Cristianismos no Brasil Central – História e Historiografia
Dentre os vários Domínios da História encontramos na História das Religiões e Religiosidades, atualmente, em lugar de destaque. giosidade em lugar de destaque, Entre as sociabilidades e sensibilidades percebidas a partir do viés religioso, um volume considerável de pesquisadores tem se dedicado a produções científicas com este enfoque, possibilitando condições para enxergarmos novos rumos e novas abordagens, inseridas na perspectiva da História Social e Cultural, tendo como referência os diferentes grupos religiosos e suas práticas. As discussões nesta direção imbricam-se, satisfazendo e/ou suscitando que certamente imbricam-se satisfazendo ou sucitando r estecuriosidades que despertam novos problemas intrincados a este campo epistemológico. Existe consenso quanto à complexidade de discuti-las e entendê-las, porém, o ato embrenhar-se à pesquisa torna estas fronteiras uma possibilidade iminente de transposição.
Um exemplo pertinente desta ação pode ser visto na obra Cristianismos no Brasil Central – História e Historiografia – Goiânia: Editora da UCG, 2008. Com temáticas voltadas para a experiência do cristianismo em Goiás, esta obra leva à compreensão de que este aspecto se torna um vetor importante para adentrarmos no cotidiano social e suas representações cada vez mais nítidas na História de Goiás. Vemos que as temporalidades contempladas nos artigos que compõem a obra justificam esta tendência, já que as mesmas se encontram atávicas às origens identitárias dos sujeitos constituintes da história regional, formal e ou informalmente.
Por contemplar análises, majoritariamente, sobre as representações do cristianismo, esta obra não pode ser vista como uma exclusão a outras religiões praticadas nesta região, mas apenas como um inócuo recorte temático que legitima práticas e organizações muito singulares – certamente, mais comuns – ao espaço em discussão. Assim, este universo religioso proporciona o descortinar de um fabuloso mundo real que se contrasta com o religioso – metafísico – trazendo vivências que permitem reflexões que extrapolam a pura subjetividade. Entretanto, não nos furtamos a ela, porque sua apropriação justifica a História como uma ciência dinâmica, aplicável, mas, sobretudo, analítica. Neste sentido, reportamo-nos a Certeau (2006) que afirma:
Ainda que isto seja uma redundância é necessário lembrar que uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em função de problemáticas impostas, por uma situação. (…) por “modelos” de interpretação ligados a uma situação presente (…) (p.34).
Neste sentido vislumbramos, nos artigos que compõem a obra em análise representações destas especificidades. Pois, mediante às temáticas abordadas, enxergamos uma realidade que traduz o modo como as pessoas se organizam, se relacionam, se integram em grupos, tornando-os legado de alguns elementos que se prendem ao presente e outros que ressignificam-se no tempo, assumindo contornos que legitimam outras práticas e contextos visíveis hoje.
Sobre esta afirmação apreciamos os artigos de Antônio César Caldas Pinheiro e Eduardo Gusmão de Quadros. Ambos trataram da figura insigne de José Trindade da Fonseca e Silva, ou simplesmente Cônego Trindade, destacando referenciais que demonstram o engajamento político e religioso deste clérigo em Goiás na primeira metade do século XX. Apresentam uma posição multifacetada desta personalidade que, certamente, aguçou o interesse histórico como objeto de estudo.
Acerca do cruzamento analítico entre estes dois trabalhos, as congruências são, em muitos momentos, um paralelo possível. Sendo um sacerdote intencionado ao oficio de historiador mescla sua aptidão autodidata em favor de “construir” uma história da diocese em Goiás desembocando em narrativas que favoreceram outras informações à percepção da História de Goiás sob o olhar de uma importante protagonista desta construção: a Igreja.
Segundo Quadros, sua pessoalidade não se disfarça entre os arroubos de um discurso episcopal comumente favorável, não importando a circunstância dos fatos. Com isso, percebemos que o mesclar de temáticas envolvendo política, sociedade, cultura e religião nos faz enxergar outras instâncias que possibilitam-nos compreender personalidades, cotidianos e grupos sociais intrincados ao contexto religioso em um longo processo de estabilização e desestabilização institucional em Goiás, favorecendo releituras entre Lugares e Pessoas nos seus mais variados aspectos. Entendemos que o evidente partidarismo religioso garante o exercício reflexivo do pesquisador, pois relativizar sua obra, assim como outras do gênero, deve ser encarado como uma prática indissociável das ciências humanas.
