Crer em História | François Hartog
Lançado em 2017 no Brasil pela Editora Autêntica, o livro Crer em História é a produção de François Hartog lançada em Paris com o título Croire en l’histoire. O historiador, membro de importantes instituições como o Centre Louis-Gernet de Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes e o Centre de Recherches Historiques discorre sobre o crer e o fazer história em diferentes tempos, lugares e perspectivas para, por fim, indagar: ainda cremos em História?
Em quatro capítulos, além de introdução, intermédio e conclusão, Hartog descreve e comenta as diferentes tarefas atribuídas à história, bem como seus diferentes conceitos e interpretações. Nomes como Aristóteles, Halbwachs, Ricœur, Tolstoi, Sartre são evocados para colocar em debate a problemática das experiências de tempo e as formas de escrever – e talvez fazer – história para que se tente dar conta das questões que parecem cada vez mais apelar para a resolução dos impasses próprios da historiografia.
A introdução, ela própria intitulada com a questão inicial já mencionada, relaciona o crer e o fazer, pontuando que a questão “Quem faz história?” não deve ser menosprezada, visto que diferentes formas de crer ocasionam diferentes formas de fazer. Se para Pierre Larousse, autor do famoso dicionário, a história se tornou uma “religião universal”, ela era algo que se deveria “crer em”, tal como se crê em postulados religiosos. Já outro tipo de crença, aquela que pretende “crer na” História e que é facilmente confundida com a primeira, está menos relacionada com as possibilidade de que as coisas aconteçam ou não e mais com a possibilidade de se compreender determinada ordem dos eventos, registrando tudo tal qual Políbio no século II a.C. É a crença numa história em ação.
Diante disso, Hartog questiona: crê-se ainda que é possível fazer história? As respostas apresentadas pelo autor trazem o “como” fazer e “por quem” ela é feita através de diferentes óticas. O fazer pode ir desde o sentido grego, poien, como o ato de fabricar, forjar, na medida em que se escreve; até o sentido de fazer tal qual o diplomata Chateaubriand o concebeu, onde assinar tratados e estabelecer acordos políticos seria o fazer ativo da história. No entanto, é fato que o processo de institucionalização e profissionalização da disciplina tirou daqueles que fazem história a pretensão de fazer a história. O historiadores então rejeitam o papel de prever o futuro, de dar conselhos ou fazer julgamentos.
O primeiro capítulo, A ascensão das dúvidas, é um belo discorrer sobres as principais discussões que fazem parte da História do Tempo Presente. Aqui o autor explica as diferentes posições ocupadas pelos historiadores nos séculos XIX e XX, a emergência da memória na década de 1970 relacionada ao regime de historicidade presentista, o tempo e a relação que os historiadores estabelecem com ele, bem como as principais palavras do presente. São palavras mestras que substituem as chamadas grandes narrativas e se consolidam como as referências de um tempo, em especial de um tempo de incertezas. Hartog pontua seis: memória, comemoração, patrimônio, identidade, testemunha e vítima. A partir delas, o autor faz uma discussão semelhante com a que fez Rousso (2016) em A última catástrofe.
A inquietante estranheza é o capítulo seguinte, e é intitulado assim para referenciar Ricoeur e suas reflexões sobre o impasse entre a suposta fidelidade da memória e a busca de uma intenção de verdade em história. Nesse ponto de sua obra, Hartog faz uma densa análise das obras do filósofo através de uma leitura bastante crítica, sem se configurar numa objeção. É a parte do livro que convida a refletir sobre as relações tão complexas entre história, retórica, narrativa e memória, que nunca deixaram de inquietar os historiadores, em especial os do Tempo Presente.
O intermédio do livro propõe, em sete páginas, a discussão sobre As três alegorias da história, que vem a ser seu título. Aqui, o historiador traz como exemplo: Clio e a glória de Napoleão, ilustrada no quadro oitocentista de Veron-Bellecourt; o Angelus Novus de Paul Klee e apropriado por Walter Benjamin como o Anjo da História; e Papoula e Memória e Anjo da História, obra do artista alemão Anselm Kiefer, cujo trabalho empresta toda a força de sua expressão à capa deste livro. Na primeira alegoria, Hartog discorre sobre a aceleração da história, o regime moderno de historicidade, a sincronização do mundo e os choques de temporalidades. Na segunda, a mais conhecida, o autor reflete sobre a familiaridade e a estranheza do regime moderno de historicidade num mundo que começa a entrar num regime presentista. Na última, trata-se sobre o passado que não passa e o silêncio da morte das grandes catástrofes que paira sobre um tempo parado.
