Cristianismo e relativismo. Verdade ou fé frágil? | René Girard e Gianni Vattimo

No campo semântico da pós-modernidade palavras como niilismo, relativismo e pluralismo ocupam uma posição central. Conquanto se conteste, amiúde, a novidade desta centralidade – que seria por sua vez, desde sempre, moderna – ou, pelo contrário, se afirme a sua especificidade pós-industrial e globalizada, alguns temas recorrentes, no discurso das ciências humanas, permitem que se lance luz sobre esta “zona obscura” de sentido – e um deles, não resta a menor dúvida, é a religião.

Em que sentido o pensamento sobre a pós-modernidade, ou, antes, o pensamento pós-moderno, pode contribuir acerca das relações entre sociedade secularizada e religião? Como uma tradição que se quer niilista, relativista e pluralista poderá se ocupar do propalado “autoritarismo das religiões”? Que poderá ela dizer? De que instrumentos se servirá?

Estas questões estão presentes no pensamento do filósofo italiano Gianni Vattimo, cujos diálogos com o antropólogo francês René Girard são objeto de publicação recente em terras brasileiras. Contando com a mediação do também filósofo Pierpaolo Antonello, a obra compila os debates realizados entre 1996 e 2006, além de dois artigos – um de Vattimo, outro de Girard – em que os autores apresentam sua mútua interpretação.

Trata-se do encontro de dois intelectuais internacionalmente respeitados que, não obstante as diferentes formações buscam superar, conforme diz Antonello na sua Introdução (páginas 5 a 22), a oposição entre o pluralismo confessional, fruto de uma necessidade democrática a nível internacional, e a autoridade da religião, a sua característica não-relativista. Desta maneira, o duplo propósito do livro, como diz o próprio Antonello, é fornecer, por um lado, ocasiões de reflexão sobre as relações entre religião e modernidade, verdade e liberdade, relativismo e fé e, por outro, apresentar ao público esta aproximação entre Girard e Vattimo. É neste sentido que se configura como o “diário de um confronto, de um esforço de compreensão e persuasão recíprocas” (Introdução, p. 7).

É verdade, entretanto, que o panorama geral da publicação é marcado pelo esforço de Gianni Vattimo, recentemente convertido ao catolicismo, em se aproximar de Girard para conciliar o seu relativismo e a sua fé. E testemunhar este esforço é uma ocasião ímpar para o estudioso da religião.

O diálogo entre os pensadores se haure a partir da temática nietzscheana da morte de Deus, que para Vattimo representa a destruição da metafísica e da transcendência – o fim das verdades estabelecidas – e para Girard, a morte real de uma vítima inocente. Isso porque ambos os autores concordam a respeito do caráter antireligioso do cristianismo, que transforma o significado da violência no interior da vida religiosa – marcando, desta forma, sua diferença radical com relação aos cultos antigos, contemporâneos ao seu surgimento.

Com efeito, uma das argumentações centrais das reflexões de René Girard – que giram em torno da religião e da violência – é de que o cristianismo constitui-se uma novidade em matéria de religião: nele, a vítima, o bode expiatório, deixa de ser considerado culpado, e passa a ser visto como inocente (Cristo). Com isso a mensagem cristã assume o caráter de denúncia: o referencial da violência do grupo é uma realidade “vazia”, apenas simbolicamente assinalável, e é esta “verdade” que o cristianismo teria “revelado”, isto é, tomado consciência da arbitrariedade da violência no interior das culturas (consciência histórica). Neste sentido, os Evangelhos podem ser interpretados como momentos de “ilustração” na História Ocidental.

E é a partir do que para Girard é uma verdade antropológica – embora não o seja para Vattimo – que o filósofo italiano dirá que a secularização e o laicismo são na verdade produtos do cristianismo, antes de se lhe antagonizarem: é quando a cultura ocidental quer se desligar dos discursos confessionais, que ela revela suas raízes cristãs.

A obra se estrutura em cinco capítulos. No primeiro deles, Cristianismo e Modernidade (páginas 23 a 48), Girard expõe de maneira sucinta os pontos principais de sua tese a respeito da religião, entendida num sentido antropológico como compreensão da violência inerente à natureza humana, e seu funcionamento a partir do mecanismo expiatório – presente em narrativas míticas e tragédias, como a de Édipo, por exemplo –, de certo modo revolucionado pelo cristianismo, onde a vítima não mais é pensada a partir da comunidade, mas ocupa um papel central com toda sua inocência. Segundo Girard, “todas as conquistas da modernidade partem daí, daquela tomada de consciência inerente ao cristianismo” (p. 27).

