência que o produziu. O negro seria assim o “cadáver” da modernidade – no duplo sentido do corpo que foi assassinado pelo capitalismo moderno e do sinal que marca a “morte” das ficções de igualitarismo e de civilização da modernidade ocidental.

O terceiro capítulo, intitulado Diferença e autodeterminação, aborda a “consciência negra do Negro” e retoma essencialmente ideias apresentadas no ensaio “As formas africanas de autoinscrição”,8 originalmente publicado em 2000. Para Mbembe, esses discursos, seja na vertente do nacionalismo negro, da negritude ou do pan-africanismo, atrelam as identidades e cidadanias africanas a essências raciais, culturais ou territoriais. O autor propõe, em substituição, uma noção renovada de identidade negra como uma “identidade em devir”, que defina suas particularidades por meio de processos de apropriação criativa de tradições locais e globais e que aponte em direção a um futuro, e não mais à tradição ou ao passado.

O quarto capítulo analisa a memória da colonização na escrita negra, procurando desvelar seu “pequeno segredo”. Para Mbembe, essa memória se articulou em torno de um discurso da dívida e da culpabilização exclusiva dos europeus pelos traumas e violências da colonização, ocultando o inconfessável segredo da uma cumplicidade de certos grupos africanos aos projetos coloniais e de um desejo pelas “mercadorias-fetiche” oferecidas pelo colonialismo. A reflexão do autor interpreta a colonização a partir da noção freudiana de trauma, ou seja, de um evento cuja dolorosa memória teria sido reprimida e deslocada. Para Mbembe, a cura psíquica do colonizado requereria que o trauma fosse rememorado e trazido à tona, num ato de assumir a parcela africana da responsabilidade pela história da colonização e pela perpetuação da ordem colonial após as independências.

O quinto capítulo, “Réquiem para o escravo”, emprega uma linguagem essencialmente figurativa para tratar dos atributos ambivalentes do corpo negro enquanto “cadáver da modernidade”. Desprendendo-se da análise histórica e imergindo na linguagem de três obras literárias africanas (de Amos Tutuola e Sony Labou Tansi), Mbembe evoca a ideia do Negro como um “espectro”, caracterizado como aquele cujo corpo foi morto pela violência noturna da modernidade colonial e que retorna da morte em espírito para refazer e reconstruir os sentidos da vida. Essa reconstrução post mortem apresenta-se como possibilidade de repensar sentidos para um mundo pós-colonial e constitui o que Mbembe chama de um “trabalho pela vida”, que “consiste […] em capturar a morte e trocá-la por outra coisa”.9 Assim, a substituição do kolossós (o corpo negro frivolizado e exótico) pela manifestação do espectro (a alma do negro morto pelo colonialismo) permitiria desnudar a violência oculta da modernidade e propor um novo projeto utópico de futuro.

Nesse ponto, em que Mbembe positiva o sentido da morte, sua reflexão retoma temas que haviam sido sugeridos anteriormente em suas obras. Em De la postcolonie (2000), por exemplo, o autor encerrava sua reflexão com a noção essencialmente teológica de um “êxtase no sofrimento” da morte, que permitiria uma ressurreição posterior e uma regeneração.10 Em Necropolítica (2003) por sua vez, Mbembe propunha a noção de um “martírio” que, ainda que reforçasse os mecanismos do necropoder, também ofereceria uma esperança de supressão da dominação no futuro.11 Em Crítica da razão negra, esse poder regenerador da morte aparece talvez com maior clareza e maior concretude do que nas obras anteriores, deixando o âmbito da reflexão puramente filosófica para se articular com sua crítica sociológica acerca dos discursos da modernidade. Se a representação ilustrada da modernidade ocidental oculta o fato de que esta se caracteriza por uma “violência noturna” que produz a morte, então o morto que retorna à vida torna-se instância e instrumento crítico de denúncia dessa modernidade. Ainda assim, não se pode deixar de assinalar que subsiste, na Crítica da razão negra, a dificuldade em definir essa possibilidade de ruptura com a modernidade fora de uma linguagem essencialmente simbólica, alusiva e metafísica.