Tanto a crença em história quanto a crença em literatura foram duas formas de fé que andaram lado a lado. Essa é a ideia que nos é apresentada pelo autor no terceiro capítulo, Do lado dos escritores: o tempo do romance. No regime moderno de historicidade, mais especificamente no século XIX – o século da história e do romance – a história era concebida como um processo linear, levada pelo tempo ator, e percebida em aceleração; já o romance era responsável por mostrar, através da literatura e seus personagens, as fissuras e fracassos dessa forma de perceber o tempo, as diferentes temporalidades e o questionamento da ordem do mundo. São essas formas de narrar dos escritores que são aqui analisadas por Hartog, que o faz belamente com as obras de Balzac, Tolstoi, Sartre e muitos outros. Aqui, para o deleite do leitor, lê-se um excelente historiador dialogar com excelentes nomes da literatura.
Já em Do lado dos historiadores: os avatares do regime moderno de historicidade, lê-se uma profunda discussão sobre o regime moderno, suas fissuras e críticas a essa forma de conceber o tempo na perspectiva da historiografia. Aqui, conceitos importantes como progresso, revolução, civilização, modernidade e globalização são discutidos com muitas referências e diálogos com demais teóricos que não podem ser deixados de lado pela história, como Hannah Arendt e Lévi-Strauss. Esse, como os demais capítulos que compõem este livro, é uma excelente aula sobre as diferentes crenças em história e o fazer historiográfico.
Hartog encerra sua obra com um consistente capítulo conclusivo que retoma todos os pontos abordados nos capítulos anteriores e que se propõe uma reflexão sobre o nome e o conceito de história. Partindo de uma ideia muito semelhante dos estratos do tempo de Koselleck (2000), o Hartog explica a relação entre os diferentes conceitos de história e as diferentes temporalidades, ponderando que “entre as situações históricas e o conceito de história sempre existiram duas tensões: ou o conceito está em fase com uma conjuntura, ou em defasagem com relação a ela.” (2017, p. 226) Pondera ainda que a locomotiva da História já não se move com toda força, embora a tecnologia do século XXI nunca tenha causado uma sensação tão grande de aceleração. Para Hartog, a história pode sobreviver ao fim do seu conceito moderno na medida em que historiadores saibam estabelecer novas articulações entre passado, presente e futuro sem que nenhuma dessas categorias impere sobre as demais nas nossas tentativas de entender o presente que é nosso.
Por fim, a capa do livro é digna de uma breve análise. Como já citado, Anselm Kiefer é o autor da escultura que nos é apresentada logo acima do título de Hartog. É uma estrutura composta por livros – objetos que por muito tempo se acreditou serem os únicos capazes de carregar a grande história da humanidade – empilhados, já muito velhos e com aspecto de ruína; e por um par de asas, uma em cada lado desses objetos que aparentam um estado de morte. A história tal qual se conhecia já está morta. Foi soterrada junto dos corpos atingidos pelas bombas das catástrofes do século XX, tema que inspira a obra do escultor. Segundo o artista, “Germans want to forget [the past] and start a new thing all the time, but only by going into the past can you go into the future1. É esse movimento de retorno ao passado para que se consiga viver no presente e esperar o futuro que é um dos principais debates da história do presente, e tal trabalho artístico não podia ter sido melhor escolhido para compor a arte do livro que é leitura obrigatória para todos os historiadores, não só do presente.
Nota
1 ARTSY. Acesso em 01/05/2019. Disponível em: https://www.artsy.net/artist/anselm-kiefer
Referências
HARTOG, François. Crer em História. Autêntica, Belo Horizonte, 2017.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo: estudos sobre história. Com uma contribuição de Hang-Georg Gadamer. 2000.
ROUSSO, Henry. A última catástrofe: a história, o presente, o contemporâneo. Editora FGV, 2016.
Resenhista
Isadora Muniz Vieira – Licenciada em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da UDESC, na linha de pesquisa Linguagens e Identificações.
Referências desta Resenha
HARTOG, François. Crer em História. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. Resenha de: VIEIRA, Isadora Muniz. Ainda cremos em história? Fronteiras: Revista catarinense de História. Florianópolis, n. 33, p. 152- 155, jan./jun. 2019. Acessar publicação original [DR]