Vattimo busca complementar a tese de Girard com sua interpretação de Heidegger – Ser como evento, fim da metafísica e enfraquecimento da idéia de Deus1 – oferecendo uma nova leitura da secularização, vista não mais como o abandono do que é sagrado, mas como sua extensão a determinados fenômenos humanos, graças a “realização do cristianismo como religião não sacrifical” (p. 28).

Enquanto Vattimo reflete sobre a radicalidade da mensagem cristã e sua incoerência com relação às proibições e coerções da Igreja, Girard concede a esta última o papel, segundo ele necessário de um ponto de vista pragmático, de conservar o equilíbrio da sociedade coibindo a violência. Isso porque, para ele, o esclarecimento cristão sobre a arbitrariedade do sacrifício pode igualmente privar a sociedade dos meios usuais de enfrentamento da crise e da violência.

Vattimo não aceita o conceito de natureza humana usado por Girard – para ele o cristianismo redime a natureza humana (Vattimo acentua a tese de Girard, neste sentido) e a coloca diante de Deus, na perspectiva da salvação, em uma relação de amor, e não simplesmente de crença. Para Vattimo, não há no conceito de natureza humana nenhum limite – e isto também o cristianismo mostrou: sede perfeitos como é perfeito vosso Pai que está no céu. Girard vê no pensamento de Vattimo o “ludismo” dos pós-estruturalistas: tudo é jogo, tudo é linguagem.

Vattimo busca uma religião pós-metafísica. Segundo ele o itinerário da filosofia contemporânea representa – após Heidegger e Wittgenstein – uma passagem da veritas à caritas. Para o filósofo italiano, a volta a religião não pode ser reação, recrudescimento – seria substituir um ídolo por outro. Assim, o cristianismo deveria consumar a sua “verdade”, deixando de tratar da Verdade e passando a se ocupar do Amor. Para Girard isso não é possível, pois a verdade cristã – que é uma verdade antropológica – se confunde com o mesmo amor.

No segundo capítulo, intitulado Fé e Relativismo (páginas 49 a 66), a disjunção aparente entre estes dois termos é interpretada por Vattimo como uma falácia, uma vez que a fé é a fé no Outro (Deus encarnado), não no conteúdo de uma proposição – a fé, por definição, é relativista. Esse relativismo, para Girard, não faz sentido quando se aceita uma identidade entre as culturas num nível antropológico, universal: é supérfluo, diríamos mais – é petição de princípio. Por isso ele não se considera um relativista.

Mas Vattimo vai mais longe: se a verdade depende do acordo, e este da caritas – e aqui cumpre observar que a concessão não é de ordem intelectual – não há de fato relativistas. E a verdadeira consumação da verdade cristã seria a superação da história da Igreja – bem entendida, de seus aspectos políticos e de seus aspectos constituídos, traços não essenciais da revelação. Vattimo acredita que o fim a que se destina o cristianismo é abolir, no futuro, a instituição.

E aqui o pensamento dos autores se afasta: se para Vattimo o cristianismo despojou-se das pretensões de declarar metafisicamente a realidade, enfraquecendo as verdades estabelecidas – e pode, portanto, se emparelhar ao niilismo filosófico tal como ele o define – Girard pensa, por sua vez, que o mesmo niilismo, que é a resposta à incapacidade em traduzir a complexidade das relações humanas, pode ser superado por uma antropologia mais bem fundada – uma nova espécie de humanismo.

No terceiro capítulo, Hermenêutica, autoridade, tradição (páginas 67 a 82), Girard se aproxima de Nietzsche e da sua interpretação da violência, considerando-o o maior teólogo desde Paulo. Junto a Nietzsche ele se bate contra a noção, a seu ver perniciosa, do politicamente correto. Por outro lado, e aqui sua distância de Heidegger, Girard sublinha a necessidade antropológica de um fundamento, baseado na ritualidade, contra as interpretações puramente lingüísticas da religião.

