As representações sobre as mulheres não constituem produtos culturais neutros, na medida em que são elaboradas no interior do jogo social e a partir de olhares matizados por múltiplos interesses, inclusive políticos, buscando legitimar situações sociais, resistir a processos de transformação e, entre outras possibilidades, prescrever condutas. O livro da historiadora Edméia Ribeiro insere-se nessa perspectiva, ao focar as relações entre discursos costumbristas, hispanistas e de caráter nacional, numa coleção intitulada Las mujeres españolas, portuguesas y americanas, publicada na Espanha, nos anos 1870.
A autora é, atualmente, professora de história da América do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e membro do Laboratório de Estudos dos Domínios da Imagem (LEDI). Ao longo de sua formação acadêmica, tem abordado questões sobre gênero e representações femininas. Publicou o livro Meninas ingênuas: uma espécie em extinção? A sexualidade feminina – entre práticas e representações – Maringá 1950-1980” (RIBEIRO, 2004), tendo escrito, também, artigos científicos voltados, sobretudo, para a história cultural e política do feminino, entre outras produções.
A coleção utilizada como fonte no livro foi organizada e publicada, em fins do século XIX, por Miguel Guijarro, editor que teria revolucionado o mercado editorial espanhol, ao estabelecer diferentes relações entre autores, editores e impressores, transformando os colaboradores em uma espécie de assalariados. O documento, composto por três volumes, é constituído por textos elaborados por literatos e periodistas, marcados por distintas trajetórias e opiniões políticas, inclusive contraditórias, desde o monarquismo ao republicanismo, em suas diferentes variações, cujas fronteiras não eram claras em fins do século XIX. Esses autores abordam as províncias espanholas e portuguesas, bem como as antigas colônias da Espanha na América e também o Brasil, tendo como ponto de partida as mulheres. Entretanto, de modo geral, elas são utilizadas como pretexto para discorrer sobre aspectos como território, sociedade, política, cultura e moralidade, sem deixar de prescrever comportamentos femininos.
Para os compradores de época, a coleção poderia ser acompanhada por cromolitografias, técnica voltada para a produção de gravuras coloridas a partir do óleo, também representando os tipos femininos, embora desempenhando papel decorativo no documento, como ressalta a pesquisadora. Mesmo assim, a historiadora teve a sensibilidade de conceber analiticamente essa publicação ilustrada como um todo, entrelaçando o visual e o escrito, percebendo a materialidade da fonte que não poderia ser reduzida a formas “puras” de discurso iconográfico ou verbal. Por isso, Ribeiro contextualiza historicamente a produção, a circulação e o consumo da publicação, enfatizando o prolífico crescimento liberal, cultural e editorial espanhol no oitocentos, apesar da influência marcante da cultura francesa sobre as diferentes dimensões da sociedade espanhola. Tudo isso, ironicamente, numa Espanha onde dois terços da população seria analfabeta, mesmo com a possível existência das leituras públicas, canal importante na difusão e apropriação de ideias. Tendo em vista o caráter material da obra, a autora chama a atenção também para elementos ligados à sua editoração, como a diagramação e a organização das imagens. É importante atinar, além disso, para a preocupação metodológica da historiadora, ao analisar as imagens iconográfica e iconologicamente, percebendo os elementos das cromolitografias como portadores de significados, remetendo, inclusive, para as cores e os vestuários.
A coleção foi publicada numa conjuntura sensível da história política espanhola, porquanto a Espanha se encontrasse num processo de perda do poderio colonial sobre os territórios americanos que, ao longo do século XIX, haviam encetado movimentos de independência, transformando-se, principalmente, em repúblicas. Além disso, a tensão seria ressaltada pelo crescimento de potências como a França e a Inglaterra, que, lançando-se à corrida imperialista, teriam deixado à sombra os impérios espanhol e português. Nesse contexto histórico, a fonte em questão emerge como um discurso de resistência diante do processo de desagregação dos antigos domínios hispânicos, buscando projetar um passado épico sobre um presente em crise.
Diante desse panorama de desagregação, a coleção desempenha o papel de sublinhar a hegemonia cultural espanhola sobre as novas repúblicas, que teriam herdado o espírito hispânico da antiga metrópole, que busca tecer uma identidade supranacional. Face à expansão das influências inglesa e francesa, consideradas, por alguns colaboradores de Guijarro, como perniciosas aos “verdadeiros” costumes espanhóis, o discurso hispanista que, segundo a autora, perpassa verbal e iconograficamente a coleção, ressalta a importância dos elementos culturais hispânicos como fundamento da tradição, inventada e sedimentada, como a base dos bons costumes. Nesse sentido, diversas camadas de discurso se entrelaçam, criando e tocando imaginários, na medida em que o hispanismo se articula com a retórica costumbrista que, eventualmente assumindo caráter xenofóbico, enfatiza a superioridade dos costumes espanhóis ligados a aspectos corriqueiros do cotidiano, como o vestuário, os gestos, a religiosidade, a devoção à família e à maternidade por parte das mulheres, que seriam as raízes para a constituição de uma nação poderosa. É válido lembrar que a própria Espanha não constituía um todo coerente, sendo fracionada regionalmente, bastando recordar as especificidades políticas, linguísticas e culturais da Catalunha e do País Basco, que resistem, mesmo hoje, à criação de uma identidade nacional homogênea. Do ponto de vista político, a partir de 1833, com a morte de Fernando VII, o território espanhol foi assolado por guerras civis que redundaram numa ligeira experiência republicana entre 1873 e 1874, transformando o país em palco de disputas políticas e simbólicas.