Do ponto de vista histórico é inegável que a personalidade deste eclesiástico, por vezes encadeador e desencadeador de representações visíveis e sensíveis, reflete uma marca primordial: a presença legitima imbuída de intenso envolvimento que logo o destaca como uma personalidade de origem comum, mas de atos incomuns. Porém, sob a perspectiva historiográfica, concluímos que o vínculo institucional o coloca, indubitavelmente, diante de relativizações constantes já que a proeminência de suas contribuições estaria a cargo do cumprimento da inquestionável “vontade de Deus” aos homens de boa fé.
Ainda entre o panteão das sensibilidades e sociabilidades, incluímos as discussões propostas nos trabalhos das pesquisadoras Cristina de Cássia P. Moraes, Maria da Conceição Silva e Mônica Martins da Silva como um bom exemplo do cruzamento e aplicabilidade destes conceitos em seus respectivos objetos de estudo. No exercício de análise destas pesquisas, o transcorrer das páginas leva-nos a perceber que a influência da Igreja está como um elemento comum em temáticas aparentemente distintas.
Ao tratarem de irmandades, casamentos e regulamentos para as festividades religiosas populares, identificamos nestas pesquisas, que o município de Goiás é colocado em evidência como um espaço plural onde a religiosidade aflora objetos que desafiam a análise tradicional. Esta constatação se confirma, pois entre a exposição de regras, valores e normativas, a disputa pelo poder simbólico proporciona ao leitor o desabrochar de intrigantes relações, tornando-as sensíveis à dinâmica dos grupos sociais em múltiplas direções. Esta constatação implica reafirmamos que os três artigos supracitados possuem eixo convergente entre suas problematizações. Primeiro, a Igreja que usa de sua “legitimidade temporal” para integrar-se ao seio social como um instrumento de autoridade sem que se exima nem mesmo as irmandades organizadas de forma autônoma e legítima desde os tempos coloniais. Em segundo, o Concìlio do Vaticano I que provoca uma ruptura no conforto institucional católico, levando a Igreja a reestruturar suas posições entre os fiéis de forma mais centralizadora, provocando abruptas colisões em meio às novas estruturas do poder político republicano.
A historiografia traz a Questão Religiosa no Brasil – separação entre Igreja e Estado – ao final do século XIX, como um movimento coeso de práticas ultramontanas, e Goiás foi um dos palcos expressivos desta nova conduta eclesiástica através de seus bispos: D. Joaquim e D. Cláudio que empreenderam forças no combate ao concubinato. D. Eduardo protagonizou uma das maiores divergências políticas travadas entre a Igreja e as oligarquias locais em favor do controle oficial junto aos festejos e ritos populares, culturalmente incorporados às praticas religiosas em Goiás ainda hoje. Não obstante as festas religiosas, segundo o artigo de Maria da Conceição Silva, as disputas entre D. Eduardo e os Bulhões estiveram acirradas quando o tema também se tratava do casamento. Religioso ou Civil? Esta ambiguidade na concepção popular demonstrou outra distância ideológica que marcou o uníssono ideal da disputa pelo poder em Goiás ao final do século XIX.
As representações sociais demonstradas nestes estudos retratam a justaposição entre as transformações culturais e os interesses pontuais que conduzem os movimentos ininterruptos do “motor da explicação histórica” de acordo com Certeau (2006).
A combustão não para por aí. O protestantismo em Goiás, representado nesta obra pelo artigo da professora Ordália Cristina G. Araújo, ramifica-se pelo contexto da romanização na qual falamos anteriormente e trazendo em seu teor, outros desdobramentos.
As perspectivas deste estudo fazem-nos pensar nas várias práticas de protestantismo, embora o recorte primordial remeta-nos às suas origens – protestantismo de imigração e, subsequentemente, de missão – interligadas ao processo de transição político-econômica em virtude da criação de uma classe média brasileira, em detrimento da desestabilização das culturas que antes consolidaram a base de produção entre colônia e império. Este intento não furtou aos embates clássicos entre catolicismo e protestantismo, pois os interesses da Igreja Católica se encontravam em xeque-mate depois de rompida a aliança com o Estado.
Em Goiás, particularmente, o bispado de D. Prudêncio protagonizou ações muito representativas nesta direção, já que o encadeamento de animosidades desta natureza está retratado com clareza em muitos episódios trazidos pelo jornal católico O Lidador e pela revista a Cruz.