Vattimo, entretanto, manifesta seu otimismo com relação à multidão, transformada em comunidade pelo enfraquecimento do Ser – perspectiva heideggeriana que o leva a admitir o problema da verdade apenas nos termos de acordo. Por outro lado, como ele mesmo ressalta, a multiplicidade das interpretações enraizada na complexidade da multidão é paralela às possibilidades – igualmente plurais – de liberação da violência. Neste sentido, a partir da vocação pós-metafísica do cristianismo, ele apresenta sua perspectiva hermenêutica: “É preciso se tornar intérprete e não simplesmente alguém que passivamente contempla a verdade ou a presume” (p. 77). Cristianismo apenas a partir de uma nova relação com a tradição. Isso faz parte da postura hermenêutica de Vattimo: sua proposta é de prosseguir na historicização dos textos sagrados, integrando a atividade hermenêutica à vivência religiosa – cristianismo como “não-legalismo”.

Além disso, alia a condição de “fim da modernidade” à capacidade em reler o cristianismo e as semelhanças dessa releitura com o trabalho de Heidegger a respeito do Ser – este filósofo pertenceria deste modo, à “história da revelação”, na medida em que sua recusa à metafísica é uma recusa da violência com que esta reduz o Ser à objetividade quantificável, ao mecanismo, à técnica. Vattimo relembra que Heidegger, enquanto escrevia Ser e Tempo, lia assiduamente o Novo Testamento e a obra de Lutero. O que isso tudo tem a ver com Girard é que, segundo Vattimo, o enfraquecimento do Ser pode ser comparado com o enfraquecimento do sagrado, como dissolução de sua violência – o enfraquecimento é o meio da revelação – trazida pela mensagem cristã.

O último capítulo, apenas pelo título, Não só interpretações, há também os fatos (páginas 95 a 119), já nos dá o tom da resposta de Girard a Gianni Vattimo. Girard começa tratando da conversão de Vattimo ao catolicismo como um aprofundamento do seu niilismo, e não como a sua recusa. Mas o pensador francês quer marcar sua diferença em relação ao seu interlocutor, e o faz pela recusa da “recusa ao fato”, embasando o seu procedimento interpretativo no que ele chama de “senso comum” e em documentação antropológica – discurso realístico, contando com a longa duração. René Girard enxerga, no radicalismo de Vattimo, uma visão extremamente lingüística que corre o risco de dissolver o princípio da realidade. Girard oferece sua interpretação da mitologia – entendida aqui em sentido lato, como explicação das crises no seio da comunidade pela culpa que deve ser expiada – à luz do que é para ele uma tremenda novidade: o cristianismo. E esta compreensão deverá afastar o que há de excessivamente grego no pensamento cristão – basta notar que o núcleo da argumentação de Girard está na diferença entre a interpretação grega da história de Édipo (tragédia) e a Paixão de Cristo. Para ele, que não consegue aceitar o relativismo, ou a validade de todas as interpretações, isto foi sua “descoberta” antropológica.

Como diz Pierpaolo Antonello, este pequeno livro se configura como uma verdadeira “aposta teórica” (p. 19). Em outras palavras, se por um lado o volume é uma excelente introdução às obras de Girard e Vattimo, porquanto se encontrem mutuamente confrontadas pelos seus próprios autores, por outro, é o registro de dois pensamentos extremamente criativos, buscando reinterpretações de questões já consagradas e propondo novos itinerários para o estudo da religião no interior das ciências humanas.

Nota

1 Aqui, Vattimo apresenta uma de suas mais conhecidas teses, a do sujeito enfraquecido como alternativa para a superação da metafísica. Isso faz parte do que ele chama de “pensiero debole” (pensamento frágil). Ver VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Marins Fontes, 2007, p.36.

Referências

GIRARD, René. O bode expiatório. Tradução de Ivo Storniolo. São Paulo: Paulus, 2004.

VATTIMO, Gianni. Depois da Cristandade. Por um cristianismo não religioso. Tradução de Cynthia Marques. São Paulo: Record, 2004.

VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade. Niilismo e hermenêutica na cultura pós-moderna. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Marins Fontes, 2007.


Resenhista

Philippe Delfino Sartin – Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutorando em História na USP.


Referências desta Resenha

GIRARD, René; VATTIMO, Gianni. Cristianismo e relativismo. Verdade ou fé frágil? Trad. Antônio Bicarato. Aparecida, São Paulo: Santuário, 2011. Resenha de: SARTIN, Philippe Delfino. História Revista. Goiânia, v.18, n.1, p. 193-198, jan./jun.2013. Acessar publicação original [DR]

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