Imbuídos desse discurso hispanista e costumbrista, os literatos e os cromolitógrafos se utilizaram da pena e do olhar, para pensar não apenas a própria Espanha, mas o “outro” que constituía as nações americanas. Apesar da diversidade de perspectivas, as qualidades inerentes aos antigos territórios coloniais seriam decorrentes das influências da cultura hispânica, marcada pela religiosidade católica, pelo nacionalismo, pela devoção feminina à família e à maternidade e, de maneira geral, pelas implicações positivas do “sangue” espanhol. Nesse sentido, a miscigenação teria levado à civilização do ameríndio.
Percebe-se, como ressalta Ribeiro, a articulação com outras camadas discursivas, como a retórica racista (convertida em teoria científica no século XIX), postulando a determinação da raça sobre a cultura e a moral, e o determinismo natural, que afirmava o peso do ambiente, principalmente do clima, sobre a constituição dos indivíduos. Esses critérios poderiam ser utilizados, também, para desqualificar o outro: as mazelas dos países recém-independentes seriam decorrentes, apesar de toda tutela da “raça” hispânica, da persistência nesses territórios dos costumes nativos ou das influências perniciosas do clima quente. Na coleção, pouco se fala sobre o negro, cujo silêncio seria matizado de sentido. De toda forma, como sugere a historiadora, “[…] procurando a América, encontrou-se a Espanha, que colonizou a América…” (p. 13).
Como ressalta Ribeiro, a coleção fundamenta seu discurso escrito e visual sobre a representação do outro, elemento importante na estruturação das qualidades que definiriam a identidade do “eu”, num espelho distorcido que reflete a imagem narcisística do observador. O outro seria, em primeiro lugar, o território da América Hispânica, que havia passado pelos movimentos de independência, fosse em suas virtudes de natureza hispânica, fosse em seus defeitos de persistência nativa. No entanto, o outro seria também a mulher cantada em palavras e pintada em imagens por homens, lembrando que não há autoras propriamente ditas no documento analisado pela historiadora. Tampouco a mulher é a leitora ideal dos escritores, sendo poucos os autores que fazem alusão às “leitoras”. Além disso, a mulher ideal nas pinturas e nos textos seria branca, ociosa e de boa estirpe social, relegando a camponesa de traços nativos e dedicada ao trabalho à margem da sociedade, colorindo a coleção de um discurso não apenas racista e determinista natural, mas também classista.
O século XIX foi um período em que a definição de família estava em processo de mudança, sedimentando-se não apenas nas convenções sociais, econômicas e políticas, mas na ideia ocidental de amor. Nessa redefinição, a própria noção de mulher e sua função estavam em jogo, sendo a mulher concebida, do ponto de vista masculino, como afetiva, em contraposição à racionalidade masculina, como aquela que zelaria pelo lar, em contraste com a vida pública do homem e, por conseguinte, como mãe que educaria os filhos para a construção de uma nação sólida. Não é coincidência a utilização da mulher como representação para as repúblicas (em contraposição às monarquias masculinas) e as nações ao longo do oitocentos, bem como a sua visão pelo positivismo de Auguste Comte, que havia idealizado o papel feminino. Esse investimento nas representações femininas, marcado principalmente pela literatura, prescrevia papéis que sugeriam o que constituiria o feminino, a partir de uma ótica masculina, numa sociedade de cunho patriarcal, embora as mulheres, de fato, não se adequassem necessariamente a esse perfil. Na América espanhola, elas participaram, de diferentes formas, nos processos de emancipação, o que não pôde passar despercebido pelos colaboradores da coleção, que ora qualificavam, ora desqualificavam esse engajamento político.
De forma geral, o livro aborda uma fonte oitocentista, que articula o visual e o escrito, cujo discurso constrói representações sobre o feminino, com o intuito de versar sobre os domínios espanhóis, portugueses e americanos. Na coleção, as retóricas hispanista e costumbrista (bem como os discursos racista e determinista natural, entre outros) são entrelaçadas para criar uma identidade da Espanha, numa conjuntura de desagregação do império hispânico e do próprio país, buscando afirmar um conjunto de ideais que a definiriam culturalmente. Para a constituição dessa identidade, o olhar sobre o outro se tornou fundamental, fossem as nações americanas em suas virtudes e vícios, fossem as mulheres em seus comportamentos prescritos por homens. Trata-se, em síntese, de obra importante, não apenas para pesquisadores, professores e demais interessados na história da Espanha e da América, como também daqueles preocupados com a história visual, em suas dimensões de fonte e de objeto de pesquisa.
Referência
RIBEIRO, Edméia. Meninas ingênuas: uma espécie em extinção? Curitiba: Aos Quatro Ventos, 2004.
Resenhista
Richard Gonçalves André – Doutor em História pela Universidade Estadual Paulista, professor do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Brasil. Atualmente, desenvolve a pesquisa “Lugares e dimensões do sagrado: religiosidade, culto aos ancestrais e cultura material entre nikkeis em Londrina (1929-2013)”. E-mail: richard_historia@hotmail.com
Referências desta Resenha
RIBEIRO, Edméia. Costumbrismo, hispanismo e caráter nacional em Las Mujeres Españolas, Portuguesas y Americanas: imagens, textos e política nos anos 1870. Londrina: EDUEL, 2012. Resenha de: ANDRÉ, Richard Gonçalves. Imagens de mulheres entre a pena e o pincel: representações femininas na iconografia espanhola oitocentista. Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.15, p. 313-317, jul./dez. 2013. Acessar publicação original [DR]
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