A autora privilegia ainda um debate sobre a importante ruptura dos paradigmas a partir dos anos 1990. Ao reportar-se a esta “crise”, discute que os conceitos históricos “antigos” seriam revistos, possibilitando novas discussões, e entre elas seu objeto teria possibilidade de desdobramentos à luz da Nova História Cultural de modo que cultura, religião e religiosidade estariam em condição de indissociáveis. Segundo Burke (2005), a grande diáspora colocaria o historiador não mais como narrador de fatos, de “verdades” rígidas, mas como um praticante contumaz da crítica dos dados e fontes que seriam consideradas nas mais variadas formas ao realizar a ação de historiar.
É neste ensejo que a revisão historiográfica conduz a experiência do protestantismo como um viés importante para reconstituir o perfil religioso no Brasil, explicitando uma identidade pouco explorada e ou forjada numa única experiência religiosa popular, como se tenta retratar em algumas impressões oficiais. Ainda segundo a mesma autora:
A abordagem do protestantismo em Goiás a partir da Nova História Cultural é um campo historiográfico promissor especialmente levando em consideração a posição que Goiânia tem tido no meio evangélico como capital brasileira onde é maior o número de fiéis desta experiência religiosa. […] tentando compreender as razões para o rápido crescimento do protestantismo […] a partir de 1970 (p.210).
Desta forma, o conceito de campo religioso toma lugar na discussão proposta pelo artigo O Campo Religioso em Goiânia: trânsito ou expansão?. Nele encontramos os desdobramentos que permite-nos refletir sobre o crescimento de subjetivas formas de religiosidade entre, segundo os autores, as três crescentes vertentes religiosas em Goiás nos dez últimos anos: Protestantismo, Espiritismo e Religiões Afrodescendentes. Por isso é que constatamos: o campo religioso em Goiás possibilita diversas possibilidades de pesquisa, tratando muitas vezes de temáticas inéditas que assegurariam lugar de destaque e outras obras que, como esta se preocuparam em focar neste tema como uma ação acertada de revisão historiográfica e histórica sobre religião e religiosidade em Goiás.
Continuando o caminho desta produção, o lugar da mulher no campo religioso fora confirmado por Euzébio de Carvalho e Thiago Fernando S. Silva. As vivências e experiências religiosas femininas traduzem, neste caso, subsídios para compreendermos que o papel religioso feminino esteve, em vários momentos, quebrando os paradigmas sociais impostos pela estrutura patriarcal de poder que visivelmente não se aplicou à realidade religiosa. História e memória são as matrizes que norteiam estas pesquisas, apresentando outras facetas das experiências que saíram do silêncio e deram o legítimo lugar à participação feminina na religiosidade popular não mais como mera coadjuvante da história fabricada por aqui. Estes estudos de gênero interligados às vivências religiosas abriram espaço para uma realidade em que “os lugares de fala” foram, sutilmente, alterados, proporcionando historicizar os atos religiosos nos mais diferentes lugares, sendo eles de poder ou não.
Ao discutir sobre instituições filantrópicas e religião, podemos encontrar suas origens nas mensagens do apóstolo Paulo em sua carta aos Coríntios. Possivelmente, o principio da caridade, destacado por ele, conseguiu aporte na filosofia primordial de instituições deste gênero – asilos, hospitais, albergues e outros – como forma material de expressão deste principio que pode ser caracterizado como um dos fundamentos religiosos do cristianismo.
Na narrativa trazida por Sônia Maria de Magalhães, podemos entender que não apenas o histórico ou a finalidade do Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara está descrito. A partir da tecedura das considerações da autora, vai-se descortinando o abrupto retrato social da Província de Goiás no século XIX, motivado, certamente, pela forte estratificação instituída aqui desde os tempos coloniais. Anterior à fundação do hospital, a atribuição de cuidar dos marginalizados cabia às irmandades que cresceram, exponencialmente, assim que surgiram as primeiras vilas e arraiais.
Nesta direção, as inquietações suscitam reflexões que se desdobram a outros aspectos relevantes. O degredo social inspirou ações sanitárias que colocam o espaço central, considerado privilegiado para alguns, susceptível a doenças oriundas da insalubridade dos lugares públicos e de circulação intensa de pessoas, sendo grande parte desta proporção de pobres andarilhos ou não, necessitada destes serviços médicos ou assistencialistas em geral. A fama da referida instituição contribuiu para o crescimento da demanda destes serviços, bem como afirma a autora, o hospital era o “único no gênero naquela província” (p. 89).