O último capítulo, intitulado “Clínica do sujeito”, defende uma ressignificação do nome “negro” não mais como signo da diferença, mas como instância criadora de um humanismo abrangente. Por meio da discussão das ideias de Marcus Garvey, Aimé Césaire e Frantz Fanon, Mbembe analisa o anseio dos discursos negros por um universalismo mais inclusivo do que o “humanismo racista” (para retomar os termos de Jean-Paul Sartre)12 que a modernidade ocidental criou e pôs em prática por meio das políticas da diferença racial. Nesse sentido, o discurso negro deixa de ser, na proposta de Mbembe, um discurso do particularismo e da diferença e passa a ser um discurso universalista de crítica à modernidade e uma consciência utópica para o futuro, radicalizando os discursos libertários da modernidade europeia.

Crítica da razão negra apresenta, no conjunto, uma densa reflexão sobre as transformações, reconfigurações, continuidades e rupturas (concretas e possíveis) dos discursos estruturados em torno da noção de raça. Por meio de suas análises, Mbembe insere-se de maneira contundente e original na vigorosa tradição intelectual do pensamento negro que ele mesmo toma como objeto de reflexão. Sua proposta de uma identidade negra humanista, e não particularista, retoma e aprofunda correntes do pensamento anticolonial e antirracista do século XX e posiciona-se criticamente em relação a formulações ancoradas na tradição e no passado, tais como a negritude ou o afrocentrismo.

O leitor que procura análises historicamente contextualizadas, a partir de conjunturas, tempos e espaços específicos, poderá estranhar o escopo abrangente da reflexão de Mbembe e a “longa duração” na qual ele busca apreender os fenômenos com os quais trabalha, deixando de lado as balizas geográficas e cronológicas habituais aos estudos de história intelectual africana, como aquela entre os períodos escravista e colonial, entre os territórios de colonização britânica e francesa ou mesmo entre os períodos anteriores e posteriores à formação dos Estados nacionais africanos. Sua escrita é um exercício, instigante e perturbador em igual medida, de cruzamento transversal dos tempos e lugares da modernidade metropolitana, colonial e pós-colonial. Em todo caso, ler Mbembe é uma oportunidade para se pensar os regimes e lugares possíveis da raça neste novo mundo que se “rerracializa” vertiginosamente no século XXI.

Notas

1 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 264.

2 Sigla para “Council for the Development of Social Science Research in Africa”, instituição de pesquisa sediada em Dakar (Senegal) que tem como objetivo central constituir um fórum de debates para intelectuais africanos.

3 Dados biográficos extraídos majoritariamente de MACEDO, José Rivair. Achille Mbembe: imaginação, poder e cosmopolitismo a partir da África. In: CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida; NASCIMENTO, Washington Santos (Org.). Intelectuais das Áfricas. Campinas: Pontes Editores, 2018, p. 37-69.

4 Destaque-se, em especial, as críticas que Valentin-Yves Mudimbe fez ao nacionalismo negro e à negritude e as que Kwame Appiah direcionou ao pan-africanismo e ao nativismo africano. Cf. MUDIMBE, Valentin-Yves. A invenção de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Luanda/Mangualde (Portugal): Edições Mulemba/Edições Pedago, 2013, p. 129-170; APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

5 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 230.

6 Idem. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro: UFRJ, n. 32, p. 122-151, dez. 2016.

7 A reflexão evoca a noção de “pensamento abissal” proposta por Boaventura de Sousa Santos. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In: SANTOS, Boaventura de Souza; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010, p. 31-83.

8 MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro: Universidade Cândido Mendes, ano 23, n. 1, p. 171-209, 2001.

9 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 250.

10 Idem. On the postcolony. Berkeley/Los Angeles: University of California Press, 2001, p. 212-234.

11 Idem. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro: UFRJ, n. 32, p. 122-151, dez. 2016.

12 SARTRE, Jean-Paul. Prefácio. In: FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2ª ed. Trad. José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, p. 17.


Resenhista

Alexandre Almeida Marcussi – Professor de História da África do Departamento de História da UFMG. E-mail: alexandremarcussi@gmail.com


Referências desta Resenha

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Trad. Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. Resenha de: MARCUSSI, Alexandre Almeida. A raça como fantasma no século XXI. AbeÁfrica: revista da associação brasileira de estudos africanos, v.01, n.01, p. 181 – 186, out.2018/março.2019. Acessar publicação original [DR]

Itamar Freitas

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