Entre a caridade identificamos, sutilmente, pistas que nos levam a crer que a relação religiosa proferida era também uma porta que se abria para o estabelecimento institucional católico no campo do serviço social. Assim, o paralelo entre Igreja e poder se aproxima, substancialmente.
Consideramos esta prerrogativa tendo como referencial as discussões de Elio Catalício Serpa, em seu artigo sobre a Igreja na Primeira República em Santa Catarina, que retrata as crises, bem como as posições católicas diante das mesmas, durante este recorte temporal bastante conturbado motivado pelas transformações recorrentes desta transição política no Brasil ao final do século XIX, estendo-se diretamente para o XX.
É por este motivo que remetemo-nos às discussões presentes neste século – XX – a partir dos artigos Recepção do Concílio do Vaticano II na Arquidiocese de Brasília: uma primeira aproximação e a Representação de Brasília na Revista da Arquidiocese de Goiânia entre 1957 – 1960, dos autores Sergio R. Coutinho e Lindsay Borges, respectivamente. O espaço que se abre agora gira em torno do discurso católico oficial, desafiando-nos ao propósito de um exercício reflexivo e analítico sobre este tema, além das especificidades nele contidos.
Brasília, símbolo de poder, progresso e modernidade, interage como uma rampa unidimensional que reconduzirá alianças políticas e simbólicas entre o Estado e a Igreja. Esta perspectiva se aliava pelas “novas” posições determinadas pelo Concílio do Vaticano II e também pelo marcante atilamento “diplomático” de D. Fernando no estreitamento desta ação. Segundo Lindsay Borges, esta era uma singular oportunidade de “se apresentar diante do poder de Estado como uma instituição capaz de unificar a nação em torno da tradição católica, podendo, assim, contribuir para a governabilidade” (p. 280). Neste sentido, Sérgio Coutinho discute que as “renovações” previstas no Concílio do Vaticano II irradiaram, especialmente em Brasília, representações simbólicas da modernidade, do poder e do progresso reforçados em ideologias que sempre estiveram no discurso religioso: “ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas exigências, ou se não for, de início qualificado para fazê-lo” (Foucault, 1996, p.37). E neste caso, Brasília, o Concílio do Vaticano II e a pessoa de D. Fernando entrecruzaram-se nesta perspectiva, de forma que o jogo circulante do poder envolvem-se visivelmente.
Como um desafio, estas páginas foram escritas objetivando um ensaio que conduzisse outras reflexões sobre o campo religioso e sua dimensão plural. A finalidade analítica da obra Cristianismos no Brasil Central – História e Historiografia– Goiânia: Editora da UCG, 2008 – ainda não se encerrou. Ao contrário, suscitou-nos novas buscas, atendo aos movimentos da religião e das religiosidades nas suas mais variadas direções e sensibilidades. Segundo Bourdieu (2004), “num estado de campo (…) se vê o poder por toda parte” (p.7). Constatamos, então, que o campo religioso não se comportou diferente. Por isso, entendemos que este objeto declina à perspectiva estática, pois quando enxergamos que o poder movimenta ações, práticas e discursos, estas relações proporcionam-nos, neste caso, um prazeroso sentimento humano: a inquietude.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Thomas; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 7 ed.,2004.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIFAS, Ronaldo. Domínios da História– Ensaios de Teoria e Metodologia. Rio de Janeiro: 13 Reimpressão, 1997.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Trad. Maria de Lourdes Menezes, revisão técnica de Arno Vogel; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2 ed, 2006.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso – Aula inaugural no Collège de Fance pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio; São Paulo: Edições Loyola, 14 ed., 2006.
Resenhista
Raquel Miranda Barbosa Bueno
Referências desta Resenha
QUADROS, Eduardo Gusmão de; SILVA, Maria da Conceição; MAGALHÃES, Sônia Maria de (Orgs.). Cristianismos no Brasil Central – História e Historiografia. Goiânia: Editora da UCG, 2008. Resenha de: BUENO, Raquel Miranda Barbosa. Olhares inquietos para a religiosidade. Revista Mosaico. Goiânia, v.2, n.2, p.190-194, jul./dez. 2009. Acessar publicação original [DR]